crítica

Os Europeus: o século XIX e o surgimento de uma cultura cosmopolita – Orlando Figes

Você já parou para refletir sobre as mudanças advindas a partir da construção das ferrovias? Pode-se dizer que esse foi o início do que conhecemos atualmente como globalização: os trens permitiram que as pessoas pudessem se locomover mais rápido, de um país para o outro e com isso, a difusão da música, das artes e da literatura se tornou muito mais fácil, atraindo um público grande e conquistando os lares e cidades por toda a Europa. Essa é a premissa do livro Os Europeus (Record, 2022) do escritor e historiador Orlando Figes, uma obra que certamente nos traz muitos conhecimentos, tornando-nos até mais interessantes.

A partir de algumas figuras importantes no mundo das artes no século XIX, o autor nos apresenta uma Europa que estava começando a se tornar cosmopolita e como muitas coisas que colecionamos ou que gostamos de ter ou fazer surgiram. Esses artistas da época são Ivan Turguêniev, escritor russo que vivia na França; Pauline Viardot cantora de ópera e seu marido Louis Viardot, um intelectual e escritor da época e George Sand, escritora francesa que estava muito à frente de seu tempo. Aparecem na obra outras figuras importantes como Flaubert, Chopin, Manet e Renoir, dentre outros, além de aprendermos um pouco sobre economia, pois a partir da chegada das ferrovias, o comércio começou a fervilhar e isso trouxe um enorme impacto econômico para a Europa.

Tratando-se das artes em geral, as óperas começaram a circular pelo continente. Assim era possível assistir em sua própria cidade as grandes produções musicais da época, ao vivo. As temporadas passaram a ser combinadas com antecedência e este fato levou a um movimento maior de pessoas nas ruas. Após o espetáculo, era comum que os frequentadores desejassem ouvir essas músicas em suas casas ou até mesmo reproduzi-las no piano. Assim foram criadas as partituras e elas eram vendidas nas livrarias ou no teatro após o show. A mesma coisa acontecia com os livros: sabendo-se que uma obra importante foi lançada em Paris, as editoras se movimentavam para conseguir traduções ou cópias para os seus países a fim de que todos pudessem ler o mesmo livro. Com as pinturas, o movimento foi um pouco diferente. Os artistas da época criavam suas obras e depois, elas eram reproduzidas em tamanhos menores para serem levadas para as casas. Dessa forma, surgiram os suvenires que tanto amamos.

Claro que, com tanta propagação das músicas e dos livros, houve um movimento de pirataria dessas obras. Todos queriam lucrar com o movimento cosmopolita que estava surgindo e com as enormes possibilidades de consumo e de deslocamento das pessoas. A fim de se proteger e garantir os direitos autorais, foi criado o copyright, utilizado até hoje para os mesmos fins. Uma estratégia adotada pelas editoras para combater a pirataria foi a criação de uma linha editorial mais simples e consequentemente mais acessível ao público: nascia aqui os livros de bolso e as edições colecionáveis, como as da Penguim. Como essa ideia fez muito sucesso, as editoras investiram em outros formatos mais caros, para aqueles que gostavam de colecionar os livros em capa dura e tê-los em uma edição mais primorosa. Nascia assim um cânone literário: os editores escolhiam quais obras mereciam ter essas edições de luxo.

Observando todos esses movimentos, percebemos que muitos dos nossos hábitos de consumo começaram aí. Muitas coisas que hoje fazem parte do nosso cotidiano surgiram no século XIX para atender uma demanda que começava a surgir. As estações ferroviárias passaram a ser um lugar para ser explorado economicamente. A circulação de pessoas era intensa e assim os empresários da época pensaram em possibilidades para entreter esses passageiros em seu tempo de espera, ou até mesmo uma forma de fazê-los permanecer por mais tempo ali, consumindo os produtos e serviços ofertados. Os jornais começaram a encomendar aos escritores histórias curtas, que um leitor pudesse degustar entre um trecho de uma estação a outra. Surgiam assim os contos, que tiveram o seu auge no final do século XIX: histórias curtas, com começo, meio e fim, mas que fossem atrativas e instigantes. Dessa forma, o passageiro nem percebia o tempo passar até chegar ao seu destino.

As estações ferroviárias eram como os aeroportos de hoje, muito movimentadas e um centro de comércio. Aos poucos, suvenires, livros de bolso, partituras de óperas, revistas, jornais e outros itens passaram a ser vendidos por lá. Os cafés também começaram a surgir, não apenas nas estações, como também nas grandes cidades. As pessoas passavam mais tempo na rua do que em suas casas. Os encontros com os amigos passaram a acontecer nos cafés, tradição que se mantém até os dias atuais. Em um café parisiense, um garçom italiano resolveu inovar o modo de servir o tradicional o café com leite do cliente, adicionando alguns ingredientes, criando assim o famoso e amado Cappuccino. Essas ações eram bastante comuns nessa época, pois todos queriam faturar e manter os seus clientes. Talvez esse seja o início ou o embrião do que conhecemos hoje como valor agregado.

O mais interessante em Os Europeus, é que aprendemos muito sobre a história da Europa moderna de uma forma interessante, simples e fácil de compreender. Estudamos economia sem perceber. Estudamos as mudanças e os seus impactos na vida do cidadão comum, também sem nos darmos conta disso. Aprendemos sobre objetos e costumes que adotamos ao longo do tempo, mas que não sabíamos a sua origem. Este é um livro que agrega valor a nós como indivíduos. Após a sua leitura, é comum que façamos conexões com os acontecimentos do século XIX em filmes, séries de TV, novelas, livros que lemos e até mesmo nos nossos hábitos diários. Alguns livros nos transformam, e Os Europeus certamente me transformou em uma pessoa mais bem informada e mais conectada com o mundo globalizado em que vivemos.

É uma leitura muito fluida, muito instigante e que tem algumas fofocas para quem gosta. Neste livro, ficamos sabendo sobre o caso e a paixão eterna que Turguêniev teve por Pauline Viardot. Além disso, acompanhamos o impacto e o funeral de grandes celebridades da época, tais como Flaubert, Victor Hugo, Dostoiévski e Turguêniev. Compreendemos também como funcionava a questão da Rússia, dividida entre os europeizantes e os eslavofilistas, e como a figura de Turguêniev foi importante para a difusão da literatura russa na Europa. É comum termos no Brasil livros russos traduzidos do francês. Isso porque o autor fazia traduções dos grandes romances russos para o francês e assim, a literatura russa se propagou a partir da França para o mundo. Pode-se concluir que Os Europeus é um livro de história da Europa, com um pouquinho de fofoca, onde aprendemos muito de uma forma leve e funcional. Se você já leu os livros do historiador brasileiro Laurentino Gomes e gostou, leia Os Europeus. Ele segue a mesma vibe.

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