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Literatura comparada – uma análise entre o clássico “Menina má” de Willian March e o contemporâneo “Precisamos falar sobre o Kevin” de Lionel Shriver

  1. Introdução

Sabe quando você lê um livro, gosta muito dele, seja devido à temática, enredo ou mesmo pela narrativa e começa a procurar outros títulos semelhantes? Ou mesmo quando você finaliza uma leitura no Kindle e ele te recomenda outros livros semelhantes àquele finalizado? Estamos falando sobre os estudos de Literatura Comparada, quando os críticos se debruçam sobre alguns temas, autores ou premissas para comparar uma narrativa com a outra, elaborando os ditos e os não-ditos em cada uma delas, as diferenças e semelhanças, os personagens, o narrador e tantos outros pontos em comum ou pontos divergentes em seu objeto de estudo que é o texto.

Esses estudos são muito valiosos para a Literatura e sua história, pois eles nos mostram que alguns assuntos são universais e atemporais, narrados em várias épocas diferentes, de formas diversas, mas com o mesmo objetivo: discutir questões polêmicas ou aquelas inerentes ao ser humano desde a Antiguidade. Dependendo da forma como o crítico analisa essas narrativas, algumas consideradas ultrapassadas e legadas ao esquecimento voltam à tona e outras consideradas por algumas pessoas como “literatura menor” são elevadas a um nível de estudo muito alto, mostrando que todas as obras literárias têm algo a dizer, desde que lidas com profundidade e utilizando o senso crítico.

O objetivo dessa análise curta é comparar o clássico da década de 1950, Menina má do escritor norte-americano Willian March com a obra contemporânea dos anos 2000, Precisamos falar sobre o Kevin, da também norte-americana Lionel Shriver. O tema que une as duas narrativas são crianças assassinas. É um tema pesado, complexo e que envolve todas as pessoas em volta da criança em questão. Cada um dos autores escolheu uma forma diferente de contar sua história, considerando também o contexto social da época e o local onde se passa cada narrativa. Neste texto, vamos analisar três pontos importantes nessas duas narrativas: enredo, narrador e personagens.

2. Os enredos

No clássico Menina má, temos como protagonista a pequena Rhoda Penmarch de oito anos, uma garotinha peculiar, perfeccionista e solitária que vai morar com a mãe em uma cidade do interior dos Estados Unidos após saírem de Baltimore por problemas de relacionamento na cidade. As duas chegam acompanhadas do Sr. Penmarch, que logo viaja para a América do Sul a trabalho, deixando as duas sozinhas nesse lugar pacato, conservador, onde todos se conhecem e sabem sobre a vida uns dos outros. Christine, a mãe de Rhoda começa então a procurar uma escola para a filha e encontra algumas dificuldades, pois a escola é muito tradicional e não costuma aceitar crianças “de fora”. Apesar desses entreveros, ela consegue matricular a filha na Escola Primária Fern e o livro já começa com o conflito que vai determinar o destino dos personagens que é o momento em que Rhoda, após tanto esforço, não ganha a medalha de caligrafia no final do ano letivo, perdendo-a para o seu coleguinha Claude Daigle.

Em Precisamos falar sobre o Kevin, conhecemos a história do casal Eva e Franklin, que se apaixonam durante a juventude, têm uma vida agitada, cheia de viagens, jantares, festas, amigos, porém, Franklin deseja muito ser pai, enquanto Eva não quer ter filhos. Ela acaba cedendo por amor ao marido e o filho Kevin, desde pequeno se mostra diferente das outras crianças, ele é ardiloso, dissimulado, provocador, gerando muitos conflitos na família. Franklin, como fica pouco em casa, não vê esse lado do filho. Ao contrário: o vê como uma vítima, uma criança dócil e incompreendida. O resultado dessa dinâmica familiar é um massacre na escola de Kevin, quando o garoto está com quinze anos. Isso não é nenhum tipo de spoiler, pois, no primeiro capítulo, já sabemos que Eva está visitando Kevin no reformatório juvenil e a história da família, até o seu final trágico é contado em retrospecto.

O desenvolvimento desses enredos é bem diferente: enquanto a narrativa de March é enxuta, limpa e breve, a de Shriver é densa, longa, extensa e imersiva. Os personagens de Menina má são conhecidos em sua superfície, temos um perfil de cada um deles, mas sem muitos aprofundamentos. A história gira mais em torno da mãe, Christine e de seu conflito em relação à filha, se a denuncia ou não às autoridades quando descobre que Rhoda é uma criança assassina. Essa ambiguidade da mãe é muito bem retratada na obra, pois o leitor tem acesso aos pensamentos da personagem e pode conhece-la melhor. Já em Precisamos falar sobre o Kevin, a abordagem é diferente. A autora coloca o leitor dentro da história e segura o mistério sobre os acontecimentos até o final da narrativa. O leitor sabe e ao mesmo tempo não sabe o que aconteceu com as pessoas envolvidas na desgraça provocada por Kevin. Ela busca junto com o leitor entender o que levou esse garoto a fazer o que fez e temos uma perspectiva muito ampla sobre a personalidade de todos os personagens da história. Mas, o enredo principal gira em torno do Kevin mesmo.

3. Os narradores

Willian March em seu poderoso Menina má, optou por um narrador onisciente em terceira pessoa. Dessa forma, podemos dizer que seu narrador é confiável e que os fatos contados nesse enredo são verdadeiros. Ele não entrega de bandeja a história para o leitor. Aos poucos ele vai colocando elementos que já presumimos que vão ser importantes para o desfecho da trama. Como o foco do romance está no conflito vivenciado pela mãe ao descobrir que a filha é uma assassina, o leitor tem acesso aos pensamentos dela, através de um fluxo de consciência, que, foi muito bem executado no texto, mostrando o desespero de Christine ao longo do tempo, junto à sua degradação. Para o tipo de história que March desejava contar, sua escolha de narrador foi muito acertada e feliz. O autor não subjuga o leitor em momento algum e sua narrativa é muito fluida, sendo este um livro vira-páginas, porém com reflexões profundas sobre a mente humana.

Lionel Shriver optou por uma narradora em primeira pessoa e também pelo romance epistolar para contar sua história. Ficamos sabendo sobre essa família disfuncional através de cartas que Eva escreve ao seu marido, mostrando a ele as consequências de não ter lhe dado ouvidos quando ainda era tempo de impedir Kevin de agir como agiu. Devido a essa escolha de narrativa e de narradora, o relato de Eva passa a ser não-confiável, afinal, ela está contando a sua versão dos fatos e nós não temos acesso aos pensamentos dos outros personagens, restando apenas as impressões dela para nos guiar por essa tragédia. Por ser um romance epistolar, esse livro não agradou a todos que o leram. Muitos leitores o abandonaram por causa da densidade das cartas e da lentidão da narrativa. Ao contrário do livro de March, Shriver detalha bastante as relações dos personagens, os eventos e a personalidade de cada um deles. Ela procura ser imparcial e não colocar o leitor contra Franklin, porém, é difícil ficar imparcial em uma narrativa em primeira pessoa. As cartas são longas, constituindo capítulos extensos em forma de monólogos, ou pode-se dizer, de uma autobiografia com ênfase no filho mais velho.

Para que um romance dê certo e convença o leitor, o narrador é fundamental. Neste caso, eu gosto dos dois narradores dentro da proposta de cada escritor. March escreveu um livro de suspense que cumpre o seu papel de entreter, discutir o tema principal e de acompanhar uma mãe desesperada e sozinha lutando contra o bem e o mal para tomar uma decisão em relação à pessoa que mais ama no mundo. O livro não traz revelações bombásticas e nem tem um mistério a ser desvendado. O enredo é mesmo focado na mãe e nas suas ambiguidades.

Shriver já desejava discutir outras questões, tais como a maternidade compulsória, culpa, responsabilidades, destino, escolhas e a psique humana. Ela faz isso muito bem dentro da sua proposta. Na realidade, o leitor não precisa comparar a história de Eva como uma verdade absoluta, mas ele pode refletir sobre o que ela está discutindo com o marido nas cartas e pensar sobre o assunto. Ela discute muito a educação dos filhos e como esse detalhe pode interferir na personalidade da criança. O livro de Shriver é moderno, é contemporâneo e contempla questões do nosso século, que em 1950 ainda não eram discutidos abertamente. Apesar de sua intenção parecer ser apenas discutir questões importantes da vida moderna, ela nos apresenta um final devastador e surpreendente. Ao contrário de March.

4. Os personagens

Menina má apresenta um núcleo de personagens enxuto, porém importante. Todos os personagens apresentados pelo autor têm sua função na história. As protagonistas são Rhoda, a garotinha assassina e sua mãe Christine. O pai de Rhoda é ausência. Ele só aparece no final do livro e ainda assim, se mostra como realmente é: ausente. Enquanto a filha é dissimulada, perfeccionista, esforçada, metódica e fria, a mãe é o seu oposto: simplória, muito bonita e atraente, se apresenta um tanto quanto blasé, mas é gentil, prestativa e simpática com todos.

Os personagens coadjuvantes são os vizinhos, principalmente a Sra. Breedlove e seu irmão Emory, que é muito amigo de um repórter investigativo e que dará algumas chaves de respostas para Christine durante a sua investigação particular de crimes em série. Conhecemos ainda as irmãs Fern, responsáveis pela escola onde Rhoda estudou, a família Daigle, com toda a sua excentricidade e o zelador Leroy, personagem muito complexo e interessante que vai discutir questões sociais, maldade intrínseca, inveja e outros sentimentos tão comuns ao ser humano.

Cabe aos personagens de March protagonizarem discussões muito pertinentes sobre a vida, a criminalidade, a violência, as diferenças sociais e os costumes da época. É fácil se localizar no tempo e no espaço narrados por March nesta obra, mesmo sem saber em que ano foi escrita. Os diálogos, as ações dos personagens e os seus hábitos situam o leitor temporalmente, apontando as desigualdades, a falta de oportunidades e as motivações para crimes hediondos. O autor através do personagem Reginald (amigo de Emory), cita diversos crimes reais cometidos por mulheres nas décadas anteriores, discorrendo sobre o seu modus operandi e questionando se a maldade humana é intrínseca ou construída por fatores deterministas. Lembrando que na época estavam começando as conjecturas sobre os perfis dos assassinos seriais, estudiosos estavam elaborando pesquisas sobre o tema, que estava bastante em voga.

Precisamos falar sobre o Kevin apresenta quatro personagens principais: Eva, Franklin, Kevin e Celia. Todos eles são muito bem desenvolvidos através do ponto de vista da narradora, que conta um pouco sobre a juventude dela e de Franklin, mostrando ao leitor como eles aproveitavam a vida, tinham empregos que amavam, ganhavam dinheiro e eram livres. Havia um acordo tácito entre o casal em não ter filhos, até que Eva percebe que Franklin desejava ser pai, pois o observava muito e quando os amigos começaram a ter filhos, ele demonstrava muito afeto por essas crianças, mostrando-se como um “homem de família”.

Sem pensar muito nas consequências, ela resolve tentar engravidar e logo consegue, nascendo assim Kevin. Desde o início ela e o filho travam uma relação conflituosa, muitas vezes de repulsa (tudo isso é muito bem elaborado no texto), enquanto Franklin e Kevin vivem uma relação harmoniosa, porém, o filho é muito mimado pelo pai e na visão de Eva, prejudica todas as relações familiares. Já Celia é uma garotinha comum, tem um bom relacionamento com todos, é meiga e doce, ao contrário do irmão.

Eva é uma mulher que claramente não nasceu para ser mãe. Ela se descreve como uma aventureira, daquelas pessoas que gostam de viajar, de sair para beber, de ficar acordada até bem tarde e dormir quando tem sono. Seu trabalho lhe permitia tudo isso, ela tinha uma agência de viagens, onde ela própria testava os destinos, descobrindo o lado B de cidades, países e apresentando aos seus clientes através de itinerários fora do comum, o que atraia muitos turistas. Após o nascimento de Kevin ela precisou se afastar do protagonismo da própria agência, delegando esse trabalho a outras pessoas, o que fez com que houvesse uma queda na produtividade da agência e nos lucros também.

Franklin trabalhava com publicidade. Também tinha horários flexíveis e ganhava bem. Ele é apresentado como um bon-vivant, que gosta de sofisticação e de alguns luxos que só o dinheiro permite. Pode-se dizer que Franklin é o típico norte-americano: produtividade + trabalho + família = sucesso. Quando os filhos vieram, ele comprou uma casa grande, ultramoderna nos subúrbios de Nova York e passou a trabalhar durante a maior parte do dia, deixando a educação dos filhos por conta da esposa. Típico comportamento de alguns homens em uma sociedade patriarcal.

Por estar ausente o tempo todo, ele não conseguia captar aspectos da personalidade do filho que a esposa tentava lhe mostrar. Percebia tudo como se fosse exagero, implicância da mãe ou até mesmo rancor por ter precisado se afastar de suas atividades profissionais para cuidar dos filhos. Kevin é apresentado como um garoto de personalidade dúbia: com a mãe, é provocador, agressivo, desagradável. Com o pai, é o filho exemplar. Uma certeza o leitor pode ter: Kevin é muito dissimulado, mente com facilidade, engana as pessoas e sente por elas um desprezo enorme, assim como Rhoda e Leroy no clássico Menina má.

Podemos concluir também que tanto o Sr. Penmarch de Menina má quanto Franklin de Precisamos falar sobre o Kevin são ausentes. A ausências desses personagens é palpável nas duas narrativas, cada uma a seu modo. É interessante esse ponto em comum: famílias desestruturadas de alguma forma geram psicopatas. Claro que essa não é uma verdade absoluta, porém, sempre que acontecem casos como os de Rhoda e Kevin na vida real, é fácil descobrirmos que essas crianças foram expostas a algum tipo de ausência, de episódios de bullying ou a alguma situação traumatizante que pode ter servido de gatilho para o crime.

5. Considerações finais

Conforme exposto nos itens anteriores, os dois livros são ótimos em suas propostas e discutem o tema com responsabilidade. Nem March e nem Shriver se colocam como juízes de valores ou definem um perfil de crianças assassinas em série. O objetivo deles é discutir a maldade humana, de onde ela vem e porque fazemos o que fazemos. Menina má apresenta uma solução que, a partir da metade da narrativa, já é previsível para o leitor, meio que um Deus ex machina. Entretanto, apresenta discussões muito boas sobre vida e destino, responsabilidades e o nosso posicionamento diante do insólito.

Precisamos falar sobre o Kevin traz outra proposta. A autora coloca um elemento desconcertante dentro da típica família norte-americana. Ela mostra os bastidores da vida moderna e do sonho americano. O contraponto entre o pai e a mãe, as diferenças do casal, os ditos e os não-ditos, o antagonismo dos filhos: enquanto um é totalmente dissimulado a outra é gentil, carismática e verdadeira. É mais ou menos o mesmo contraponto entre Christine e Rhoda: uma é sociável, bela e sensível. Enquanto a outra é uma pedra de gelo.

Quanto ao desfecho de Precisamos falar sobre o Kevin, é surpreendente para quem não pegou spoilers. Eu não esperava por esse final até as últimas cartas. Creio que na verdade, até a última mesmo. Considero este um dos meus livros favoritos da vida. Ele me despertou muitas reflexões sobre como educo a minha filha, como faço minhas escolhas e sobre responsabilidade. O sentimento de culpa que Eva carrega consigo é acachapante. Menina má para mim, é um bom livro de suspense. E para leitores que não gostam de textos muito densos e longos, esta é uma excelente aposta.

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