crítica

Gira o livro – Confidências vividas e inventadas – Daniela Cais Chieppe e Letícia Cais Chieppe Carvalho

Uma leitora voraz reconhece outras leitoras vorazes a léguas de distância. Lendo seus textos então é possível reconhecer suas referências literárias, de cultura pop e de vida. Foi assim que li Gira o livro (Adelante, 2021) em uma sentada. Os textos conversaram comigo de forma profunda e me levaram a muitas reflexões interessantes e necessárias sobre a pandemia, o cotidiano, redes sociais, polarização, educação, feminismo, síndrome da impostora e até mesmo, moda.

A ideia desse livro de pequenos ensaios e crônicas veio no período de isolamento, quando mãe e filha descobriram que as duas estavam produzindo a todo vapor durante esse momento distópico. Assim, reuniram esses escritos e, a partir de uma palavra que delimita os capítulos ou sessões do livro, cada uma apresenta um ponto de vista através de um ensaio ou uma crônica. É muito bonito ver o desenvolvimento textual das duas e suas opiniões que se complementam e que conversam entre si, com muita naturalidade e leveza.

Mesmo antes de ser mencionada em um ensaio, Clarice Lispector estava ali: no lirismo dos textos e na visceralidade da alma; nas reflexões e questões filosóficas levantadas por mãe e filha, que carregam consigo uma farta bagagem literária advinda de mulheres fortes e determinantes para o pensamento crítico contemporâneo e principalmente para a desconstrução de conceitos arcaicos e nocivos à nossa existência. A inquietação dessas duas mentes me lembrou demais a escrita da grande Virgínia Woolf e claro, da Clarice.

Comentarei alguns dos textos que mais me chamaram a atenção de forma breve, para aguçar a vontade de vocês leitores, a se aventurarem por essas 171 páginas que passam voando, mas que permanecem conosco ao longo do tempo. O primeiro ensaio que quero destacar é o que abre o livro chamado “A um passo do apocalipse” onde a autora conta sobre o seu último dia antes do isolamento. Cada um de nós teve um dia diferente, mas os sentimentos que ela coloca no texto são universais.

A gente nunca faz ideia de quando algo vai se tornar um marco nas nossas vidas, afinal, muitas vezes é impossível prever. Por alguma razão, esse último dia passado na rua rindo, aproveitando, estudando, ficou guardado na minha memória. E que coisa boa é relembrar! Se a pandemia veio nos ensinar uma lição, acredito que seja para valorizarmos mais o estar com o outro, experienciar coisas novas e viver de forma mais autêntica e intensa que pudermos, pois, em momentos como este, uma boa memória tem valor infinitamente superior a qualquer coisa material”.

Quem não compartilha desses sentimentos?!

Em “Rito de passagem” há uma crítica contundente ao nosso sistema educacional que traz diversas reflexões e discussões urgentes para a vida contemporânea. Esse texto me lembrou bastante a discussão proposta por Michel J. Sandel em seu livro “A tirania do mérito”, onde ele aponta várias consequências para os jovens devido à competição exacerbada que deixa de ser saudável para ser nociva e prejudicial. Li esse texto em voz alta para minha filha de quinze anos e ela se identificou. Assim como eu também me identifiquei e creio que muitos jovens se sentem igual, mas se convencem de que não há perspectivas de mudanças em relação ao sistema meritocrático.

Ócio produtivo” é um dos meus textos favoritos desse livro, onde a escritora reflete sobre a questão da produtividade exacerbada, a ocupação constante do tempo e da mente, que nos impede muitas vezes de assimilar as informações apreendidas ao longo do tempo. É engraçado que estamos sempre com pressa, temos sempre um compromisso urgente; atividades reflexivas e demoradas, que demandam atenção e tempo não nos interessa. A autora define o tédio de forma elegante e sensacional:

O tédio é meio isto: uma vontade doida de ter tempo para fazer nada e uma doideira maior ainda para arrumar alguma coisa legal para fazer, algo que seja capaz de tornar aquele momento-nada em uma lembrança memorável”. Simplesmente demais! Levarei essa definição de tédio para a vida! Valeu, Dani!

Barriga de coragem” fala um pouco sobre a maternidade e sobre o costume de escrever cartas, o que me trouxe lembranças bonitas da minha juventude, quando me correspondia com minha prima Daniela e o quanto era divertido trocar essas missivas todas as semanas, de todos os meses do ano. E como bem colocou a autora, tínhamos tempo para elaborar nossos pensamentos e, portanto, mais certezas ao dizer as palavras. Bons tempos!

Outro dos meus textos favoritos de Gira o livro é “A moda é o mundo”. Achei esse ensaio libertador e revolucionário. Você, leitor desse site sabe a origem do salto Anabela? Pois eu, até uma semana atrás não sabia e descobri lendo esse ensaio. Simplesmente adorei essa história e principalmente a forma como a autora enxerga a moda, como algo revolucionário, artístico, forma de expressão e de comunicação. Na verdade, sempre tive esse pensamento, mas não tão elaborado como li aqui. Recomendo que leiam também e se libertem!

Cárcere digital” começa assim: “Quando será que nos tornamos prisioneiros de uma tela? Quando é que os likes passaram a validar mais as pessoas que os seus gestos de gentileza? (…) Ironia do destino é termos criado redes sociais para nos conectarmos com as pessoas e estarmos mais desconectados do presente momento”. Acho que nem preciso comentar mais nada sobre esse ensaio contundente que expressa a nossa dependência de likes e de aprovação nas redes sociais; conversa sobre a nossa prisão digital e sobre o celular ser quase uma extensão do corpo da pessoa, como diz um professor da Unip. É preciso seguir a indicação da autora: jogar fora esse aparelho e fazer a única coisa possível sem ele que é viver!

Sistema celular” conversa com o ensaio anterior, onde a escritora divaga sobre a nossa curiosidade perversa em relação à vida alheia: “o que fazem, o que comem, como vivem”. É complicada a situação de uma existência pautada pelas redes sociais e pelo desejo de se parecer com o outro e até mesmo de ser o outro. Ela diz que “eu chamo de fratura exposta dos valores, porque exibe a miséria e a hipocrisia, por isso dói e desprotege a sociedade”. Infelizmente tenho que concordar.

Cheia de vida” faz um diálogo lindo com “A insustentável leveza do ser” do Milan Kundera. Texto filosófico e belo refletindo sobre a maturidade da leveza e a nossa busca eterna por esse sentimento de plenitude. “Espelho meu” é uma discussão necessária sobre a ditadura da beleza: lipoaspiração, dietas infundadas, remédios para emagrecer e o procedimento que eu mais abomino na vida – a tal da harmonização facial. Parecemos robôs, todos iguais. Ninguém mais tem expressão, características únicas e poderosas. É um texto que dialoga profundamente com outro livro que gosto muito “O mito da beleza” da Naomi Wolf, onde percebemos o quão escravizadas somos desde que o mundo é mundo.

Feminista, sim” é outro texto imprescindível que dialoga com a dificuldade encontrada por todas as mulheres de simplesmente existirem em paz. “Um ponto escuro na luz da cidade grande” foi outro texto que conversou diretamente comigo no sentido de se encaixar ou não nos lugares, pertencer ou não a uma sociedade e principalmente sobre o desejo de algumas pessoas de se tornarem invisíveis aos olhos das outras. “A sujeira da vizinha” é um ensaio sobre a nossa alma e a forma como a externamos. Há uma metáfora com as flores que caem das árvores e permanecem na calçada. Para algumas pessoas é uma sujeira. Para outras (como eu) é um tapete florido, um enfeite ou um lugar para tirar fotos dos livros e publicar aqui (rsrs). E assim é nossa alma: vemos as situações de acordo com o que guardamos dentro de nós.

Finalizando a resenha com chave de ouro, temos o ensaio “Autobiografia”. Digo que as autoras têm um dom que eu não tenho: uma escrita concisa e lírica. Vou deixar um trechinho desse ensaio que me representa tão bem e que eu gostaria de ter escrito com essas palavras: “nós somos as coisas que amamos. Somos a coleção de momentos banais que carregamos no peito para lá e para cá e que ninguém é capaz de tirar de nós”.

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