crítica

A festa do Bode – Mario Vargas Llosa

Após uma visita à bela República Dominicana, Mario Vargas Llosa sentiu a necessidade de contar a história desse país caribenho, marcado por conflitos e principalmente, por uma ditadura que durou 31 anos. Considerado o segundo maior país do Caribe, ficando atrás apenas de Cuba, a República Dominicana teve a sua parte oeste ocupada pelo Haiti, conflito que colocou o ditador Rafael Leónidas Trujillo Molina no poder em 1930.

A República Dominicana foi o primeiro país habitado pelos espanhóis na América, tornando-se a primeira capital do Império Espanhol no Novo Mundo. Sofreu interferências e invasões tanto da Espanha, quanto da França e do Haiti, tornando-se independente no ano de 1821. Após conflitos com o Império Grã-Colombiano, o país viveu um embate interno por 72 anos, passando por períodos breves de volta ao domínio espanhol e posteriormente, ocupada pelos Estados Unidos, entre os anos de 1916 e 1924.

Existe uma grande rivalidade entre os dominicanos e os haitianos, sendo este um dos maiores problemas do país. A anexação de dominicanos com ascendência haitiana, a diáspora e o grande fluxo de migrantes contribuem para os conflitos locais e para a xenofobia. Esse assunto é bastante explorado em A festa do Bode (Alfaguara, 2011), pois caracteriza uma das muitas facetas do seu grande protagonista, que é o ditador Rafael Trujillo. O racismo e a raiva que sentia dos seus antepassados haitianos compunham parte da sua personalidade complexa que o levava a uma disciplina feroz em esconder da população todas as suas características negras, chegando ao ponto de tentar embranquecer-se através de talcos e outros artifícios que o fizessem parecer mais claro. Este detalhe sobre os dominicanos ainda persiste nos dias de hoje e o conflito racial constitui um dos grandes desafios da República Dominicana democrática.

Os regimes ditatoriais são diversos e diferenciados entre si. Cada um tem as suas peculiaridades, entretanto, algumas delas são comuns e caracterizam um governo autocrático e repressor. Quando um indivíduo toma para si o poder, as leis e as regras de um país, subtrai as liberdades individuais, usa a força física e psicológica para que se cumpra o exigido, onde não há oposição, há uma ditadura. Uma das estratégias muito utilizadas para a dominação das massas, e que foi amplamente explorada por Trujillo é o culto da personalidade pelo carisma com táticas de propaganda para valorizar o governante e torna-lo adorável, indispensável e insubstituível.

Em A festa do Bode, ficamos sabendo que essa propaganda era feita de forma discreta a princípio, mas para quem chegava de fora, percebia claramente os seus objetivos. Trujillo tinha uma capacidade de oratória fenomenal, que arrastava multidões e conquistava as pessoas. Suas táticas de dominação começaram por slogans como “Deus no céu e Trujillo na Terra”, ou seja, acima de Trujillo, apenas Deus. Posteriormente, ele modificou esse slogan para “Trujillo na Terra e Deus no Céu”, se colocando acima de Deus. Outra marca registrada de seu governo autoritário são os quadros que as famílias deveriam ter em suas casas com a foto do ditador e um texto embaixo que dizia “Quem manda nessa casa é Trujillo”.

Além de todas essas estratégias de poder, o ditador também ensinou as crianças a chama-lo de pai, como se a sua bondade e influência para resolver os problemas da nação fossem comparadas às de um pai. Ele se autodenominou “Pai da Pátria”, “Generalíssimo”, “O Supremo”, “Chefe”, “O benfeitor”, dentre outros tantos nomes que ele se dava, como forma de magnanimidade e de enganação ao povo dominicano. Mas, dentre todos os codinomes utilizados por essa figura, o mais popular foi “Bode”. Esta classificação pode ter dois significados mais aceitáveis: o primeiro, como um filho do demônio, que vem de A Besta, representada graficamente por um bode. O segundo significado, que não fica muito distante do primeiro, é relacionado à sua libido, pois Trujillo ficou conhecido por seus diversos abusos sexuais com garotas púberes e também com as esposas dos seus colaboradores.

Esta era uma das formas que o ditador encontrava em manter as pessoas em uma situação de dominação e de subserviência. Elas eram colocadas à prova o tempo todo e precisavam mostrar lealdade ao Bode para não terem um fim igual ao de tantas pessoas que eles mesmos tiveram de “dar um sumiço” ou calá-las para que não denunciassem os desmandos de Trujillo. Os seus colaboradores mais próximos, sabiam que as pessoas incômodas eram torturadas e mortas e posteriormente, seus corpos eram jogados no mar do Caribe, em um ponto estratégico, onde tinha uma grande concentração de tubarões e de piranhas, que devoravam seus corpos, não deixando assim provas contra o regime.

O poderio de Trujillo foi tão intenso e forte, que ele chegou a renomear a capital Santo Domingo para o seu sobrenome, passando a chama-la Trujillo. Ele também modificou os nomes das principais ruas da capital, colocando nelas os nomes de seus familiares. O ditador também condecorou seus filhos ainda crianças com títulos militares e de nobreza, presenteou seus afetos com propriedades no país e no exterior, com joias, carros de luxo, dentre outros bens, os quais ele se apropriou do Estado, alegando que, se as empresas que antes eram estatais passassem a pertencer à família Trujillo, ninguém ousaria roubar ou extraviar os recursos dessas empresas. Assim, ele mantinha uma falácia de que o país estava economicamente estável, mantendo os empregos dos pais de família e passando uma falsa sensação de segurança e de estabilidade social e econômica para um país marcado por desigualdades e revoluções.

As informações sobre a Era Trujillo e sobre a figura do ditador, foram extraídas pelo autor de pesquisas intensas e muito bem-feitas para compor esse romance histórico. Esse tipo de narrativa é caracterizada por uma base em fatos reais, históricos, porém, com a subjetividade do romance. Segundo Lukács, “O romance histórico surgiu no início do século XIX, por volta da época da queda de Napoleão (…) o fato de a particularidade dos homens ativos derivar da especificidade histórica do seu tempo, caracteriza o romance histórico pós Walter Scott”. Dessa forma, temos em um romance histórico tanto personagens reais, como fictícios. Os fatos históricos são reais, porém, os pensamentos e diálogos travados entre esses personagens são criações do escritor, que compõem essa vertente subjetiva do romance.

Em A festa do Bode, temos vários personagens que realmente existiram, tais como o ditador Trujillo, seus familiares, as irmãs Mirabal, Antonio Imbert Barrera, Salvador Estrella Sadhalá, Amadito Guerrero, Antonio De La Maza, que foram os integrantes da emboscada que matou o Bode, dentre outros colaboradores do governo Trujillo. Porém, temos também personagens fictícios que vão nos mostrar os efeitos da ditadura na população comum, como as pessoas eram afetadas por um regime autoritário e cruel.

Vargas Llosa optou por criar três eixos narrativos que se entrelaçam e se complementam uns aos outros ao longo das 450 páginas de seu romance. A primeira linha narrativa, feita em primeira pessoa, conta a história de Uranita, uma mulher que mora nos Estados Unidos e está de volta à República Dominicana para um acerto de contas com o seu passado, vivido na Era Trujillo. Através de diálogos e flashbacks, ela conta ao leitor as suas agruras e o seu sofrimento por ser assediada por um velho ridículo que se sentia dono de todas as pessoas que viviam na República Dominicana:

Havia aceitado que a filhinha do senador Agustín Cabral viesse a Casa de Caoba só para provar que Rafael Leónidas Trujillo Molina ainda era, apesar de seus setenta anos, apesar dos problemas de próstata, apesar das dores de cabeça, provocadas pelos padres, pelos ianques, pelos venezuelanos e pelos conspiradores, um verdadeiro bode, um garanhão capaz de desvirginar mocinhas que encontrasse pela frente” (LLOSA, 2011, pág. 440).

A segunda linha narrativa, é feita através de um narrador onisciente em terceira pessoa e contempla a história de Trujillo e seus colaboradores mais próximos, além de sua família. É neste eixo narrativo que o leitor encontra a maior parte dos dados históricos e conhece a trajetória do ditador. São trechos desconfortáveis e muito verossímeis, mostrando a figura odiosa que Trujillo foi nos bastidores. Neste trecho, o leitor pode perceber como ele dominava a população dominicana através de presentes e engodos:

Se não fosse assim, teria dado tantos presentes ao povo, aquelas dádivas multitudinárias todo dia 24 de outubro, para os dominicanos comemorarem o aniversário do Chefe? Quantos milhões de pesos ele havia gastado durante todos aqueles anos em sacos de balas, chocolates, brinquedos, frutas, vestidos, calças, sapatos, braceletes, colares, refrescos, blusas, discos, camisetas, alfinetes, revistas, nas intermináveis procissões que se dirigiam ao Palácio no dia do Chefe? E quantos outros bilhões mais, em presentes ou para os seus afilhados, nos batismos coletivos realizados na capela de Palácio em que, há mais de três décadas, uma e até duas vezes por semana, ele apadrinhava pelo menos uma centena de recém-nascidos? Milhões e milhões de pesos. Um investimento produtivo, naturalmente, ideia dele, no primeiro ano de governo, graças ao seu conhecimento profundo da psicologia dominicana. Estabelecer uma relação de compadrio com um camponês, com um operário, com um artesão, com um comerciante era conquistar a lealdade desse pobre homem, dessa pobre mulher, a quem ele, depois do batismo, abraçava e dava dois mil pesos” (LLOSA, 2011, pág. 146/147).

A terceira e última linha narrativa, também através de um narrador onisciente em terceira pessoa, conta ao leitor a emboscada que matou Trujillo no dia 30 de maio de 1961. A ideia de Llosa nessa parte do romance é mostrar o descontentamento dos colaboradores do ditador, após tantas humilhações, apelidos ridículos e vexatórios que o próprio presidente lhes dava e que eram obrigados a tolerar. Além da violência de terem de permitir que Trujillo tivesse relações sexuais com suas esposas e filhas e dos assassinatos que tiveram de cometer ou de encobrir, muitas vezes de pessoas queridas e próximas, como mais uma forma de provar lealdade ao Bode.

O assassinato das Irmãs Mirabal (grupo formado por três irmãs que lutavam pela libertação da república Dominicana de forma ativa), o rompimento de Trujillo com a Igreja Católica e a possibilidade de uma intervenção dos Estados Unidos no país fez com que um grupo de quatro pessoas – Antonio Imbert Barrera, Salvador Estrella Sadhalá, Amadito Guerrero e Antonio De La Maza – ligadas diretamente à Trujillo armassem uma emboscada para mata-lo e assumirem o poder, redemocratizando assim o país, em uma transição lenta, porém efetiva. No fragmento abaixo, é possível identificar a opressão que o regime ditatorial exercia sobre essas pessoas tão próximas ao governo:

Os ricos, se quisessem continuar sendo ricos, também precisavam se aliar ao Chefe, vender-lhe parte das suas empresas ou comprar parte das dele, e assim contribuir para a sua grandeza e poder. Com os olhos semicerrados, embalado pelo rumor calmo do mar, pensou em como era diabólico o sistema que Trujillo conseguira criar, do qual todos os dominicanos mais cedo ou mais tarde participavam como cúmplices, um sistema do qual só estavam a salvo os exilados (nem sempre) e os mortos. Neste país, de uma forma ou de outra, todos tinham sido, eram ou seriam parte do regime. ‘O pior que pode acontecer com um dominicano é ser inteligente ou capaz’, ouvira Álvaro Cabral dizer certa vez (‘Um dominicano muito inteligente e capaz’, pensou), e a frase ficou gravada em sua mente: ‘Porque, nesse caso, algum dia Trujillo o chamará para servir ao regime ou à sua pessoa, e quando chamar ele não vai ter como dizer não’. Ele mesmo era uma prova desta verdade. Nunca lhe passara pela cabeça fazer a menor resistência a essas nomeações. Como dizia Estrella Sadhalá, o Bode tirou dos homens o atributo sagrado que Deus lhes deu: o livre-arbítrio” (LLOSA, 2011, pág. 166).

Sem dúvidas, este livro tem muitas passagens marcantes e reflexivas, que nos levam a pensar sobre a dominação feita pela oratória e posteriormente, feita através do medo, da tirania e da dor. Temos muitos exemplos contundentes de acontecimentos semelhantes no mundo inteiro, de regimes fascistas, nazistas, xenofóbicos, autoritários, militares, dentre tantos outros. Por isso, livros como A festa do Bode devem ser lidos e divulgados para todos. Quem sabe, a partir de histórias tão tristes, seremos capazes de abrir os nossos olhos e percebermos quando uma situação semelhante à da República Dominicana está prestes a acontecer de novo. No livro, através dos familiares da Uranita, que permaneceram no país, após o assassinato de Trujillo, sabemos que suas tias sentiam falta do Chefe, pois, o regime democrático, em sua visão, trouxe a violência, o desemprego, a fome e ampliou a desigualdade social no país.

Porém, o autor também nos mostra que toda essa sensação de prosperidade e de segurança econômica não passavam de um engodo, de uma farsa armada pelo regime, com o intuito de manter a população sob domínio e evitar um levante das massas. Mas, mesmo se Trujillo não tivesse morrido, o colapso na economia dominicana seria inevitável. Essa foi uma das minhas melhores leituras do ano de 2022 e recomendo fortemente para todos os leitores que gostam de história ou têm curiosidade em conhecer mais sobre esse país tão cativante. Recomendo também o filme No tempo das Borboletas, disponível no Amazon Prime Vídeo, como um complemento à essa leitura.

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