opinião

Uma pausa para o cancelamento

É interessante pensar em como há pouco tempo um dos nossos maiores desejos era nos libertarmos dos rótulos impostos pela sociedade. Vivíamos em um mundo bem maniqueísta, onde ou éramos do bem ou do mal. O mundo era dos heróis ou dos vilões. Sofríamos muito com isso porque é claro que não somos apenas uma coisa ou outra, somos muito mais complexos e nenhum de nós é totalmente bom ou mal.

Na pós-modernidade, esses conceitos dualistas começaram a ser desconstruídos e nós obtivemos a liberdade de sermos o que quisermos ser. Em um primeiro momento, isso parece bom, entretanto, o que de fato acontece é que nos sentimos mais perdidos que nunca. Existe a cultura do politicamente correto, que nos exige uma postura muito cruel de comportamento porque precisamos ser militantes de todas as causas que não cabem aqui. Mas, sendo muito honestos: nós somos tudo isso? É possível uma única pessoa ser tão perfeita? Acredito que estamos todos tentando aprender mais sobre todos esses movimentos e mudanças de comportamento social para nos adequarmos a elas.

O maior exemplo da atual situação foi a casa do Big Brother Brasil 2021, onde não sei se propositalmente ou não, foram colocados representantes de todos os movimentos sociais que não conversavam entre si. Existia naquela casa uma polarização de ideias que impedia o diálogo construtivo e a troca. Todos queriam falar, mas ninguém estava disposto a ouvir. O resultado foram brigas homéricas, uma audiência fenomenal e uma prova do quanto as pessoas atualmente estão obcecadas pela vida alheia e pelo conflito.

O problema é que poucos analisaram a situação através do contexto sócio cultual e pensaram nas consequências dessa polarização para a nossa sociedade. É notório que existe uma falta de entendimento muito grande entre as pessoas e que a saída encontrada para esses conflitos é o cancelamento. E o que viria a ser isso? Segundo a psicóloga e escritora Natalia Timerman, “o cancelamento está relacionado à falta de condições de enfrentamento do ser humano. Este pode vir através de um repúdio por uma ideia contrária à sua visão de mundo ou de uma identificação com o interlocutor de um discurso horrível”. Então, se nos identificamos com uma fala que abominamos e não sabemos lidar com ela, escondemos essa fraqueza. É como guardar itens que não queremos ver dentro de gavetas, assim não precisamos enfrenta-las.

Porém, essa atitude nos leva a uma imaturidade emocional que vem crescendo assustadoramente nas últimas décadas. Se pararmos para pensar e analisar dados, percebemos que o número de suicídios vem aumentando e os males do século são a depressão e a ansiedade. Necessitamos de aprovação constante e além disso, por mais cercados de pessoas que estejamos, o sentimento de solidão é permanente. Como temos dificuldades de enfrentar esses demônios, utilizamos muito as redes sociais como forma de existência. Postamos e compartilhamos o nosso dia a dia de forma intermitente e esperamos a aprovação em forma de likes. É triste pensar que muitos jovens se mataram por falta de likes. Mas a pergunta central é: como lidar com isso? Porque essa aprovação é tão importante se há poucos anos estávamos lutando contra as convenções?

É paradoxal essa questão de estarmos sempre dentro de caixinhas e de não querermos estar dentro delas, mas ao mesmo tempo, utilizarmos um recurso das redes sociais chamados filtros. Você já reparou em quantos filtros estão disponíveis no Instagram? Eles servem não apenas para disfarçar as nossas noites mal dormidas, as imperfeições da nossa pele, os nossos cabelos brancos, como também para nos rotular. Sim, existem filtros com todos os rótulos que imaginarmos e se não existirem, podemos cria-los. Mas porque faríamos isso se lutamos para não estar dentro de caixinhas? Na verdade, estamos apenas tentando nos encontrar e termos uma identidade.

A falta de identidade é um dos males da contemporaneidade. Queremos ser tudo e mais um pouco, mas ao mesmo tempo, não sabemos mais quem somos. Ou quando sabemos, muitas vezes temos vergonha de sermos nós mesmos por causa dos julgamentos a que estamos expostos. A cultura do cancelamento é tão perversa que ela provoca mortes, depressão, isolamento (mesmo em tempos normais), crimes de ódio, falta de diálogo e acaba interferindo até mesmo nas políticas públicas. É difícil definir objetivos quando se está esbarrando na existência do outro, é como se todas as pessoas com todas as suas diferenças não pudessem conviver no mesmo tempo e espaço. Isso é horrível e precisa ser discutido.

Mas de onde vem o cancelamento? Esse é um fenômeno social moderno, que vem crescendo a partir da mudança de paradigmas da sociedade. Nós não mudamos tanto quanto parece, mas, antigamente, os padrões de comportamento eram diferentes. Então, fazia parte das regras guardarmos para nós as nossas opiniões sobre os outros. Por exemplo, se fossemos em um restaurante e não gostássemos da comida ou do atendimento, saíamos e não voltávamos mais. O nosso descontentamento ia embora conosco e no máximo comentaríamos em casa ou com amigos próximos sobre a nossa experiência infeliz. Atualmente, quando essa mesma situação acontece, imediatamente, sem pensar, vamos em nossas redes sociais e desclassificamos o estabelecimento, expomos todo o nosso mal-estar para quem quiser ler e dependendo do nosso alcance, prejudicamos e punimos esse lugar de forma muito cruel e talvez desproporcional à nossa experiência ruim.

O que não pensamos quando agimos assim, é que por trás desse estabelecimento comercial existem pessoas que podem perder seus empregos ou fechar suas portas por um simples capricho nosso. Karl Ove Knausgard em um dos livros de sua série Minha Luta (Cia das Letras, 2015/ 2020), faz uma paráfrase sobre um evento bíblico do apedrejamento de Maria Madalena, onde “Jesus diz: atire a primeira pedra quem não tiver defeitos”. Ou seja, nenhum de nós tem o direito de julgar ou cancelar quem quer que seja. Somos todos cheios de imperfeições, de dias ruins, de coisas que dão errado e de crises de sincericídio. Se observarmos isso de forma imparcial, veremos o quanto é ridículo expressar tudo o que sentimos ou pensamos.

Trazendo a discussão para a Literatura, observamos uma comunidade leitora muito pequena no Brasil. Mas que é ótima em julgar os outros. Então, somos cancelados pela quantidade de livros que lemos, que compramos e até mesmo que guardamos. Também somos julgados pelas nossas escolhas e pelas não-escolhas. Assim somos muito intelectuais por lermos Thomas Mann e outros clássicos, somos chatos por lermos Proust, somos fúteis por lermos livros de memórias ou romances policiais e somos elitistas por gostarmos ou mesmo lermos Clarice Lispector.

É exigido de nós escolhermos sempre representatividade nas nossas leituras. Mas porque pegaríamos algo de que gostamos, que nos traz um pouco de conforto e transformaríamos em problema? É sim importante lermos a diversidade, mas e se não gostarmos? Vamos poder nos expressar livremente ou teremos de fingir uma simpatia por algo que não nos cativou? E nesse caso, não me refiro ao tema abordado no livro, mas muitas vezes, à forma, à escrita, ao estilo ou à narrativa. Desgostar de determinado livro escrito por uma pessoa não-branca não significa que desejo silenciar sua voz ou negligenciar seu sofrimento ou apagar sua história. Posso apenas não ter me conectado com o texto assim como muitas vezes não me conecto com o texto de pessoas brancas, inglesas, norte-americanas ou best-sellers aclamados.

Considero que é difícil existir no mundo de hoje e ser autêntico. Ninguém quer ser alvo de cancelamento, muito ao contrário. Queremos aprovação, ser queridos e estimados. Mas para tanto, é como se precisássemos pegar todo o nosso passado, toda a nossa bagagem cultural e nossa vivência e joga-las no lixo. Para assim renascer como uma fênix renovada de sentido e super contemporânea, atualizada com os novos paradigmas sociais. Ora, assim o Alzheimer seria um presente e não uma doença. Perder a memória seria a glória. Mas o que somos nós sem o nosso passado, sem as nossas experiências e memórias? Se já é difícil ter uma identidade com toda essa bagagem, sem ela, não somos nada.

Precisamos lembrar sempre que o que nos trouxe até aqui foram as nossas experiências de vida, nossos erros e acertos, nossas escolhas. Para sermos reais precisamos viver a vida de verdade e não a transcendência das redes sociais. Precisamos sentir o gosto das bananas, o cheiro da grama recém cortada, chorar depois de uma briga em família, correr na pista de corrida e sentir o vento batendo no nosso rosto. Só assim vamos crescer e nos sentirmos vivos. Talvez esse seja o segredo do sucesso de Proust e de Karl Ove Knausgard, temos paciência para ler experiências reais porque não as temos vivido ultimamente, ao mesmo tempo em que temos uma obsessão pela vida real dos outros e queremos nos sentir reais e parte do mundo. Se pararmos para pensar, nossas relações são superficiais e tendemos a criar vínculos falsos com produtores de conteúdo na internet, achando que os conhecemos, quando na verdade, somos seguidores, números e meros repetidores de ações cotidianas.

Quando a sensação é de vazio existencial, gosto de voltar para alguns livros que me trazem um pouco de conforto, de quentinho no coração e até mesmo de lugar. Ler por exemplo Zafón, Stephan King, Proust, Alice Munro ou Elena Ferrante me trazem uma alegria e uma sensação de pertencimento assim como comer um pão de queijo de Araxá, visitar a casa da minha avó lá em Araxá também ou escutar a minha playlist de rock dos anos 90. Essas coisas fazem parte da minha existência e me ajudam a definir minha identidade. Sem essas referências, talvez eu não conseguisse saber exatamente quem eu sou ou como me transformei na pessoa que sou hoje ou que tento ser.

Isso pode parecer brega ou piegas? Ah, sim, claro. Mas lembre-se de que aquelas que podem ser as suas coisas favoritas da vida podem ser bregas para mim. Essas diferenças não fazem de nós inimigos, mas sim pessoas distintas que tentam existir no mesmo tempo e lugar e que no fundo, podemos ter mais em comum do que parece à primeira vista. O mais importante é aprendermos a respeitar uns aos outros e não julgarmos as escolhas e o comportamento de quem quer que seja, afinal, não queremos estar neste lugar de cancelamento.

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