crítica

A bela e a fera – Clarice Lispector

A bela e a fera (Rocco, 2020) é um conjunto de contos de uma das maiores escritoras brasileiras do século XX, Clarice Lispector, que reúne escritos do ano de 1942 e outros da década de 1970. Os contos, que compõem a Primeira Parte desta coletânea foram publicados em jornais do Rio de Janeiro, quando a autora tinha 22 anos e os dois que finalizam essa edição, compondo a Segunda Parte foram publicados postumamente, junto a outros escritos de Clarice.

O que chama a atenção para essa antologia muito bem elaborada pelos curadores são as vicissitudes da alma feminina. É impressionante como a escritora conseguia captar tão bem sentimentos comuns às mulheres, totalmente impalpáveis e muitas vezes inomináveis, mas que ela colocava no papel através de um discurso indireto livre, de uma forma visceral, intrínseca e muito verossímil, levando-nos à identificação imediata, nem que seja em partes com os sentimentos narrados nas histórias.

Acompanhamos ao longo desses contos mulheres jovens, maduras, adolescentes, balzaquianas, esposas, solteiras, solitárias e tantas outras que nos representam tão bem. As primeiras histórias, que se passavam na década de 1940, ainda são muito pertinentes ao universo feminino do século XXI, tornando a obra totalmente universal e atemporal. As mulheres descritas por Clarice são intensas, inquietas e buscam respostas convincentes para o vazio de sentido de suas vidas.

Naquele tempo, algumas mulheres já trabalhavam fora de casa, mas essa liberdade geralmente se limitava à uma necessidade econômica. Ou seja, mulheres pobres trabalhavam. Aquelas que viviam em uma situação financeira mais favorável, eram relegadas ao lar, ao cuidado com o marido e com os filhos. Esperava-se delas uma competência esplêndida em manter uma casa limpa e organizada, preparar refeições saudáveis, educar os filhos e receber os amigos do marido quando lhes fosse solicitado.

Outra característica dessas mulheres da primeira metade do século XX era o dom de esconder os seus sentimentos mais íntimos e reais. Elas deveriam estar sempre plenas, com um sorriso no rosto e jamais reclamarem de alguma coisa. O problema é que desde que o mundo é mundo, nós mulheres somos seres pensantes e, portanto, desejamos ocupar a nossa mente com algo produtivo e também intelectual. O enfado provocado pela falta do que fazer com a nossa mente durante as horas passadas em casa, na maior parte das vezes sozinhas, levou muitas mulheres à loucura e outras ao adultério.

Clarice desenvolve muito bem todos esses sentimentos de tédio, angústia, solidão, deslocamento, estrangeirismo provocados pelo gênero. Esse incômodo que ela sentia e narrava em suas histórias é o mesmo que a maioria de nós mulheres sentimos quando somos menosprezadas pela sociedade patriarcal que nos oprime e tenta nos colocar dentro de caixinhas e de lugares aos quais não queremos (e não devemos) pertencer.

Na maioria dos contos dessa antologia ela vai discutir e principalmente levantar questões muito importantes para o pensamento crítico e para reflexões sobre o nosso modo de vida alienante. No conto que abre a coletânea, “História interrompida”, temos como temas principais a depressão, a autodestruição e o suicídio. Na segunda pequena grande história, “Gertrudes pede um conselho”, a narradora aborda temas como o pensamento crítico feminino (algo impensável em 1942), movido pela falta, pela carência de liberdade, independência, autonomia e compreensão. Naquele tempo, uma mulher desejar todos esses direitos era algo subversivo.

O terceiro conto, um dos meus favoritos, “Obsessão”, aborda algumas consequências do tédio feminino, a mais clichê de todas, o adultério como forma de libertação da alma, como uma oportunidade de SER, de encontro e como uma fuga de uma realidade enfadonha e sem sentido. “Delírio” é outro conto potente, que flerta um pouco com o surrealismo, fazendo uma analogia da mente doente do protagonista com a doença do planeta, como a Terra cansada, murcha e chegando ao fim. “A fuga” reflete sobre a condição de muitas mulheres (daquela época e da nossa época também) que é a dependência financeira ao marido, que as prende em um casamento âncora, que faz com que passem a vida olhando pela janela, vendo a vida passar, sem perspectivas de um dia novo, de algo diferente e de libertação.

O conto que fecha a Primeira Parte é “Mais dois bêbados”, onde a autora conversa sobre a finitude da vida, sobre a morte. Diferente das outras histórias, os protagonistas são homens e vão discorrer sobre esse tema tão capcioso que é o fim. Conto bastante filosófico, que nos leva à reflexão sobre o que é ou não importante na vida e sobre a sua brevidade. O final é sensacional.

Na Segunda Parte, uma Clarice mais madura aparece para nos dar uns bons tapas na cara, trazendo à tona problemas sociais e morais. O primeiro conto dessa parte chama-se “Um dia a menos”. De forma contundente e visceral, acompanhamos uma mulher solitária, metódica, que segue uma rotina de nada para fazer e que vive um vazio de sentido total. Em um determinado momento, o telefone toca, levando-a a um momento de êxtase. E para saber quem estava ligando para ela, só mesmo lendo esse livraço. O último conto, que se tornou um dos meus contos favoritos da vida é o que dá nome à coletânea “A bela e a fera”. Aqui temos uma mulher rica, saindo de um dia de beleza em um Hotel na Avenida Atlântica (Rio de Janeiro) e, por impaciência em esperar seu motorista, resolve ir caminhando para casa, passando então pela Av. Nossa Senhora de Copacabana. Ali ela é confrontada com uma realidade totalmente distante da sua, levando o leitor a participar desse conflito junto à narradora e a refletir sobre a nossa sociedade infinitamente desigual e sobre a nossa alienação a tudo isso. Conto sensacional.

Essa antologia é fechada com um dos posfácios mais legais que já li até hoje. Claufe Rodrigues escreve uma carta para a Clarice de 22 anos, contando a ela como sua obra sobreviveu ao tempo, como ela é reconhecida e amada no mundo inteiro e como é a nossa vida atualmente. Ele comenta alguns contos da coletânea em um diálogo muito bonito com a escritora, divertido e inteligente. Para quem nunca leu Clarice, essa é uma excelente porta de entrada para a sua vasta obra.

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