crítica

Menino de Engenho – José Lins do Rego

Através de uma escrita lírica, poética e concisa, o escritor paraibano José Lins do Rego abre uma sequência de histórias que ficaram conhecidas como Ciclo da Cana de Açúcar, com o seu potente Menino de Engenho (Global, 2021). Neste primeiro livro, conhecemos Carlinhos, um garoto que ao perder os pais vai viver no engenho de seu avô, o poderoso Engenho Santa Rosa. Lá ele viverá algumas aventuras e desventuras, crescendo junto aos seus pares e também convivendo diretamente com os ex-escravos de seu avô que permaneceram no Engenho.

Narrado em primeira pessoa, após um distanciamento daquela época de meninice, o personagem Carlinhos rememora sua infância, mostrando ao leitor muitos aspectos sociais daquele tempo e o funcionamento dos engenhos: como eram mantidos, como os grandes senhores de engenho enriqueciam, as diferenças sociais e raciais, a divisão de tarefas, o machismo arraigado e o patriarcalismo presentes nas fazendas e nas cidades no início do século XX.

José Lins do Rego tem propriedade para contar essas histórias pois viveu e cresceu em um engenho, sabendo bem como aconteciam as coisas por lá e vivenciando essa proximidade limitante da casa grande e da senzala. Esse conceito que atualmente é bastante criticado por sua hegemonia branca e também por ser considerado o precursor do preconceito arraigado no Brasil é mostrado no livro de Lins do Rego através dos olhos de uma criança que não coloca maldade nas ações dos mais velhos, nas discriminações, mas faz observações muito verossímeis que nos levam à reflexão sobre essas diferenças abissais e principalmente na culpabilidade dos negros em qualquer situação envolvendo uma pessoa branca.

O período histórico em que se passa a narrativa é o início do século XX, logo após a abolição da escravatura, onde as pessoas escravizadas eram libertas das senzalas sem ter para onde ir, o que comer e um trabalho garantido para sua sobrevivência. A maior parte da população escravizada era analfabeta, o que dificultava muito o seu ingresso no mercado de trabalho. Existia ainda um enorme preconceito racial, colocando essas pessoas em um nível inferior ao das pessoas brancas, impedindo assim uma mobilidade social e a dignidade do indivíduo como pessoa.

Dessa forma, muitos ex-escravizados após uma tentativa frustrada de viver em liberdade, acabavam voltando paras as fazendas onde trabalhavam, pedindo aos ex-donos que os recebesse de volta, garantindo assim comida, vestimenta e um lugar para morar. Porém, munidos de uma empáfia sem tamanho, esses senhores de terras mantinham essas pessoas como escravas, sem receber uma remuneração por seu trabalho, passando os senhores por pessoas boas apenas por lhes garantirem um teto, um prato de comida, roupas e o mínimo de dignidade da pessoa humana.

Todas essas vicissitudes aparecem em Menino de Engenho na voz de Carlinhos, um menino solitário, órfão, que gosta de ouvir os canários cantarem, de montar em seu carneiro para passear sem companhia, também gosta bastante de tomar banho de rio com os primos e os “moleques”, que são os filhos dos negros que trabalham no engenho do avô. Essa proximidade com as crianças que vivem na senzala é um motivo de preocupação das tias e do Sr. José Paulino, patriarca da família. Em um trecho do romance, Carlinhos chama os “moleques” para brincar com ele, ao que eles respondem “brigam com a gente”, mostrando que alguém já os proibiu de sair com o “Menino de Engenho” por não pertencerem à mesma classe social e à mesma raça.

Carlinhos em sua solidão e em seu raciocínio infantil descreve a melancolia dos dias de forma muito bonita e poética. O isolamento o leva ao pensamento crítico sobre si mesmo e suas aflições, as quais ele divide com os leitores, contando-nos sobre o seu medo da morte, da noite e do homem que anda pelo engenho. Toda essa temeridade veio de conversas que teve com uma das cozinheiras da casa. Ele gostava muito de escutar histórias dos adultos e um dia, ela lhe contou muitas lendas do folclore brasileiro, levando-o ao desespero e mostrando-lhe a sua capacidade de imaginação para compreender o fantástico.

Seu avô José Paulino também era um grande prosador. Contava histórias de vingança, de tocaias, de homens que lavaram a honra com sangue, de negros que foram para o tronco, exaltando assim a sua “bondade” em não permitir que seus escravos fossem surrados por nada. Entretanto, um dia, um homem negro foi parar no tronco do Engenho Santa Rosa por uma denúncia falsa de uma moça que gostaria de casar com ele. Carlinhos presenciou esse acontecimento e se mostrou bastante solidário ao homem, sendo o único a lhe dar crédito de estar dizendo a verdade.

Acompanhamos também alguns fenômenos naturais muito presentes no Nordeste Brasileiro: as cheias e as secas. Em um dos momentos mais dramáticos do livro, temos uma cheia forte que inundou os engenhos, fazendo com que muitas famílias perdessem tudo e precisassem de abrigo. Essa condição uniu as pessoas da casa grande e da senzala por alguns instantes, provando que somos todos iguais e que quando assolados por uma desgraça maior, vinda da natureza, raça e classe social pouco importam.

Há também um incêndio criminoso em um engenho vizinho, levando todos ao desespero, movendo os pares para ajudar a acabar com o fogo. Tocaias, vinganças, crimes dessa natureza eram muito comuns naqueles tempos (e ainda devem acontecer por aí) com o intuito de incapacitar o outro para tomar-lhe suas terras, aumentando assim o poderio de uns e outros. Esses acontecimentos mostram que infelizmente, o comportamento do homem é o mesmo desde sempre: ambição, ganância, ódio, inveja sempre guiam a vida de algumas pessoas.

Acompanhamos também, em meio a tantos problemas sociais, o desabrochar de Carlinhos da infância para a adolescência. Essa passagem é bem sutil no romance, mas acontece de forma natural e com a ajuda dos “moleques” e dos primos do menino. O despertar da sexualidade, o primeiro amor, as mudanças no corpo e o desejo de ser livre estão sempre presentes na trajetória dessa criança, que conhecemos com quatro anos e chegamos com ele até os doze, quando ele é enviado ao colégio interno.

A beleza da obra de José Lins do Rego está em sua prosa, que é concisa, mas bela. Conta com diálogos muito criativos e cheios de significado. As descrições dos lugares e dos sentimentos das pessoas são breves, porém muito bonitos e líricos. A leitura é fluida, sem exageros, deixando o leitor curioso para o próximo volume do ciclo. Recomendo muito essa leitura, principalmente para que possamos conhecer um pouco mais sobre o nosso país e nosso povo.

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