crítica

A elegância do ouriço – Muriel Barbery

Para os fãs de Milan Kundera e de Tolstói, temos aqui um livro imperdível. Filosófico na medida certa, com personagens inesquecíveis, cativantes, engraçados, mas profundos a ponto de nos levar a reflexões importantes sobre nós e sobre os nossos preconceitos, A elegância do ouriço (Companhia das Letras, 2022) é um livro tocante, com muitas críticas sociais, narrado sob duas perspectivas diferentes: Renée, a zeladora e Paloma, a pobre menina rica.

Logo no início da narrativa, o leitor encontra o tom dessa prosa na seguinte fala de Renée: “se existe algo que os ricos dividem a contragosto com os pobres, são os intestinos nauseabundos, que sempre acabam se livrando em algum lugar daquilo que os fez feder” (BARBERY, 2022, e-book, posição 219). Para quem já leu A insustentável leveza do ser, a semelhança não é mera coincidência, pois temos aqui uma personagem simples, pobre, pertencente à classe trabalhadora, mas que é muito mais inteligente e sagaz que os ricos para quem presta serviços. Renée é uma leitora voraz, conhecedora dos clássicos e das grandes obras filosóficas e que tem um grande apreço pelo conhecimento e pela sabedoria. Entretanto, ela não demonstra essas qualificações aos moradores do edifício onde trabalha: prefere o anonimato e o silêncio, guardando para si e para as pessoas mais próximas toda a sua elegância e refinamento.

Renée é capaz de fazer comparações inteligentes com personagens de Em busca do tempo perdido e os moradores do edifício, assim como discretamente, coloca o nome em seu gato de Leon, homenageando Tolstói. Por outro lado, ela sabe qual é o seu lugar na sociedade e por isso, evita a exposição: “Ser pobre, feia e além do mais inteligente condena, em nossas sociedades, a percursos sombrios e sem ilusões, aos quais é melhor se habituar cedo. À beleza se perdoa tudo, até mesmo a vulgaridade” (BARBERY, 2022, e-book, posição 427). Essa citação nos faz pensar em quantas mulheres e homens como a Renée existem perdidos em portarias de prédios, em corredores insalubres varrendo o chão e limpando os banheiros. E também nos provoca a olhar para os indivíduos como seres humanos e não pelos títulos que carregam.

A nossa sociedade dividida em castas é cruel a ponto de acreditarmos que pessoas que têm empregos simples não possuem conhecimento ou cultura. Esses indivíduos são relegados ao esquecimento e à penumbra da vida, perdendo assim grandes oportunidades de compartilharem com os outros a sua sabedoria e o seu ponto de vista, muitas vezes ignorados e julgados por preconceitos construídos socialmente. E é aqui que entra a Paloma, uma garota de doze anos, que deseja se matar em seu aniversário de treze anos. O descontentamento da personagem vem das suas observações argutas sobre as pessoas e o mundo ao seu redor. Ela não enxerga as pessoas através da beleza física ou dos títulos que elas ostentam: Paloma, como boa seguidora das filosofias orientais, acredita que o ser humano é muito mais que a sua aparência.

A profundidade dos pensamentos da adolescente é tão grande que o leitor consegue sentir a sua infelicidade e o seu descontentamento com a nossa sociedade, que vive de forma vazia e fútil, se apegando cada vez mais às superficialidades, e dessa forma, se afastando uns dos outros, pois, são tantas mentiras que precisam ser mantidas diariamente, que as pessoas perdem aos poucos a sua essência verdadeira e a sua espontaneidade. É como se passassem os dias representando algo que não são verdadeiramente. “Assim se vive a vida de homem, no nosso universo: é preciso reconstruir sem parar a nossa identidade de adulto, essa montagem capenga e efêmera, tão frágil, que reveste o desespero e que, quando se está sozinho olhando para o espelho, conta a mentira em que se deve acreditar” (BARBERY, 2022, e-book, posição 927).

Paloma transporta esse desconforto que sente em sua família para a sociedade parisiense como um todo. Ela acredita que tudo na cidade foi construído sobre a falsidade e a mentira e por isso as pessoas não são felizes: “isso leva a pessoa a se tornar morta, embora esteja viva, a anestesiar os maus sentimentos, mas também os bons para não sentir a náusea de ser ela mesma” (BARBERY, 2022, e-book, posição 940). Esse paralelo com Sartre, filósofo existencialista, reflete a construção de uma sociedade onde as pessoas repetem aquilo que lhes é ensinado, mesmo discordando de tudo e que aos poucos é engolida pela vida e segue como em uma engrenagem, onde cada peça tem a sua função e entra no lugar exato, permitindo assim que a máquina funcione. A farsa de leveza, de luz, de fraternidade, liberdade e igualdade está até mesmo na gastronomia: “o zabaione é o emblema da cozinha francesa: um troço que pretende ser leve e sufoca o primeiro cristo que aparece” (BARBERY, 2022, e-book, posição 948).

Em contraponto à mentalidade ocidental, Paloma nos apresenta um pouco sobre a filosofia de vida oriental. A autora é uma grande apreciadora do oriente, em especial do Japão. Ela se identifica bastante com o modo de vida dessa população e esse apreço que sente pela cultura japonesa é manifestado no livro a partir de Paloma e de um novo morador do condomínio, que revolucionará a vida de todos à sua volta. Em um trecho bastante emblemático do romance, Paloma nos mostra a diferença crucial entre o jogo de Go e o Xadrez, servindo os jogos como metáforas para as nossas sociedades: “Quando penso no go… Um jogo que tem por objetivo construir um território é obviamente bonito. Pode haver fases de combate, mas são apenas os meios a serviço dos fins: fazer viver seus territórios. Um dos mais bonitos lances do jogo de go é que está provado que, para ganhar, é preciso viver mais também deixar o outro viver. Quem é ávido demais perde a partida: é um sutil jogo de equilíbrio em que é preciso ganhar vantagem sem esmagar o outro. Afinal, a vida e a morte são apenas a consequência de uma construção bem ou mal edificada” (BARBERY, 2022, e-book, posição 1181).

Podemos pensar a partir dessa comparação nas nossas escolhas cotidianas e principalmente na forma como votamos: a partir do momento em que o hedonismo se fortalece em nós e em nossas sociedades, estamos nos afastando da coletividade e priorizando aquilo que nos beneficia diretamente. Assim, vivemos, enquanto matamos os outros. Sobrevivemos às custas da miséria e da exploração do outro. No go, o construtivismo prevalece e assim, quando todos são fortes, as disputas são mais justas, assim como devem ser as nossas sociedades e as nossas políticas públicas.

Ainda falando sobre os males sociais, em um certo momento, a avó de Paloma é levada para uma casa de repouso para idosos. Esse é um dos capítulos mais significativos do romance, porque ela faz uma análise sobre o envelhecimento e sobre a nossa certeza durante a juventude de que temos todo o tempo do mundo para construir uma vida, corrigir nossos erros e acertar. Também pensamos que coisas ruins, tipo viver em um abrigo para idosos só acontece com os outros e não conosco. E assim, vivemos de forma grosseira, sem construir relações fortes com os nossos entes queridos ou mesmo com os nossos amigos e essa vida de mentira e de vazio vai cobrar o seu preço em certo momento. Afinal, sempre nos esquecemos que o futuro é construído hoje, agora.

Não se devem esquecer os velhos de corpos estragados, os velhos que estão pertinho de uma morte em que os jovens não querem pensar (por isso confiam ao asilo o cuidado de levar seus parentes, sem escândalos nem aborrecimentos), a inexistente alegria dessas derradeiras horas que deveriam ser aproveitadas a fundo e que são padecidas no tédio, na amargura e na repetição. Não se deve esquecer que o corpo definha, que os amigos morrem, que todos nos esquecem, que o fim é solidão. Esquecer muito menos que esses velhos foram jovens, que o tempo de uma vida é irrisório, que um dia temos vinte anos e, no dia seguinte, oitenta” (BARBERY, 2022, e-book, posição 1353)

A brevidade da vida é explorada ao longo do romance de várias formas, mostrando sempre que é preciso lembrarmos de que o futuro se constrói no dia-a-dia, nas nossas relações, nas pequenas coisas e na singeleza da vida e dos nossos sentimentos. O título desta obra está totalmente relacionado à toda essa questão. Em uma passagem, quando o Sr. Ozu, conhece a Renée, ele diz: “A Sra. Michel tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes” (BARBERY, 2022, e-book, posição 1500)

A entrada de Ozu no romance traz uma outra camada de significados para a obra e nos leva a refletir sob outros pontos de vista, sobre a nossa facilidade de julgamentos precipitados: “Nunca vemos além das nossas certezas e, mais grave ainda, renunciamos ao encontro, apenas encontramos a nós mesmos sem nos reconhecer nesses espelhos permanentes” (BARBERY, 2022, e-book, posição 1515). Na verdade, o que nos faz crescer e nos transforma, geralmente são as trocas, a convivência com as diferenças. Quando nos cercamos de pessoas iguais a nós, ficamos parados no mesmo lugar, a evolução não acontece quando nos blindamos das dores do mundo, dos choques provocados pela vida, do assombro e do desconhecido. Se fossemos capazes de nos permitir mais, de sairmos das nossas bolhas, a riqueza de trocas seria muito maior e talvez, só talvez, poderíamos ser mais humanos, mais tolerantes, mais capazes de sentir empatia e de compreender o outro e o mundo à nossa volta.

Todo o assombro do qual fugimos até mesmo de forma inconsciente está retratado no episódio que se passa no Café Angelina. Um casal de parentes da Paloma, que têm uma filha trissômica, vão até a cafeteria e se sentem imediatamente constrangidos por não serem iguais aos outros, por terem um membro da família que é diferente dos demais. O ambiente foi assim descrito por Paloma:

todas aquelas pessoas bem-vestidas, comendo cheias de nove-horas em confeitarias caríssimas, e que só estavam lá para… bem, pelo significado do lugar, pelo fato de pertencerem a um certo mundo, com suas crenças, seus códigos, seus projetos, sua história, etc. É simbólico, sabem. Quando tomamos chá na Angelina, estamos na França, num mundo rico, hierarquizado, racional, cartesiano, civilizado” (BARBERY, 2022, e-book, posição 2724).

Ao sair do café, percebendo que seus parentes conseguiram se sentir um pouco melhor ao verem uma criança vietnamita adotada, junto à sua família tradicional aos moldes franceses, ela pensa que essa criança um dia terá dificuldades de convivência no país, que ela poderá se revoltar por ter sido afastada de sua cultura. Para Paloma, a vida é bastante sem sentido quando a vemos dentro dessas construções sociais opressivas, que obrigam as pessoas a serem aquilo que não são. Sua raiva nasce da forma como a sua família lida com tudo isso:

Mamãe acredita que se pode conjurar a sorte com uma borrifada de spray. Colombe, que se pode afastar a angústia lavando as mãos, e papai, que ele é um mau filho que será castigado porque abandonou a mãe: finalmente, têm crenças mágicas, crenças de primitivos, mas, ao contrário dos pescadores tailandeses, não podem assumi-las porque são franceses-educados-ricos-cartesianos” (BARBERY, 2022, e-book, posição 2739)

A elegância do ouriço é um livro belo, onde conhecemos personagens marcantes, intensos que vão despertar em nós sentimentos diversos, inclusive aqueles que nos fazem parar e ficar olhando para o vazio, tentando entender o que aconteceu ali. O final não é nada clichê, mostrando as adversidades da vida, algo que está presente ao longo de toda a prosa. As discussões sobre vida e morte, envelhecimento, invisibilidade da classe trabalhadora e a perspectiva oriental sobre a vida fazem parte do fio condutor da narrativa, fragmentada entre as duas narradoras. A única crítica que tenho a fazer em relação a essa obra são as vozes iguais para Renée e Paloma, que deveriam ter suas próprias vozes, diferentes uma da outra. Mas, diante de tantas reflexões boas e de um enredo tão interessante, esse problema estético se torna apenas um detalhe menor.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *