crítica

Os abismos – Pilar Quintana

Depressão, suicídio, anorexia e maternidade compulsória. Esses são alguns dos temas abordados nesse livraço da escritora colombiana Pilar Quintana, Os abismos (Intrínseca, 2022), vencedor do Prêmio Alfaguara 2021. Neste romance, conhecemos duas Cláudias: mãe e filha que passam por um momento complicado de suas vidas. A história dessa família é narrada pela Cláudia filha, uma menina de nove anos, que tem a sua infância e a sua inocência roubadas pelos problemas vivenciados por sua mãe, que apresenta um quadro clássico de depressão.

Para entender o enredo dessa obra, é importante saber que Cláudia mãe foi uma jovem sonhadora, que desejava ser enfermeira, trabalhar, viajar pelo mundo e ser livre. Entretanto, seus pais não permitiram que assim fizesse e logo lhe arranjaram um casamento. O livro é ambientado na década de 1980 e isso explica um pouco dos desdobramentos da trama. Porém, infelizmente, os estigmas colocados sobre as mulheres permanecem atuais. Cláudia se casou com um homem mais velho que ela, dono de um supermercado local, que vivia para o trabalho. Ele não tirava férias, nunca tinha tempo para fazer passeios ou se divertir em família, estava sempre calado e aparentemente triste e infeliz.

A personalidade desse homem cansado contrasta fortemente com a personalidade solar de Cláudia mãe, que desejava ser feliz, sair, passear e curtir a vida. Impedida de fazer tudo isso devido às convenções sociais, ela se isola em casa, tendo como companhia revistas da época que falavam sobre vida de artistas, moda e beleza. Madame Bovary também era o seu companheiro diário e a partir dessas escolhas podemos compreender um pouco dessa mulher que não tinha muito prazer na vida. Foi mãe de forma compulsória, não levava jeito para a maternidade, estava sempre focada em si mesma, questionando o que aconteceu com sua vida, sua juventude. Gostava de se produzir e de ser admirada pelos homens. Mas, não era vazia assim como parece. Ela desejava na verdade um sentido para sua vida e não o encontrava.

O leitor começa a acompanhar essa história a partir do momento em que a Cláudia filha percebe algo de errado em sua casa e começa a questionar isso. Sua mãe não é como as outras mães da escola, parece estar sempre ausente, com a cabeça longe. É admirada pelas outras mulheres, mas, com uma certa cautela. Cláudia mãe não deseja participar da vida escolar da filha, também não se dispõe a levar as amigas dela para passear ou para dormir em sua casa. Não se importa muito com as notas da filha e nem com o seu desempenho escolar. Sua atenção está sempre voltada para as revistas.

Um dia, Cláudia filha pega uma dessas revistas na tentativa de compreender o que tem de tão interessante ali para sua mãe passar tanto tempo em companhia delas. Ali ela descobre que algumas pessoas famosas, cheias de dinheiro, glamour e sucesso tiraram a própria vida e o suicídio se torna uma obsessão para ela: o que Cláudia filha quer entender é porque uma pessoa desiste de viver. Principalmente, uma pessoa que não tem motivos aparentes para querer morrer. E é aí que o livro se torna interessante: junto com a criança narradora, vamos conhecendo a mãe, o pai, a tia, irmã de seu pai, os amigos de juventude de Cláudia mãe e os casos de depressão e suicídio que tanto fascinam essa mulher frustrada, calada e subjugada apenas por ser mulher.

As conexões com os fatos reais que a autora faz aqui são sensacionais. A partir da metáfora com os abismos que guardamos dentro de nós, ela mostra que pessoas aparentemente felizes, realizadas e que “têm tudo”, muitas vezes não têm nada ou em alguns casos, tiveram de abrir mão de si mesmas para viverem em sociedade ou para conseguirem uma oportunidade de trabalhar com aquilo que sonhavam. Não é segredo para ninguém e no livro isso fica subentendido, que as atrizes e cantoras da década de 1980, ano em que o romance é ambientado, sofriam muito com assédio de todas as formas e por isso acabavam se viciando em álcool e em drogas, o que as levava ao suicídio precoce ou a uma depressão profunda.

O vazio de sentido da vida e todos os abusos aos quais as pessoas eram submetidas para conseguirem sobreviver em um mundo machista e patriarcal, onde as regras já estavam expostas e todos deveriam se adequar a elas, levou muitas pessoas, principalmente as mulheres a terem uma vida de aparências e a saúde mental delas ficou gravemente comprometida. É muito difícil suportar uma existência onde as suas vontades e desejos não são ouvidas ou até mesmo colocadas em uma posição de supérfluo, de boçalidade total e que não merecem importância. E assim eram vistas as necessidades da Cláudia mãe: ela não precisava de nada, afinal, tinha tudo.

Na década de 1980, a Colômbia enfrentava uma luta contra o cartel de Medelín, liderado por Pablo Escobar, traficante que ficou conhecido mundialmente. Além disso, havia uma preocupação constante em relação à política local, que estava passando por mudanças. A FARC – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, grupo socialista que lutava por seus ideais, estava ganhando força e isso preocupava as famílias de classe média, como a de Cláudia. Seu pai era um empresário, considerado rico e explorador de mão de obra e dessa forma, com um governo socialista, em sua percepção, eles teriam muito a perder em relação ao poder aquisitivo e ao estilo de vida que tinham. A desinformação, na maioria das vezes, provoca o pânico na população e isso aparece em algumas situações do romance, de forma sutil, mas que agrava os problemas de depressão de Cláudia mãe.

Outra distração da matriarca da família são as suas plantas. A casa é descrita pela narradora como um grande jardim, que dialoga diretamente com o contexto da cidade de Cali, onde a mata está circundando a cidade e faz parte da vida de seus habitantes. O abandono dessas plantas é um sinal de alarme para Cláudia perceber que sua mãe não está bem e que precisa de ajuda. Porém, ninguém além dela e da ajudante da casa percebem a gravidade da situação. Os demais familiares consideram o isolamento e a falta de vontade de Cláudia em sair da cama como uma rinite ou uma doença física. Isso mostra ao leitor o preconceito existente em relação às doenças mentais e principalmente, em relação à saúde mental da mulher. Para o marido, a vida de Cláudia é perfeita: ela vive em uma casa confortável, tem uma empregada que a ajuda na lida diária, uma filha saudável e um marido que tem uma boa condição financeira e faz o seu papel de provedor.

O que ele não compreende é que nem todas as mulheres desejam essa vida doméstica. Que muitas delas não queriam ter filhos e nem mesmo se casarem. Para Cláudia mãe, trabalhar e ser livre já seriam motivos suficientes para ser menos infeliz e se sentir humana. Claro que ela desejava o amor, mas um amor de verdade e não aquele escolhido por seus pais, casando-se com um homem que não tem os mesmos projetos que ela e que é tão diferente, tão oposto a ela. Dificilmente uma relação como esta teria um final feliz, mas, Os abismos termina em aberto.

Poderíamos ficar aqui por horas comentando esse livro com spoilers e discutindo os tantos temas que a autora em pouco mais de 200 páginas traz para reflexão. Porém, a essência desse romance é essa: a depressão causada pela infelicidade e pela vida de aparências. Provocada pela negação do eu em prol do outro. Não que os relacionamentos se baseiam em um jogo de egos, mas, os pares devem ter ao menos afinidades próximas e não olharem para lados opostos. Talvez assim, Cláudia mãe, uma mulher apagada poderia ter tido a oportunidade de brilhar e até mesmo de ser uma boa mãe. Mas não foi o que aconteceu. Os abismos é um livro forte, muito bem escrito e onde o leitor só vai acessar essas discussões e reflexões através dos inúmeros não-ditos, dos enormes penhascos que são colocados na narrativa para a nossa inferência e percepção das sutilizas.

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