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A vida no aquário – os paradoxos entre privado e universal

Diariamente, quando vamos ao cinema ou ligamos a TV, nos deparamos com um aviso sobre gatilhos, ou seja, temas sensíveis que podem nos atingir de forma tão contundente e por isso, nos levarem a crises de depressão ou a outros extremos. Na verdade, muitos de nós não sabemos ao certo quais são os nossos gatilhos: os descobrimos à medida em que eles são disparados e se revelam para nós.

Desde criança, gosto de temas polêmicos e fortes. Sempre busquei por narrativas que me arrebatassem, que me fizessem pensar (não é à toa o slogan desse site) e talvez por isso também sempre tive gostos impopulares, explorava assuntos sobre os quais as pessoas fugiam ou apreciava coisas que ninguém mais entendia. A princípio, é difícil ser assim, pois, as pessoas não nos compreendem, muitas vezes nos excluem por sermos tão “do contra” e por buscarmos arrebatamentos que beiram à insanidade ou à irresponsabilidade.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que buscamos esses limites, estamos na verdade desejando respostas e também um equilíbrio, junto a uma estabilidade que só as pessoas sensatas possuem. Muitas vezes olhamos para elas com uma admiração, misturada com um fascínio e também com inveja, raiva. Sempre questionamos: como ela consegue ser tão perfeita, tão certinha, quando eu sou tão errada? Esse sentimento de estrangeirismo, de não-pertencimento é muito comum nas pessoas. E até mesmo nessas que achamos tão perfeitas e plenas: elas também sofrem com o estrangeirismo.

Diante de tanta confusão de sentimentos, ficamos perdidos. Perdidos no tempo, no espaço, mas principalmente dentro de nós mesmos e para enfrentar o dia a dia e o mundo nos prendemos em aquários, deixando de lado todo o oceano de possibilidades que é a vida. E como fazemos isso? A primeira ação é a famigerada zona de conforto. A partir do momento em que perdemos a confiança em nós mesmos ou não nos sentimos capazes de enfrentar as coisas, dizemos não a todas as mudanças possíveis, a todos os rompimentos necessários e, dizemos sim para muitas coisas que não gostaríamos de fazer, mas para sermos mais populares, aceitamos.

Esse conflito entre o certo e o errado, a luz e a escuridão, fazem parte de nós desde que o mundo é mundo. Por mais que saibamos não ser a vida nem as pessoas maniqueístas, ainda vivemos dessa forma, em um dualismo profundo, onde o meio-termo e o equilíbrio representam quase que o inferno na terra. Essa dualidade é na realidade uma construção social, que nos divide entre bons e maus, certos e errados, feios e bonitos, confiáveis e não-confiáveis.

Aliás, para quem é desse tempo, essa questão da confiabilidade era uma das ferramentas do finado Orkut, a primeira rede social da qual me recordo e que mesclava Instagram com Facebook e talvez o Tinder? Creio que sim. E uma de suas ferramentas era a confiabilidade do perfil. Ora, como posso definir uma pessoa como confiável ou não? Por suas atitudes, falas e escolhas? Pode ser, mas, lembrando que ninguém está dentro da cabeça do outro e ninguém pode saber as motivações de cada um para agir desta ou daquela forma. Como já dizia o velho ditado, calce os chinelos do outro antes de julga-lo.

Mas não é assim que agimos. Estamos sempre prontos para o julgamento e muitas vezes, esse julgamento começa conosco mesmo: nos comparamos com os outros, queremos ser como outras pessoas totalmente opostas a nós, desejamos o inalcançável, nos apoiamos em muletas tanto físicas quanto sociais, fugimos dos enfrentamentos e nos escondemos no sótão das nossas memórias acreditando estar ali as chaves para a nossa liberdade, a rota de fuga do nosso aquário para o mar que é a vida.

A situação de uma pessoa complexa e perdida dentro de si mesma se torna ainda mais evidente quando confrontada com parentes próximos muito perfeitos – ou que aparentam vidas perfeitas. Essa “cobrança” em seguir os exemplos ou ser parecido com os pais, irmãos, primos, tios é na verdade mais interna que externa. É também uma das máscaras sociais, mas, só quem vivenciou ou vivencia esse tipo de experiência entende bem essa cobrança velada de perfeição e sucesso, de continuidade, de conservadorismo.

Para algumas pessoas o rompimento com a família, com os princípios e com a religião é simples e fácil, enquanto para outros é quase impossível. Principalmente para os estrangeiros do mundo, presos em seus aquários, lutando para sair, sem saber o caminho. Para estes, muitas vezes o caminho é árduo, cheio de pedras, de equívocos e erros, alguns deles, irreversíveis. Como ainda vivemos em um mundo hedonista, cada um torna-se responsável por si mesmo e deve se virar para adquirir os princípios básicos da vida adulta: autoconfiança, responsabilidade, enfrentamento, quebra de paradigmas e seguir as regras. Seguir porque tem que seguir, mesmo que não façam sentido.

Clarice Lispector uma vez disse que preferia ser mais ingênua, que perceber as coisas é difícil e dói. Nesta mesma linha, Humberto Gessinger afirma que “ a dúvida é o preço da pureza e que é inútil ter certeza”. Eu adoro essas frases porque elas nos mostram o quanto é complicado entender um pouco mais as entrelinhas, quando temos uma epifania, não dá para simplesmente retroceder e fingir que não aconteceu. Algo dentro de nós muda e se transforma e nada mais será como antes. Essas podem ser metáforas para o crescimento pessoal e para as descobertas do mundo.

As transições da vida são duras, exigem muito de nós. E passar por elas em meio a um contexto social conturbado, cheio de incertezas, onde cada dia representa uma luta diferente, um lado diferente da mesma moeda e onde vivemos cada vez mais isolados e solitários, essas transições tornam-se muitas vezes insuportáveis. Lygia utiliza uma metáfora muito emblemática para essa situação de fuga e de medo do futuro, das cisões e das mudanças da vida, colocando sua protagonista observando a vida acontecer pela janela do sétimo andar. Sem se envolver com a vida, passamos a observa-la, como meros espectadores, tornando-nos superficiais, mesquinhos e vítimas transcendentais de algo maior.

Todas essas reflexões sobre tantos temas, mas focadas no nosso autoexílio, nos aquários da vida, vieram do livro Verão no Aquário, da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles. Entretanto, me identifiquei por diversas vezes com a protagonista, que vive no limbo entre o bem e o mal, que ao mesmo tempo em que deseja alcançar a suposta perfeição de sua mãe, quer se jogar sem medo na vida, pagar para ver se dar certo, se arriscar pelas veredas do mundo. Uma protagonista complexa, cheia de camadas, aparentemente superficial, mas muito profunda, que luta todos os dias com os seus demônios, procurando ser uma pessoa comum, normal e ter uma vida que faça sentido como os outros.

Não poderia falar sobre esse livro de outra forma, porque ele foi para mim uma epifania: li, absorvi parte dele, compreendi todo o simbolismo presente na escrita maravilhosa da Lygia, vivi por seis dias dentro da cabeça da Raíza, sua protagonista e ao mesmo tempo, dentro da minha também, observando como ela se parece comigo, com algumas amigas e com pessoas muito próximas a mim. Percebi aos poucos que a Raíza pode ser qualquer um de nós, que seus sentimentos de não-pertencimento, de estrangeirismo constante são metáforas para nossa própria falta de identidade; que a sua busca que não termina nunca é a nossa busca pela saída do aquário, que o mar tão citado ao longo do romance, é o infinito da vida e todas as possibilidades que temos ao nosso alcance mas que não sabemos usar e que muitas vezes, transformamos a nossa liberdade em libertinagem, perdendo completamente a noção de quem realmente somos e porque estamos onde estamos.

Cuidado se for ler esse livro! Cuidado por muitos motivos, mas principalmente, porque as imagens descritas por Lygia, os sentimentos da Raíza e as metáforas desse texto ficam gravadas na nossa mente e nos despertam gatilhos. A Raíza é um símbolo de uma geração perdida, que não acreditava mais em nada e só desejava liberdade, se soltar dos grilhões das condutas sociais impostas pelas famílias burguesas da época e, portanto, não sabia para onde ir, prendendo-se em prazeres efêmeros e superficiais.

Não se assuste se você se reconhecer na Raíza. Ela e todos os personagens que a cercam representam um pouco de nós, estejamos onde estivermos, em que tempo for. Essa é uma história sobre o cotidiano e as nossas lutas diárias em aprender a viver e a transgredir com responsabilidade. Portanto, é simbólico compreender que todos vivemos nos aquários do mundo e queremos muito sair, mas existem barreiras que nos impedem de chegar até o mar e sempre vão existir. Assim, Raíza é um personagem universal, criada nos anos 1960 e que sobrevive ao tempo e ao espaço para nos tirar da nossa zona de conforto e nos fazer pensar. E talvez, mudar.

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