crítica

A história secreta – Donna Tartt

Até onde você seria capaz de ir em busca do sublime? Pode parecer uma pergunta ridícula, mas toda a história desse romance gira em torno dessa busca incessante pelo sublime ou por algo que dê sentido à vida vazia de cinco jovens universitários que tiveram tudo na vida: dinheiro, poder, carros, casas paradisíacas, viagens pelo mundo, acesso ao conhecimento e muito mais, porém, não são felizes e não se bastam como indivíduos: precisam sempre buscar algo mais fascinante, mais intenso e que provoque reações maravilhosas o tempo todo.

A história secreta (Cia das Letras, 2021) é ambientada na Bennington College, em Vermont, universidade voltada para o estudo das humanidades. O lugar é muito bonito, apesar de estar cercado de matas e penhascos, ser um local frio e hostil, e o prédio do campus nos remeter imediatamente aos castelos góticos do século XVIII. Esse clima provocado pela ambientação e fartamente detalhado e descrito no livro pelo narrador coloca os estudantes em um ambiente propício para os desdobramentos do romance, combinando plenamente com a suas personalidades sombrias e melancólicas.

A princípio, temos aqui algo que podemos chamar de Romance de Oxford, que é caracterizado pelo desejo estético do estudante em viver no campus, onde o escritor vai abordar temas complexos, mas muito próprios desse universo como as desigualdades sociais, o envolvimento dos estudantes ricos com as drogas e bebidas, além dos dramas comuns aos universitários, como a entrada na vida adulta e as escolhas que precisam fazer ao estarem na faculdade. Todas essas situações estão presentes na obra de Donna Tartt e vão acontecendo de forma gradual e verossímil, mostrando que o fascínio das drogas e muitas vezes o desejo de fugir da realidade levam essas pessoas em idade escolar a abusarem desses entorpecentes, inclusive os remédios para dormir e os outros para se manter acordado e alerta por mais horas.

A trama se passa na década de 1980, quando a universidade tinha um significado muito grande para a classe média que estava tendo acesso aos estudos e a uma oportunidade de ascensão social. Por outro lado, esse que poderia ser o melhor dos mundos, também traz os seus dissabores como a desilusão e o rancor. Para os estudantes de classe social mais abastada, o diploma é um mero instrumento de promoção, pois, a maior parte deles já tem um trabalho garantido, seja nas empresas de suas famílias ou nos escritórios e firmas dos amigos de seus pais. Já para os estudantes da classe trabalhadora, o diploma é apenas o começo de uma jornada muitas vezes inglória de busca de oportunidade e de mobilidade social.

No romance de Tartt temos o contraste entre os cinco jovens ricos da turma de Grego Antigo e Richard, que é pobre e quase um penetra nessa turma tão seleta. Os sentimentos de raiva, inveja, rancor, desilusão e a sensação constante de inadequação acompanham o nosso protagonista narrador ao longo da prosa. Ele consegue ser aceito pelo professor após muita insistência e seus motivos são bastante fúteis: ele se sente incomodado por ser pobre, por viver na Califórnia; sente vergonha dos pais e de sua simplicidade; deseja ser um erudito, ter conhecimentos elaborados, ser um “clássico”, elegante e sofisticado. Porém, ele não pertence nem à categoria do “Old Money” e nem na do “New Money”, ou seja, Richard é da classe trabalhadora e não tem condições financeiras de acompanhar a vida luxuosa e cara de seus colegas de faculdade.

Quando adentramos no enredo de A história secreta, em um primeiro momento, o leitor tem a impressão de estar lendo um romance do século XIX ou início do século XX. Após algumas referências bem sutis é que se certifica de que o tempo presente do romance é a década de 1980. Essa confusão temporal acontece propositalmente porque os estudantes do grupo de Grego Antigo vivem em uma realidade paralela, são alienados dos acontecimentos do mundo moderno, produzindo um movimento de negação da modernidade, da tecnologia e de tudo e qualquer coisa que se aproxime do pop, algo bastante comum nos anos de 1980.

Nesta época, os Estados Unidos estavam sob o governo Reagan, de extrema direita, que procurava perpetuar os dogmas cristãos ortodoxos, a ideia do sonho americano, através de comportamentos rígidos, engessados e avessos às mudanças e ao diálogo. O neoliberalismo provocava um aumento nas desigualdades sociais, assim, os ricos enriqueciam mais, enquanto a classe média lutava pela mobilidade social, cada vez mais distante. Em contraponto a toda essa questão política, havia também os novos paradigmas que ganhavam força naquele tempo: através do capitalismo tardio, as novas tecnologias se tornavam mais acessíveis a todos, provocando uma maior influência cultural nas massas, por meio do cinema, dos espetáculos e das imagens que ganhavam muita força nas telas da TV. O pastiche e a cultura popular estavam em alta; surgia na literatura novas formas de contar histórias como a metaficção, os narradores não-confiáveis e a autorreflexão.

Além disso, as bandas de rock e a literatura de horror se popularizavam nos Estados Unidos e no mundo. Sua origem vem dos estudos da psicanálise sobre a mente dos assassinos em série, que ganhavam força nos anos 1980, como uma forma de justificar as atrocidades cometidas por esses indivíduos. Os estudos nessa área eram recentes, porém, a figura mítica de Jack, o estripador ainda gerava uma certa curiosidade e também um grande fascínio nas pessoas que tentavam entender o mundo sob uma ótica mais humanista e filosófica. Unindo todos esses conceitos e contextos, surgem os hoje conhecidos como thrillers psicológicos, romances que exploram a mente humana e suas camadas de loucura e lucidez, muitas vezes confundidas com a metafísica e consideradas obras satanistas.

Dessa forma, o cenário onde o romance se desenvolve é paradoxal: de um lado o conservadorismo e de outro a popularização das artes e do conhecimento através das novas tecnologias e estudos científicos. Partindo do princípio de que os pais conservadores se preocupavam em demasia com o que os filhos estavam aprendendo nas universidades e com o conceito de cursar uma graduação, a autora cria esse microcosmo onde encontramos um grupo de pessoas ricas, que vivem alienadas da política e da modernidade, acreditando-se superiores a todos os outros por terem conhecimentos específicos de literatura clássica e de línguas antigas como o grego e o latim em contraponto com um estudante bolsista, que transita bem entre o clássico e o moderno. E a partir desse contraste entre os mundos a escritora desenvolve um romance policial baseado na peça de teatro grego As Bacantes de Eurípedes.

Uma das principais características desse romance é o seu caráter pitoresco, desenvolvido a partir de um conceito estético, ambientado em meio a paisagens belas da natureza e a cenários góticos. Essa obsessão pelo pitoresco, por essa ideia de um refúgio idílico, onde o progresso não chega e que se pode viver no passado é o fio condutor da trama. A história é narrada em primeira pessoa por um narrador não-confiável, Richard Papen, estudante da turma de Grego Antigo, bolsista, pobre, que veio da ensolarada Califórnia, buscando essa ideia do pitoresco e do sublime. Ao chegar no campus universitário, ele logo se interessa por essa turma pequena, que não é aberta para qualquer estudante: o professor, Julian escolhe a dedo os seus orientandos. Além disso, aqueles que são aceitos nesse grupo não podem ter outro orientador e nem cursar outras disciplinas não ministradas pelo mestre do Grego Antigo.

Estudam nessa turma Henry, um rapaz estranho, inexpressivo, solitário e melancólico. Bunny, um jovem animado, cheio de vida, interessado em gozar os prazeres mundanos, vem de uma família de novos ricos, mas não possui as mesmas condições financeiras que seus colegas. Francis, um menino que se preocupa muito com a estética, está sempre impecável, vem de uma família tradicional e é assumidamente gay. Charles e Camila, gêmeos pitorescos, que mais parecem uma caricatura que pessoas reais, representam uma alegoria saída do passado remoto. As características desses personagens são fartamente descritas no primeiro capítulo de A história secreta. E isso não está ali por acaso, assim como em todos os grandes romances da literatura, as respostas que o leitor procura estão nessas descrições e nas personalidades dos componentes dessa história trágica.

Utilizando-se das características principais do romantismo, a autora constrói uma trama lenta, bastante detalhista, filosófica e reflexiva, chamando a atenção do leitor para as críticas e sátiras que ela faz sobre o comportamento dos personagens por ela criados. Os alunos da turma de Grego Antigo são indivíduos escapistas, por serem muito ricos e viverem em uma bolha, onde não existem misérias ou falta de algo essencial, eles levam uma existência blasé, nada os satisfaz. Estão sempre à procura de algo transcendental, algo forte, que dê sentido à suas vidas. Romantizam o estudo, mas não o estudo científico e sim a adoração ao clássico, ao antigo, são muito apegados às tradições, se vestem como se vivessem no século XIX, são rocambolescos como o romantismo. Suas percepções de mundo e dos outros é totalmente subjetiva, com foco no indivíduo e não no coletivo, o que aliás, eles abominam. Há um estabelecimento muito forte de classes sociais e uma aversão à possibilidade de uma mobilidade social dos colegas de classe média que estudam na Universidade. O esteticismo faz parte de toda a trama: eles julgam a vida de acordo com os critérios da arte e não com o foco na realidade que desconhecem.

Dentro desse contexto um tanto quanto peculiar, Julian dá uma aula sobre As Bacantes de Eurípedes. Para quem não conhece o enredo dessa peça, conta a história de Dioniso, um semideus da mitologia grega que tem a capacidade de embriagar as pessoas e leva-las à loucura. Ele vem acompanhado das suas Bacantes, que são mulheres alucinadas, que desafiam as convenções sociais e de gênero, pois são fluidas, ambíguas e são mais conhecidas por suas festas – Bacanais – que promoviam uma pausa no ano para a libertação total dos desejos carnais, através da embriaguez, do canto, da dança, do furor, do frenesi, da insubmissão e da liberação geral de ação, sem punições ou censura. Essa peça voltada para os prazeres mundanos deu origem ao que conhecemos como Carnaval, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. É claro que essa peça é também uma tragédia e deu origem a esse gênero teatral. Após as reflexões do professor, onde ele diz que a beleza é o terror e que nós sentimos prazer em ler textos trágicos, que falam de morte e de desgraças, o grupo dos cinco alunos da turma de Grego Antigo decidem recriar um bacanal no sítio de Francis, buscando o sublime.

O sublime é um conceito estético, com influência da literatura gótica e que tem como foco o belo e o pitoresco: algo que traz alegria, afeição e ternura junto à ânsia pelo prazer em um cenário doméstico e familiar. O sublime traz medo, terror, prazer que causa dor, reflete sobre a grandiosidade da natureza e a brevidade da vida. Ele não é compreensível pela mente humana e tem sua origem no pensamento iluminista. Assim, encontramos um grupo de pessoas buscando algo que não sabem o que é exatamente, extremamente racionais, ateus e dispostos a tudo para conhecer o sublime.

Há aqui uma grande metáfora para o comportamento a que os jovens norte-americanos são induzidos por suas tradições. O país nasceu do estruturalismo, da racionalidade e dessa forma são comparados aos gregos e acreditam precisarem de um êxtase exclusivo para pessoas extremamente civilizadas e racionais, ou seja, superiores aos outros. Existe uma deturpação sobre o conceito de conhecimento, como se fosse uma virtude exclusiva de seres superiores e que não estivesse disponível a todos. As massas para indivíduos que pensam assim nada mais são que bárbaros, invasores, não-civilizados, agressivos, selvagens e sem educação. É a desumanização que gera a xenofobia, insuflada nos jovens por conceitos racistas e de supremacia. É importante frisar que A história secreta é uma sátira, uma crítica, uma denúncia desse comportamento bestial e não o contrário: Donna Tartt está tentando abrir os olhos do leitor para os perigos desses conceitos de supremacia e de desqualificação de tudo aquilo que é popular.

Assim como em As Bacantes, a aventura dos jovens também termina em tragédia. Richard só é envolvido na história meses depois, quando tudo começa a ruir e as consequências de seu desvario em busca do sublime começam a aparecer e se tornarem acachapantes demais para pessoas como Francis e Charles. Henry procura tomar as decisões, controlar os colegas, impedir uma catástrofe. Porém, o mal já foi feito e tudo o que ele tenta fazer para resolver se volta contra si. Há uma forte referência entre Henry e a obra clássica de John Milton O paraíso perdido. A rebeldia e a revolução características fortes do poema épico são muito pertinentes na figura de Henry. Da mesma forma, o narrador Richard faz um belo intertexto que é visível desde os primeiros parágrafos do romance de Tartt com O grande Gatsby de Fitzgerald. Há muitas outras conexões com clássicos da literatura vitoriana e com textos mais atuais, como os thrillers contemporâneos do romance. Porém, as mais evidentes são as citadas neste texto.

A obra de Tartt é bastante realista e mostra que infelizmente, no mundo em que vivemos, dificilmente haveria punições legais para os crimes dos estudantes da turma de Grego Antigo. E aqui caímos naquele bordão horroroso dos estereótipos existentes e prevalentes do mundo real: jovens ricos, brancos, universitários, eurocêntricos, de boa família não têm cara de bandidos e nem de criminosos. Assim como no caso Dahmer, onde a polícia foi chamada por diversas vezes e voltou para trás duvidando que aquele indivíduo de boa aparência fosse um criminoso, em A história secreta acontece o mesmo: as suspeitas recaem sobre as minorias: árabes, que têm origem nos bárbaros, estereótipo que já foi definido aqui.

Infelizmente, mesmo esse romance tendo completado trinta anos em 2022, ainda permanece atual. Séries de TV como Elite, Sex Education, Euphoria, estão aí para mostrar que em trinta anos nada mudou. Temos também para provar que a justiça tem dois pesos e duas medidas um caso horrendo em andamento no Brasil, do empresário Tiago Brennand, criminoso notório talvez em busca do sublime, que recebeu um habeas corpus para responder seus muitos processos em liberdade após repetir o bordão de sempre: “sou homem, branco, heterossexual, rico e poderoso e por isso devo ficar solto”. Como disse Victor Hugo ao final de seu maravilhoso Os miseráveis “enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a Terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis”. É sobre isso e muito mais.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *