Inicialmente publicados em jornais da Rússia Tzarista, os contos que compõem esse volume vão do ano de 1853 a 1889. Nas palavras de Ítalo Calvino, “como um narrador mais abstrato, o que conta em Tolstói é aquilo que não se vê, aquilo que não é dito, aquilo que poderia existir e não existe”. A partir dessa definição, o leitor pode compreender mais os contos desse grande escritor que tanto nos faz pensar através de suas digressões e divagações nas vozes de seus personagens marcantes, inesquecíveis e universais.
Grande parte dessa antologia de contos foi inspirada em vivências do próprio autor. A partir do momento em que algo lhe inquietava a alma ou lhe deixava sem palavras, ele partia para a escrita de ficção como um lugar seguro onde poderia expressar e compartilhar seus sentimentos e pensamentos sobre o mundo, as pessoas e principalmente sobre o comportamento humano. Algumas histórias desse volume são reproduções de fatos vividos pelo escritor: “A incursão”, “Memórias de um marcador de pontos de bilhar”, “Sebastopol no mês de dezembro”, “Sebastopol em maio” e “Sebastopol em agosto de 1855” são relatos sobre a guerra da Criméia (1854/1855) e constituem os primórdios do seu romance “Guerra e paz”. “A derrubada da floresta” é um conto em homenagem ao livro de Ivan Turgeniêv, “Memórias de um caçador”, obra que Tolstói gostou tanto, que leu e releu por diversas vezes e foi também o único livro de Literatura Russa que recebeu algum tipo de elogio do escritor.
Os contos “A nevasca”, “Das memórias do Cáucaso”, “Manhã de um senhor de terras” e “Das memórias do Príncipe D. Nekhliúdov” também se referem a fatos vivenciados por Tolstói e trazem suas divagações sobre a natureza humana, questionamentos sobre a sociedade e relatos sobre a vida árdua dos mujiques que viviam nas grandes propriedades rurais. Já as histórias “Dois hussardos”, “Albert”, “Três mortes” e “Polikuchka” são ficcionais e não contém relação com a vida do escritor, mostrando o seu talento para criar histórias mesmo sem tê-las vivenciado.
Já os Contos Populares da década de 1880, marcam a crise espiritual de Tolstói. Logo após finalizar Anna Kariênina, o autor passou a questionar a existência ou não de Deus, os valores que o povo russo cultivava, além de outras questões existenciais e principalmente as noções de certo e errado. Dessa forma, a maior parte dos contos dessa coletânea curta contém uma lição de moral ao final da história, muitas citações bíblicas e a presença constante de Deus nas ações humanas e a busca incessante do homem por Deus. São contos reflexivos no sentido de provocar o leitor a compreender que a nossa forma individualista e capitalista de viver pode causar danos em outras pessoas e até mesmo em comunidades inteiras. Não são os meus contos favoritos, mas mesmo assim me fizeram pensar sobre eles.
Comentarei brevemente os contos que mais gostei desse volume, sem spoilers e com algumas citações que achei muito bonitas e reflexivas. Como todas as antologias de contos, essa coletânea é irregular. Algumas histórias são estupendas, enquanto outras são enfadonhas. Mas o que verdadeiramente importa, é o conjunto da obra, que é magnífica, principalmente quando conhecemos um pouco mais sobre a vida do escritor e as suas intenções ao escrever cada um desses textos.
O primeiro conto que quero destacar é “Memórias de um marcador de pontos de bilhar”. Nesta história o autor discute o vício em jogos de carteado, muito comum na Rússia, principalmente durante as guerras. Como os soldados não tinham muitas distrações e precisavam esperar os ataques para trabalhar as trincheiras ou mesmo as ordens dos superiores para atacar, eles ocupavam o tempo com os jogos de baralho. Começavam com uma simples brincadeira e depois, se transformavam em uma ladeira de perdas, vícios e prejuízos. O tema é abordado nesse conto de forma bastante humana, mostrando a degradação de um jogador ao longo de algumas semanas.
Em “Sebastopol no mês de dezembro”, Tolstói narra de forma lírica e apaixonada, a vida na cidade de Sebastopol. O leitor se sente dentro da história por ela ser contada em segunda pessoa, recurso muito interessante utilizado pelo escritor para mostrar uma Rússia diferente, bela, patriótica, onde os homens estão dispostos a matar e morrer pela pátria. Eles não se importavam com discursos motivacionais ou medalhas de condecorações. Lutavam por um ideal e prezavam o silêncio para concentração. Ele evoca também nesse conto as memórias dos soldados de tempos remotos, tais como comidas, reuniões de família e os dias de paz.
Nos demais contos sobre Sebastopol, o tom de Tolstói muda completamente. Ele passa a questionar o vazio de sentido da guerra: os homens ficavam nos acampamentos esperando ordens para lutar. Enquanto isso, jogavam apostas altas, se envolviam em brigas idiotas, arrumavam confusão uns com os outros, bebiam em demasia. Até que do nada, eram atingidos por uma bala fatal e apenas sentiam “que cumpriram o seu dever e chegou a hora”. A Guerra da Criméia foi um evento sangrento entre a França e seus aliados contra a Rússia, com o objetivo de ocupar a cidade de Sebastopol, com saída conveniente para o mar. Esse território, localizado em terras ucranianas, mas que pertencia à Rússia, foi tomado do Império Otomano pelos russos durante o reinado da Rainha Catarina II. Em agosto de 1855, os franceses venceram a guerra com o cerco de Sebastopol e ocuparam o território, que posteriormente foi retomado pela Rússia.
O conto “Dois hussardos” faz uma alegoria entre o passado, início do século XIX e o presente, metade do século XIX. O autor mostra através de pai e filho as mudanças de paradigmas e costumes. No final do conto, Tolstói faz uma reflexão que resume bem as suas intenções com essa história: “(…) muita coisa bonita e muita coisa feia, entre tudo o que era velho, desaparecera, muita coisa bonita, entre tudo o que era novo, se desenvolvera, e muito, ou melhor muito mais – entre tudo de novo – incapaz de desenvolvimento, monstruoso, surgira sob o sol”.
Assim, observamos que os hussardos eram homens montados e armados que iam para a guerra, ou seja, civis que eram forçados a lutar na guerra. A palavra vem do húngaro, que faz uma junção das palavras husz (vinte) e ar (paga), mostrando que a cada vinte casas de uma aldeia, uma delas fornecia um soldado montado e armado para a guerra. Portanto, quando falamos sobre os hussardos, estamos automaticamente falando sobre a guerra. Mas não Tolstói. Utilizando-me aqui das palavras de Calvino, “dessa narrativa de costumes militares (…) poderíamos dizer que a grande ausente é justamente a guerra”. Para o escritor, sua função através da arte é apresentar aquilo que fica de fora da História com H, ou seja, as vicissitudes humanas, a substância de que é feita o homem.
Um exemplo dessa humanidade universal, que sai do particular para o todo, é um trecho onde uma estalajadeira gasta tudo o que tem e que não tem para receber o hussardo em sua casa e este, com toda a sua soberba a convida para um jogo de cartas. Ela prontamente aceita e se gaba de nunca perder uma rodada. Assim o hussardo propõe que joguem algo diferente, que ela não entende bem as regras. Ele também sugere que apostem em dinheiro, que é mais divertido. A mulher perde muito e este cidadão não se importa em lhe tirar todo o dinheiro, mesmo sabendo que ela não tinha entendido as regras. Ao se recolher em seu quarto para dormir, ela perde o sono e se sente ultrajada pelo hussardo. A descrição que Tolstói faz desses sentimentos é tão realista que me remeteu imediatamente aos meus próprios sentimentos quando passo por situações de conflito e me sinto injustiçada ou incompreendida.
Um dos meus contos favoritos desse livro é “Manhã de um senhor de terras”. Baseado em sua própria experiência, o autor conta a história de um jovem estudante que resolve largar a faculdade e cuidar de suas terras, libertando e ajudando aos seus sevos em busca de uma vida melhor. Ao longo dessa manhã, ele ouvirá as queixas de todos e tentará ajuda-los da forma que compreende ser o certo. Entretanto, todos eles recusarão essa ajuda, colocando uma porção de entraves para os quais ele não tem planos e soluções. A partir dessa experiência, o senhor de terras se desilude e começa a se questionar se seus planos eram benéficos para si e para o seu ego ou se realmente tinham o intuito de ajudar ao próximo. O realismo desse texto é impressionante. As experiências dos mujiques e a humanidade com que são retratados são impressionantes e nos fazem pensar muito nas desigualdades sociais e principalmente no nosso papel em relação a essas situações.
Polikuchka é um dos contos mais aclamados dessa primeira antologia. Simplesmente Ivan Turguêniev foi um grande fã desta narrativa e afirmou que Tolstói provou ser um grande prosador através dessa história triste, tocante e muito intensa. Para quem já está familiarizado com a literatura russa, não é novidade a precariedade da vida, a falta de tudo, a miséria, o vício em álcool e as situações acachapantes pelas quais as famílias precisam passar para enfrentar o frio cruel que faz naquele lugar. Neste conto o autor mostra essa situação de miséria de uma forma muito verossímil e com detalhes que enriquecem a narrativa. A falta de roupas é algo que por mais que eu leia na literatura russa, ainda me é difícil entender como as pessoas fazem para compartilhar agasalhos, mantas e até mesmo botas e roupas de baixo. Na casa de Polikuchka era assim: só tinham um casaco, uma manta e algumas camisas que eram compartilhadas por todos os habitantes da isbá.
A história desse homem é complexa e focada na regeneração do homem. A princípio o protagonista não era visto como uma pessoa confiável por ter dado realmente motivos para que desconfiassem dele. Porém, a Senhora de Terras e a esposa de Polikey acreditavam na sua mudança e no seu caráter. Dessa forma uma missão importante e de muita responsabilidade lhe foi confiada, gerando a indignação dos colegas, que achavam tudo aquilo bastante descabido e injusto. Polikuchka não teve a oportunidade de provar a sua honestidade. Por azar, por ironia do destino ou por descuido, ele não conseguiu cumprir a sua missão, e esse fato gerou acontecimentos em cadeia, um verdadeiro efeito dominó, onde muitos perderam e muitas tragédias aconteceram por causa dessa infelicidade. É uma história pesada e que nos faz pensar muito sobre o impacto das nossas ações sobre os outros.
No último compilado de contos desse volume, Contos Populares da década de 1880, destaco cinco contos: Do que vivem os homens?, que conta a história de um sapateiro que vivia com sua esposa em uma isbá bem simples, onde faltava tudo. Os seus credores sempre se esquivavam de lhe pagar o que deviam, procrastinavam o pagamento, deixando esse homem em uma situação complicada. Até que um dia ele encontra no caminho um homem nu, perdido no gelo. Por compaixão, ele leva esse peregrino para casa, ensina-lhe o seu ofício e convive com ele por seis anos, onde os dois vão aprender do que vivem os homens. É um conto bonito, com muitas referências bíblicas e que nos faz pensar sobre as nossas ações em conjunto.
O conto Os dois irmãos e o ouro traz reflexões sobre o poder que o dinheiro exerce sobre as pessoas e a corrupção que pode acontecer a partir do excesso de riquezas. O maior questionamento que Tolstói nos deixa a partir dessa história é se ajudamos aos pobres por compaixão e por amor ao próximo ou por vaidade e para a nossa própria salvação, sendo neste caso, uma ajuda inválida por se tornar individual e não coletiva. Essa é uma questão que já vi sendo abordada por outros pensadores e à qual sempre retorno por compartilhar dessas dúvidas com os escritores e filósofos.
Iliás faz um diálogo com A insustentável leveza do ser de Milan Kundera. Aqui o autor vai questionar se vale a pena ocupar todo o nosso tempo com trabalho e com o acúmulo de bens e de riquezas que apenas trarão um peso para a nossa vida, enquanto que, vivendo uma vida simples e sem excessos, podemos ser mais felizes e mais leves, à medida em que as preocupações diminuem. É outra questão que me perturba um pouco e para a qual ainda não tenho resposta, apesar de pensar muito sobre isso.
De quanta terra precisa um homem é um conto espetacular que traz como tema central a ganância e suas consequências para a vida do homem. Temos aqui duas irmãs, que estão conversando sobre os seus sucessos e insucessos até que uma delas instiga o marido a ir atrás de terras para ter uma propriedade maior que a da irmã. Assim faz esse homem e o seu fim não é dos melhores. A partir da narrativa e da busca desse homem por terras, podemos fazer muitas reflexões com os dias atuais e com as consequências desses sentimentos ruins que muitas vezes sentimos, até mesmo de forma inconsciente e que só nos traz dor e sofrimento. Pode-se fazer um paralelo desse texto tanto com a ganância quanto com a inveja e com o desejo de ser melhor que os outros.
Por fim, destaco o conto Dois Velhos, que conta a história de dois amigos já idosos, fazendeiros e que resolvem empreender uma viagem à Israel com o intuito de pagar uma promessa de rezar na sinagoga, acreditando ser o único local onde podem encontrar Deus, se redimir de seus pecados e poder viver em paz até o fim de seus dias. Enquanto um deles está muito empenhado em concluir essa tarefa, o outro está um tanto preocupado com sua família, com sua propriedade e não faz tanta questão de chegar ao seu destino. Por isso, ele acaba se perdendo do amigo no meio do caminho e não segue viagem. Porém, ajuda uma família que está morrendo na região da Ucrânia por não ter o que comer e onde plantar alimentos e cultivar a terra para o seu sustento. Esse velho ajuda essa família a se reerguer e volta para casa, enquanto o amigo segue para Israel. Tolstói deixa uma mensagem bem bonita neste conto, onde podemos refletir sobre a valência das nossas ações em detrimento de orações vagas e sem significado que se justificam apenas para seguir as regras e cumprir uma obrigação. E que na verdade, o que mais vale são as atitudes cristãs, que são muito mais difíceis de serem colocadas em prática.
Considero esse primeiro volume de contos do Tolstói uma preciosidade. Foi um livro que realmente mexeu muito comigo e apesar de Anna Kariênina ser um grande favorito da vida, creio ter aproveitado mais a leitura dos contos que do romance do escritor. São textos para serem relidos e que contém trechos impactantes para consulta ao longo do tempo. Recomendo a todos a leitura.