crítica

15 contos escolhidos por Katherine Mensfield

Depois de assistir a um vídeo da Paloma Lima explicando um pouco sobre o gênero contos, observei que existem duas vertentes distintas em relação a esse estilo de texto: a primeira, defendida por Edgar Allan Poe, propõe que um conto precisa ser lido em uma sentada. Deve ser um nocaute para o leitor, tendo início, meio e fim, com uma história impactante e poucos personagens.

Já para Tchekhov, um dos meus escritores favoritos da vida, define o conto como um recorte da vida. Assim também pensam Cortázar, que vê o conto como uma fotografia e o romance como um filme. Clarice Lispector, Alice Munro, Sylvia Plath e Flannery O’Connor também seguem essa linha do conto, preocupando-se mais com o desenvolvimento dos personagens e com o enredo psicológico.

De acordo com o perfil deste site e principalmente para quem me conhece um pouco, é claro que os contos me conquistaram através dessa segunda vertente. Confesso que antes disso, eu não gostava de ler contos por não me apegar às histórias e sempre achar que faltava alguma coisa, um algo mais. Depois que descobri Alice Munro e Tchekhov, minha vida de leitora mudou. Posteriormente, vieram Clarice maravilhosa e mais recentemente Sylvia Plath, Flannery O’Connor e agora Katherine Mensfield.

Ao ler o prefácio dessa edição, já sabia que estava diante de uma nova obsessão literária. Um dos primeiros comentários da tradutora Monica Maia foi de que ninguém mais ninguém menos que Virgínia Woolf disse sentir inveja de Katherine por seu texto e estilo de escrita. Em seguida, há um trecho do livro “Aprendendo a viver” de Clarice, onde ela diz que quando leu a autora pela primeira vez, exclamou: “Oh, mas isso sou eu”! Por fim, há ainda a menção ao apreço de Mensfield pela obra de Tchekhov e a indicação de Érico Veríssimo à leitura de seus contos.

Logo nas primeiras linhas do conto “Êxtase”, percebi como a escrita da Clarice lembra a de Katherine. É perceptível a influência da escritora nos contos da brasileira e assim a autora já me conquistou. Os recortes do cotidiano das pessoas comuns, o enredo psicológico, o desenvolvimento dos personagens e o dom de captar os sentimentos coletivos fazem desses contos especiais, belos e reflexivos. Há muitos trechos bonitos no texto, descrições de sentimentos através do uso de metáforas e muitas hipérboles, além de críticas sociais que abordam o estrangeirismo, a diáspora e a consequente solidão que advém do exílio.

Mensfield transita da felicidade suprema, do sentimento de estar “estourando de animação, com vontade de pular e correr, apesar dos meus 32 anos”, ao tédio dos dias preguiçosos, das recepções vazias de sentido, das conversas fiadas e do sentimento de solidão em um mesmo conto. O estado de espírito da personagem muda de acordo com as pessoas à sua volta, como se elas pudessem sugar a sua energia. É fácil entrar nas histórias e se envolver com os seus personagens porque é um pouco parecido com Virgínia Woolf: ao mesmo tempo em que estamos pensando em uma coisa, nossa mente pula para outra totalmente diferente, alterando o nosso humor.

Mas nem todos os contos têm enredos tão psicológicos. Alguns captam os sentimentos urbanos, com um enredo tradicional, feito a partir de um recorte da vida, mas com uma imensa profundidade. Neste caso, cada leitor extrai do texto aquilo que consegue subentender. As paisagens da Nova Zelândia são descritas com uma beleza singela, mostrando um pouco do país para os leitores. Não apenas através das estações do ano, com suas árvores, flores e frutas nativas, mas também com os seus abismos sociais e econômicos.

Um dos contos mais famosos de Mensfield, “Festa no jardim”, retrata as desigualdades presentes no país. De um lado, uma família rica, oferecendo uma grande recepção. Na mesma rua, um pouco abaixo, uma família enlutada e pobre atravessa um momento difícil e de escassez. O embate dessa história acontece na cabeça da protagonista, uma jovem que estava feliz em receber seus convidados e empolgada com a festa, mas ao mesmo tempo questionava se seria correto oferecer uma grande recepção quando um vizinho acabou de falecer em um acidente, deixando esposa e filhos.

Outro conto bastante conhecido da autora, “As filhas do coronel” nos leva à reflexão sobre as diferenças culturais. Katherine Mensfield nasceu na Nova Zelândia durante o período em que seu país era uma colônia britânica. Era filha de um banqueiro e uma socialite, pertencendo assim à uma família tradicional. Por isso, teve uma infância solitária e alienada. Em 1902, mudou-se para a Inglaterra e durante sua juventude, houve a Primeira Guerra Mundial, onde perdeu um dos irmãos. Essa mudança de um país para o outro, evidenciou todas as diferenças existentes entre os hábitos e culturas da Inglaterra e da Nova Zelândia. Neste conto, ela pontua algumas situações referentes à pontualidade, ao rigor das tradições inglesas e até mesmo às paisagens dos dois lugares.

É perceptível que essas questões culturais foram muitos importantes para a escritora, pois em outros contos da coletânea, ela compara o estilo de vida ocidental com a Rússia, mostrando como é solitária a vida dos europeus e como eles separam e segregam as pessoas por sua classe social. Enquanto na Rússia, um camponês, um simples mujique é respeitado e sua opinião é levada a sério e até mesmo solicitada. Em muitas passagens de seus contos, a autora aborda o egoísmo europeu e o nosso autocentrismo – ou seja, o ato de não olhar para o outro, enxergar somente a si mesmo e desprezar os acontecimentos à nossa volta.

As viagens também são um tema recorrente nesta antologia. No conto “A jovem governanta”, acompanhamos uma moça em uma viagem de trem para Berlim. É uma história sombria, que passa para o leitor uma sensação de tensão e angústia. Há uma aura de vulnerabilidade em torno das mulheres, mostrando como elas sentem medo do assédio devido a uma questão de gênero, de falta de respeito dos homens contra uma mulher que viaja desacompanhada. As descrições de Berlim são muito bonitas, mesmo quando a personagem está prestes a se decepcionar profundamente com alguém em quem confiou. Esse conto em particular, me lembrou muito as novelas do Stefan Zweig, com seus enredos totalmente psicológicos e bem desenvolvidos, que levam o leitor a compartilhar dos sentimentos da personagem.

“Casa de boneca”, o meu conto favorito da antologia, aborda um tema muito relevante naquela época e que infelizmente continua atual. A discriminação por classe social, que é perpetrada pelos pais das crianças e que dá início ao ciclo da violência. O enredo desse conto gira em torno de um presente que uma criança recebe da tia, uma casa de bonecas. Aos poucos, todas as colegas da escola são convidadas a ver o brinquedo e se divertir, exceto as duas irmãs que são pobres e que têm como agravante o fato de ser filhas de uma lavadeira e de um presidiário. A autora discute essa questão ética através do olhar de uma criança, que se digladia consigo mesma sem saber se é certo ou errado não mostrar o brinquedo às duas. Mas, por outro lado, seus pais e familiares, além das amigas da escola são contra a presença das irmãs em qualquer casa de família. Os estereótipos, as classificações e as imposições sociais são ricamente trabalhadas nesse texto.

Os últimos cinco contos conversam entre si e tratam sobre uma família tradicional, infeliz e que vive de aparências. O uso do duplo, da ambiguidade e dos conflitos internos dos personagens são os recursos escolhidos por Mensfield para captar a solidão, a amargura, a tristeza e os desejos reprimidos de mulheres que não têm voz. A vaidade é outro tema recorrente nestes contos. Um dos personagens masculinos tem uma forte obsessão com o seu corpo e o compara sempre com os amigos que “têm uma barriga grande, estão sempre puxando as calças devido ao excesso de peso e são patéticos”. O medo desse homem é de se parecer com esses amigos e perder a sua imagem atlética, viril e sedutora. É interessante a autora colocar esses sentimentos em personagens do sexo masculino, pois sabemos que eles também se importam com o corpo, mas geralmente, o assunto é abordado sob a ótica das mulheres, como se esse fosse um tabu apenas feminino.

No geral, gostei muito dessa edição de 15 contos escolhidos por Katherine Mensfield (Record, 2016). A seleção de textos está muito caprichada, a tradução também está ótima e a sequência dos contos ajuda bastante na compreensão e conversa entre eles. A escrita da autora é fluida e bonita; os contos são muito bem escritos e cheios de reflexões que ficam subentendidas. As abordagens de Mensfield são contundentes ao passo em que não são grosseiras, são feitas na medida certa para que o leitor pense a respeito e compare com a nossa situação atual. Pode-se dizer que a obra da escritora nova zelandesa é universal e atemporal, que permite muitas releituras e muitas interpretações. Mais um clássico da literatura internacional de Língua Inglesa.

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