crítica

Gabriela, Cravo e Canela – Jorge Amado

Neste belo e poderoso romance histórico, o autor Jorge Amado prova-se um grande prosador. A arte de contar boas histórias, envolver o leitor nas tramas criadas pelo escritor, falar de amor ao mesmo tempo em que se discute política e temas sociais, sem deixar que o fio condutor da narrativa fique em segundo plano ou que o romance perca o fôlego é para poucos. E aqui temos de tudo um pouco: um fundo histórico, ambientado na Ilhéus de 1925, várias histórias de amor, com o protagonismo do casal Nacib e Gabriela, politicagem, a modernização das cidades em paradoxo com os costumes “feudais” do interior do Brasil, comportamentos locais que se intercalam com os universais e um empoderamento das mulheres, uma crítica contundente com pitadas de humor sobre as nossas idiossincrasias.

Aliás, o humor, as idiossincrasias, assincrasias e a força das minorias são características marcantes da obra do autor, que dá voz àqueles que não têm voz, que sem menosprezar a capacidade de recepção do leitor diz mais através do silêncio que da fala. Seus personagens são pessoas comuns, aquelas que encontramos em qualquer cidade do interior do Brasil, pessoas simples, bondosas, que gostam de uma prosinha no bar antes do almoço, de uma fofoquinha sobre a vida alheia e que veem tudo o que acontece ao seu redor. Por outro lado, temos também aqueles personagens dúbios, ambivalentes, que se apresentam como pessoas de bem, empoadas, cheias de marra, mas que na verdade são capazes de qualquer coisa para se manterem no poder ou conseguirem o que querem.

Essas características dos personagens “amadeanos” são muito presentes no Brasil e nos trazem uma identificação grande de brasilidade. Neste romance especificamente, temos um fundo histórico sobre a importância da região de Ilhéus/ Itabuna na produção e exportação de cacau. Aprendemos através de Gabriela, cravo e canela (Cia das Letras, 2021) como os grandes coronéis chegaram nas cidades, obtiveram suas terras, as aumentaram e fizeram fortuna com o cultivo do cacau. Aprendemos ainda que esta região é formada por pessoas de várias localidades, que chegaram em busca de um pedaço de terra para plantar cacau e enriquecer. Outros chegaram para explorar o comércio, como Nacib, um árabe que veio com sua família para o Brasil e se instalou na região. Ele é dono de um bar e seu segredo para manter a clientela são os aperitivos para acompanhar a cachacinha e a boa prosa que nunca falta no Bar Vesúvio.

Outros brasileiros chegavam na região do cacau por causa de problemas com suas famílias ou por decepções amorosas no eixo sul do Brasil, São Paulo/ Rio de Janeiro. Esses homens, geralmente muito diferentes dos habitantes de Ilhéus em relação à cultura e costumes, eram recebidos com cortesia, porém, toda a cidade ainda guardava uma reserva em relação aos chamados “forasteiros”, até se acostumarem com sua presença por ali e com a sua permanência no local. No caso de Gabriela, temos um representante fundamental dos forasteiros, Mundinho Falcão, um homem jovem, cheio de garra e de vontade de modernizar a cidade, levando para Ilhéus as famosas marinetes (carro tipo uma Kombi que foi utilizado na Bahia por muitos anos como meio de transporte púbico), o porto para exportação direta do cacau, o teatro e a pavimentação das ruas, dentre outras ações que transformaram a cidade em um polo de riqueza e prosperidade econômica.

Quem também chegou a Ilhéus, desbravou a mata e começou a produção de cacau, transformando a região em um centro cacaueiro, foi o Coronel Ramiro Bastos, representante aqui no romance de todos os coronéis do Brasil, aqueles que resolvem seus problemas através de tocaias, trocas de favores, indicações para cargos públicos, ameaças e sempre contam com um representante seu nas esferas públicas: câmaras federal e estadual, além da prefeitura da cidade. Outros “devedores” desses coronéis são os delegados de polícia locais e outros funcionários públicos que precisam se curvar aos “pedidos” desses homens poderosos que não estão acostumados a seguir regras e muito menos a perder qualquer coisa que seja.

Através das histórias e conversas que são trocadas no bar de Nacib, conhecemos a população da cidade e descobrimos que as escrituras das terras dos grandes coronéis foram adulteradas diversas vezes, ampliando suas propriedades e dando-lhes mais poderes que já tinham. Também ficamos sabendo dos casos amorosos, das traições e das armadilhas que são tramadas nas mesas do Vesúvio. E, junto aos personagens, vemos um casal de amantes ser assassinado pelo marido traído em “defesa da honra”. Depois, a família das vítimas procurando justiça por eles e as dificuldades que encontram em relação a esta, pois, os coronéis estão acima das leis.

Outro ponto de encontro nesse romance cômico, divertido e profundo é a Papelaria Modelo, onde João Fulgêncio, um comerciante simples, mas também muito sábio dá conselhos a Nacib, conversa com a população sobre literatura, vende para as mocinhas de família exemplares de O crime do Padre Amaro de Eça de Queiroz, deixando o pai delas muito irritado e apresenta ao leitor um outro lado da Ilhéus do cacau. Mas, e Gabriela? A cravo e canela? Porque o romance leva o seu nome, se ela ainda nem foi mencionada? Ah, Gabriela é a liberdade! Ela chega a Ilhéus junto a uma turma de retirantes do sertão brasileiro, em busca de oportunidades de trabalho e de melhores condições de vida. Sua sorte é tanta, que justo quando chega na cidade, a cozinheira do Bar Vesúvio tinha acabado de partir para o sul, deixando Nacib em uma situação delicada e com medo de perder sua freguesia, pois, “encontrar cozinheira boa em Ilhéus é impossível”. Mas, esse é justamente o talento de Gabriela, a cozinha.

A partir desse encontro, a áurea cidade se transforma: Gabriela traz alegria, vida, cor e sabor para o bar e para a vida de Nacib. Começa aqui uma história de amor pouco convencional, que vai abordar temas importantes e universais sobre o comportamento humano, sobre regras sociais, convenções e o apagamento de uma pessoa por motivos banais. Os conflitos da vida a dois de Nacib e Gabriela são muito atuais, abordados por Jorge Amado de forma simples, mas muito reflexiva. Gabriela é quase uma criança, porém, sexualmente desenvolvida, criando uma ambiguidade da personagem que intriga e instiga o leitor a conhece-la e principalmente a respeita-la. As mulheres criadas pelo autor são sempre muito fortes, empoderadas, livres e que rompem com as amarras do patriarcado.

Jorge Amado trabalha com paradoxos que partem do âmbito pessoal para o coletivo, levando o leitor a uma reflexão sobre a vida em sociedade. Por isso, o romance não se perde e a história faz todo o sentido. Ao mesmo tempo em que no começo da história uma mulher é morta vítima de um feminicídio, no meio da trama, outra personagem após uma decepção amorosa com um forasteiro (engenheiro que chegou na cidade, vindo do Rio de Janeiro para a drenagem e construção do porto de Ilhéus) supera todas as convenções e difamações sobre sua pessoa para trabalhar e estudar em São Paulo, conquistando para si uma liberdade muito difícil no Brasil de 1925.

A libertação de Gabriela mais para o final do romance também é uma metáfora para a quebra de paradigmas obsoletos, de costumes arcaicos e convenções que servem apenas para acachapar as mulheres e coloca-las dentro de moldes sociais, os quais na maioria das vezes, deixa-as muito infelizes e as coloca apenas na função social de esposas e mães. Para o autor, esse modelo tacanho de vida já não fazia sentido, mas ainda estava arraigado no Brasil. Em um diálogo dos personagens sobre o crime dos amantes, um deles critica a postura do coronel, dizendo que “cultivamos costumes feudais em Ilhéus”. A importância desses acontecimentos privados é enorme: eles fazem um contraponto com o progresso que chega na cidade através das obras, das marinetes e da libertação da região cacaueira do Estado da Bahia, que ainda lucrava muito com impostos sobre as exportações por causa de falta de um porto em Ilhéus.

Observa-se um enorme jogo de poder, onde vencem os mais fortes. Neste jogo, as aparências são fundamentais e ditam as regras. É impressionante como esse costume de se preocupar demasiadamente com a opinião alheia é cultivado no Brasil. Chega a ser uma característica do brasileiro. Em nome das aparências já foram cometidos muitos crimes cruéis no país, com o aval de autoridades e de pessoas importantes, tema muito explorado no romance de Jorge Amado através de todos os personagens, com ênfase na protagonista Gabriela. Esse aspecto da obra é muito importante para a sua análise como um todo, pois, faz o papel da metonímia abordada por Amado: para o progresso e a expansão econômica chegarem, é preciso abandonar certos hábitos e abrir a mente para o novo, algo que os coronéis não estavam dispostos a fazer.

Ler Jorge Amado é um deleite. Sua prosa é envolvente, sensual na medida, cativante, seus personagens são muito bem construídos e o desenvolvimento de seus enredos são muito bem-feitos, deixando saudades no leitor. Mesmo abordando de forma muito responsável temas fundamentais para a nossa sociedade e para a formação de caráter do homem, ele não deixa de colocar alguns alívios cômicos no texto, deixando-o leve e fluido. Sua obra é universal e atemporal, podendo ser lida em qualquer tempo e em qualquer parte do mundo, levando consigo parte da formação do Brasil República e dos costumes do nosso povo. Muitos temas abordados em seus romances, infelizmente, ainda são atuais. Tocaias, o famigerado “lavar a honra com sangue”, adulterações em cartórios, trocas de favores, o arcadismo do pensamento, a censura aos livros e a condição socioeconômica das mulheres ainda são muito pertinentes nos dias de hoje.

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