crítica

O ponto zero da revolução – Silvia Federici

Compilado de textos da intelectual italiana Silvia Federici, a edição reúne ensaios sobre trabalho doméstico, reprodução e luta feminista compreendendo os anos de 1975 a 2011. Dividida através dos temas centrais, a antologia discute o papel da mulher na sociedade, apontando os problemas encontrados pela autora e buscando soluções para cada um deles, no sentido do coletivo. É um livro incômodo e provocativo porque logo de cara o leitor percebe que qualquer solução que se proponha, ele cai em outro problema maior ou de igual valência impossibilitando uma alternativa de vida sustentável e justa para as pessoas que buscam o bem comum.

Na parte 1, intitulada “Teorizando e politizando o trabalho doméstico”, a autora aborda o tema através de seis ensaios que vão do ano de 1975 a 1990. Nestes textos Federici questiona de forma contundente o acúmulo de tarefas sobre as mulheres, em todos os sentidos, apontando um histórico que vem do patriarcado e da sociedade machista, onde os papéis de gênero são bem definidos: os homens trabalham para prover o lar e as mulheres ficam em casa cuidando do lar, do marido e dos filhos. A autora alega que na era pré-capitalista, essa dinâmica funcionava bem, apesar de ser um tanto injusta. Entretanto, as comunidades eram unidas, havia a produção de subsistência e raramente se precisava de dinheiro para a acumulação de bens.

Algumas mulheres nessa época já questionavam o seu papel na sociedade e desejavam participar da produção, do plantio, da colheita e há registros históricos de muitas delas que fizeram a sua parte nesse sentido e transformaram a vida de muitas comunidades agrícolas. Ao passo em que o dinheiro entrou na vida dessas pessoas, que a indústria passou a ser a principal produtora de bens de consumo e que o progresso obrigou as pessoas que viviam no campo a ir para a cidade, essa dinâmica foi quebrada e logo o dinheiro do homem apenas deixou de ser suficiente para prover a família. Assim, as mulheres entraram no mercado de trabalho, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial e passaram a acumular as tarefas domésticas com o trabalho externo, se extenuando ao extremo e se tornando cada vez mais pobres.

O empobrecimento da população feminina se deu da mesma forma que vimos no livro da Eliane Brum, Banzeiro Òkòtó: a partir do momento em que se precisa de dinheiro e não se tem o bastante para suprir as necessidades básicas, a pessoa se torna pobre. Para as mulheres essa situação é mais grave que para os homens, pois, elas ganham menos que eles, perdem seus empregos mais facilmente por causa da reprodução e por outros motivos biológicos e, muitas vezes, quando não possuem um trabalho com carteira assinada (caso principalmente das empregadas domésticas), encontram uma enorme dificuldade para se aposentarem sem ter uma renda comprovada ou até mesmo para acessar o sistema de saúde.

Por vivermos em uma sociedade machista arraigada, a maior parte dos homens não está acostumada a dividir as tarefas domésticas. Atualmente, essa situação vem se modificando, porém, na época em que a autora escreveu seus ensaios, um homem ajudar nas tarefas domésticas era bastante incomum. Essa dinâmica vem da educação que se é passada em casa e do que reproduzimos socialmente: o homem é o provedor e a mulher fica em casa cuidando de tudo. Mas, quando essa mulher precisa sair para trabalhar, o fardo sobre ela fica muito pesado e muito difícil de se carregar. Como solução para essa questão, aparecem as empregadas domésticas, que deixam as suas casas para trabalhar nas casas dos outros e recebem um salário por isso. Infelizmente, como não é um serviço glamoroso, as pessoas que o prestam são geralmente imigrantes clandestinas, mulheres negras ou aquelas que vivem em situação de vulnerabilidade social.

Essas relações são muito complicadas porque uma pessoa está deixando a sua casa, os seus filhos muitas vezes sozinhos ou com as vizinhas para fazer na casa alheia o que terão novamente de fazer em suas casas quando voltarem: limpar, passar, cozinhar, educar e cuidar. Dessa forma, as tarefas domésticas são passadas de uma mulher à outra, sendo delegadas, provocando ausências e consequentemente problemas mais sérios em relação às questões psicológicas que envolvem maternidade e paternidade. Temos diversos exemplos dessas situações no cinema, na TV e nos tribunais das grandes cidades do mundo. Todos querem uma compensação por esse tempo dedicado aos filhos dos outros em detrimento dos seus.

Por outro lado, a indústria e a tecnologia, tentaram aliviar a vida da dona de casa criando robôs que fazem tudo: aspiram, limpam, facilitam a vida doméstica de alguma forma. Porém, alguém tem que manuseá-los e geralmente esse humano é uma mulher. Então, continuamos na mesma: as soluções possíveis estão submetendo alguém, estão colocando um ser humano em situação complicada, estão impedindo uma mulher de viver com plenitude a sua vida. E olha que aqui só falamos de produtividade. Nem mencionamos as necessidades individuais de cada um…

Para Federici, essa situação é uma consequência direta do capitalismo. Porém, analisando comunidades socialistas, fica claro que nelas também existem diferenças de gênero, maus-tratos e opressão de uns contra os outros. Talvez o problema seja as pessoas mesmo: afinal, os sentimentos humanos são iguais em qualquer lugar e em qualquer sociedade. O capitalismo incita sim uma corrida em busca de acumulação, de produtividade, de crescimento econômico e tudo isso, como sabemos, acontece às custas de milhares de pessoas, da natureza e de muita opressão sobre as comunidades mais vulneráveis. Entretanto, no mundo pós globalização, é quase impossível voltar atrás e viver de forma mais sustentável, em comunidades agrícolas como propõe a autora. O que nos resta é tentar pensar menos de forma individual e mais no coletivo. Talvez esse seja um caminho para o equilíbrio entre os gêneros e a política.

Na parte 2 do livro, intitulada “Globalização e reprodução social”, a autora discute o tema através de 4 ensaios que vão do ano de 1999 a 2009. Neste aspecto ela é bastante radical no sentido de questionar a reprodução humana como um trabalho. Através de argumentos contundentes, Federici mostra que ter um filho custa muito caro e provoca muitas mudanças no corpo da mulher (não no sentido estético, mas são reações biológicas impossíveis de impedir). Ela alega que há um risco de vida em algumas gestações, em outras há um incômodo muito grande e que estamos programados para acreditar que o sonho de toda mulher é ser mãe, o que é uma grande falácia.

Para a autora, o primeiro passo nesse sentido é acabar com a romantização sobre a maternidade e mostrar que ser mãe não é “sofrer no paraíso”. Para ter um filho, uma mulher precisa necessariamente abrir mão de muitas coisas de sua vida pessoal e a responsabilidade por essa vida é toda dela. A autora dá alguns exemplos de mulheres que foram mães solo e que precisaram se virar para dar conta de educar e prover as condições mínimas de dignidade para a criança. Neste caso, observa-se que a sociedade como um todo não auxilia essas mulheres, nem o Estado (a maior parte dos exemplos citados por Federici se concentram na Itália, sua terra natal, nos Estados Unidos, país onde mora, na África e na Ásia, locais onde ela fez pesquisas para os seus estudos sociais e antropológicos).

O maior argumento utilizado pela ensaísta é que esses bebês que são gerados e cuidados por uma única pessoa, serão a força de trabalho do futuro. E que, nesse caso, como beneficiarão a comunidade como um todo, a mulher que aceita ser reprodutora deveria receber um salário para isso, que a maternidade deveria ser um trabalho como outro qualquer, custeado pelo Estado. Parece muito bizarro quando colocado dessa forma, mas, analisando bem e pensando friamente, sem romantizar a maternidade, faz um certo sentido. Porém, sabemos que isso não funciona na prática. Há muitas outras questões envolvidas e, desconstruir um dogma secular é complicado demais e exige muito esforço de muitas pessoas influentes para vingar. Creio que esta é uma medida bastante impopular para ser veiculada em qualquer câmara de qualquer país do mundo. O futuro dirá.

A parte 3, intitulada “Reproduzindo os comuns” é composta por cinco ensaios, que vão dos anos 2000 a 2011 e são de longe os meus textos preferidos desse compilado. Já logo no primeiro ensaio dessa parte, a autora tira de nós todas as ilusões que temos em relação à ONU. Em Rumo a Pequim: como a ONU colonizou o movimento feminista, Federici faz denúncias graves em relação à essa entidade que aparentemente é muito bem intencionada, procura promover a paz mundial, mas na verdade, trabalha em prol das grandes corporações, explora comunidades agrícolas autossustentáveis, tenta, e muitas vezes consegue colonizar movimentos genuínos criados em países subdesenvolvidos, alegando ajuda, mas na verdade está travestindo esses insurgentes em meros peões para fazerem parte do grande xadrez da globalização. Decepcionante!

No segundo texto dessa parte, Sobre o cuidado com os idosos e os limites do marxismo, a autora explode a cabeça do leitor com argumentos fortes sobre o envelhecimento da população e a falta de pessoas especializadas para cuidar delas. Através de exemplos fortes e sensíveis, Federici nos faz pensar nas pessoas que precisam cuidar dos pais ou parentes doentes, em casa, sem nenhum tipo de infraestrutura, sem recursos para tanto e ainda dividir esses cuidados com o trabalho externo e o trabalho doméstico. Essas pessoas são julgadas quando optam por internar seus entes queridos em asilos ou hospitais especializados (isso quando podem pagar por esses serviços) ou até mesmo quando contratam um cuidador de idosos, pois, de acordo com o senso comum – olha o Kitsch do Kundera aí de novo, minha gente! – é uma obrigação dos filhos cuidar dos pais idosos ou doentes.

Ora, se um indivíduo não tem capacitação para o cuidado com doentes e pode pagar por um espaço digno ou por um serviço especializado, qual o problema em proporcionar isso àqueles que lhe são caros? Se a pessoa doente optou por ficar em casa e ter um atendimento mais humanizado, qual o problema em contratar um cuidador? Isso não demonstra falta de amor ou ingratidão das pessoas, mas é uma escolha lógica pensando no conforto do enfermo. Por outro lado, e que é muito mais preocupante, existem as pessoas que não têm opção em pagar por esses serviços. Geralmente nesses casos, o doente fica relegado ao esquecimento, sujo, descuidado, com fome, perecendo em vida em uma cama desconfortável, em um local sem conforto térmico e sem infraestrutura para recebe-lo. Dessa forma, a autora alega que seria lógico o Estado se responsabilizar por essas pessoas, que afinal, trabalharam uma vida inteira (independente de terem recolhido impostos ou não). Elas não deveriam ser mais um fardo para os descendentes, que além de cuidar do enfermo, tem de trabalhar fora e cuidar da casa.

O ensaio que fecha essa antologia, chama-se Sobre o trabalho afetivo e eu simplesmente amei esse texto. A autora constrói aqui um histórico daquilo que conhecemos como “valor agregado” dos produtos e que nada mais é que uma forte opressão do sistema capitalista sobre os indivíduos que estão no mercado de trabalho. Federici mostra que essa questão da afetividade começou com as empresas aéreas, onde as comissárias de bordo deveriam estar o tempo todo sorrindo, mesmo em situações de perigo extremo, passando tranquilidade e segurança aos viajantes. Depois, esse sorriso eterno no rosto passou a ser uma obrigação dos atendentes de lanchonetes de fast food norte-americanas, se estendendo para todos os comércios do mundo.

Talvez para nós, consumidores, esse “valor agregado”, produto da afetividade, produzida por pessoas, atualmente, seja primordial ou até mesmo normalizado. Entretanto, ele exige e oprime muito as pessoas que precisam oferecer essa afetividade o tempo todo aos outros. Uma pessoa não pode mais ter um dia ruim, atender ao cliente com o rosto neutro, ser objetiva. Ela precisa sorrir, aceitar desaforos, ser gentil ao extremo e, algumas empresas exigem que o atendente olhe para o cliente da forma certa, faça contato visual na hora exata e ofereça a ele mais que o cafezinho ou o pão na chapa, mas afeto, alegria e uma ilusão de felicidade e de exclusividade que ele só vai encontrar ali. Esses argumentos de Federici são urgentes para pensarmos sobre as nossas exigências como consumidores e sobre a nossa relação com as pessoas que estão em uma esfera inferior de poder.

Além disso, vale lembrar que todos os “valores agregados” – afetivos, ecologicamente corretos, etc. – servem apenas para enriquecer mais ainda pessoas que já possuem muito dinheiro e não precisariam de mais. Geralmente esse enriquecimento de poucos é feito sobre a ruína de muitos e é por isso que estamos sempre todos estressados, tristes, solitários, infelizes. Cobramos do outro aquilo que ele pode e não pode nos dar. Oferecemos ao mercado a ilusão de que somos alegres e felizes o tempo todo, principalmente nas redes sociais. Desqualificamos um estabelecimento por mau-atendimento quando a pessoa que nos atende não sorri o tempo todo ou porque alguma coisa não nos agradou o bastante. Nos tornamos cada vez mais exigentes conosco e com os outros e dessa forma, fomentamos a opressão, a pobreza e os grandes males da atualidade: a depressão, a ansiedade e a estafa física e mental.

O ponto zero da revolução (Elefante, 2019) é um livro importante para pensarmos não apenas sobre o feminismo, mas sobre as nossas possibilidades de ação para melhorar a vida em comunidade. A autora aborda muitos assuntos, mostra outras realidades, de outros países para percebermos que infelizmente, algumas práticas não são exclusivas do Brasil, mas são mundiais. É fundamental para tentarmos construir um significado maior para as nossas necessidades em comum e procurarmos respostas para os impasses deixados por Federici nesses ensaios provocadores e contundentes. Recomendo a leitura para todos, a fim de refletirmos mais sobre a vida em sociedade.

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