crítica

A insustentável leveza do ser – Milan Kundera

Talvez esse seja um dos livros que eu comprei pelo título sugestivo e pela capa bonita. Desde que tomei conhecimento de sua existência, tive vontade de lê-lo. A grande questão é que quando isso acontece, criamos unicórnios em relação a uma obra e não expectativas altas. E por isso, ele claramente não correspondeu a todos os meus enormes desejos de que fosse um favorito da vida ou do ano, quem sabe do mês…. Não. Foi uma leitura excelente, de um autor que com certeza vou ler outra vez e reler este livro inesgotável algumas vezes na vida.

A insustentável leveza do ser (Cia das Letras, 2009) é uma obra experimental. Pode-se vê-la como um romance ensaio, de cunho extremamente filosófico e que vai questionar a lei do eterno retorno proposta por Nietzsche. Essa teoria baseia-se na suposição de que tudo na vida é cíclico, que forças e energias convergem no momento adequado para que as coisas aconteçam e sigam o seu curso em forma de repetições constantes, ou seja, vamos sempre fazer as mesmas coisas e voltar sempre ao mesmo ponto ou ao mesmo lugar.

Kundera, para discutir o assunto cria quatro personagens principais, aos quais ele coloca características comuns e muito fáceis de serem identificadas com o nosso dia a dia, e dá a eles uma vida com um enredo simples, mas ao mesmo tempo extremamente complexo, pois, através de um narrador onisciente em terceira pessoa, sabemos o que se passa na cabeça de cada um deles, deixando as coisas triviais muito grandiosas e difíceis de resolver. O próprio escritor nos conta no romance como criou o seu grande protagonista, Tomas:

Esta à janela e olha, do outro lado do pátio, a parede do prédio defronte. Ele nasceu dessa imagem. Como já disse, os personagens não nascem de um corpo materno como os seres vivos, mas de uma situação, de uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta ou sobre a qual nada de essencial ainda foi dito. (…). Os personagens de meu romance são minhas próprias possibilidades, que não foram realizadas. É o que me faz amá-los, todos, e ao mesmo tempo a todos temer. Uns e outros atravessaram uma fronteira que me limitei apenas a contornar. O que me atrai é essa fronteira que eles atravessaram (fronteira além da qual termina o meu eu). É somente do outro lado que começa o mistério que o romance interroga. O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana na armadilha que se tornou o mundo” (KUNDERA, 2009, pág. 237/238)

Para entender o que Kundera quer dizer com isso, é importante salientar que o romance começa durante a Primavera de Praga e se desenvolve nos anos seguintes a invasão da URSS à República Tcheca. A Primavera de Praga foi um movimento liderado pelo então presidente tcheco Alexander Dubeck, que tinha o objetivo de promover a liberdade política e intelectual no país, após décadas de regimes opressores e fechamento das fronteiras em consequência do fim do Império Austro-Húngaro e das guerras mundiais. Em 05 de janeiro de 1968, Dubeck deu início a esse movimento sociocultural, que infelizmente durou apenas oito meses, pois em 21 de agosto do mesmo ano, a Rússia invadiu a República Tcheca novamente, ocupando as suas maiores cidades, interrompendo as transmissões de rádio e TV, prendendo as autoridades locais e iniciando uma “reforma socialista no país”. A invasão só teve fim em 1991.

Neste contexto, conhecemos Tomas, um médico respeitado, com a carreira em ascensão, bastante metódico, divorciado e muito mulherengo. A liberdade para esse personagem é fundamental. Entretanto, ele conhece Tereza, uma moça que trabalha como garçonete em um hotel do interior onde ele se hospedou por puro acaso (introdução da Lei do Eterno Retorno) por quem ele acaba se apaixonando e mudando toda a sua vida. O drama da vida de Tomas começa quando Tereza entra nela. E dessa forma, o autor vai trabalhar o tempo todo a questão do peso e da leveza das relações afetivas que mantemos.

Tereza, ao contrário de Tomas, busca uma família, estabilidade e segurança. Tem diversos problemas de rejeição por parte de sua mãe, conflito este que a impede de ser leve, que a transforma em um fardo a todos à sua volta. O peso das aflições e dos demônios de Tereza a deixam com uma áurea cinzenta e triste, impedindo que a felicidade e a fluidez da vida permaneçam com ela. Para conquistar Tomas, ela pega um exemplar de Anna Kariênina na biblioteca local e essa história vai servir como uma metáfora para a vida dos dois. Se você ainda não leu esse clássico de Tolstói, não leia A insustentável leveza do ser. Tem um grande spoiler de Anna Kariênina já logo nos primeiros capítulos deste livro.

Tereza descobre na fotografia uma vocação ou algo de que gosta de fazer. Sua primeira investida na profissão, vem do seu olhar subjetivo para as moças que estavam desfilando na frente dos tanques soviéticos no dia da invasão. É claro que o povo tcheco não aceitou essa ocupação ilegal da Rússia sem protestar e essa insurreição dos jovens, marcada pelo protagonismo das mulheres foi o que chamou a atenção de Tereza. Suas fotos ficaram belas e bastante carregadas de significado. Porém, é claro que a URSS usou tudo isso a seu favor, causando em Tereza uma frustração enorme e fazendo com que ela desistisse da fotografia.

O casal Tomas e Tereza, após o ingresso das tropas russas em seu país, se mudou para a Suécia, aconselhados pelo chefe do hospital, que conseguiu uma boa colocação profissional para Tomas. Lá, Tereza pode também expor suas fotos e tudo parecia correr bem. No entanto, Tomas continuou mantendo os seus casos extraconjugais e isso, somado ao fato de Tereza receber uma proposta para fotografar alimentos ou plantas em estúdio para ganhar dinheiro, levaram-na a voltar à Praga em um momento de barreiras fechadas, impedindo o seu retorno à Suécia. Acreditando não poder viver sem Tereza, Tomas retorna à Praga, onde por causa de um artigo sobre Édipo Rei ele perde seu cargo de médico e passa a lavar vidraças na capital.

Uma das amantes de Tomas é Sabina, uma artista plástica bastante conceituada, que também deixou Praga no momento da apropriação soviética. Diferente de Tereza, Sabina representa a leveza: ela não quer ter nenhum tipo de relacionamento sério com ninguém e gosta mesmo de sua liberdade e de poder morar onde quiser. Saiu de casa muito jovem após perder os pais e ser passada para trás por seu irmão. Levou como lembrança do pai apenas o seu chapéu coco, um dos poucos objetos que preza na vida. Sabina representa a liberdade, a leveza e mostra uma capacidade de adaptação às situações da vida que é impressionante. Ela não deixa de ter os seus demônios internos, mas sabe domá-los e não permite que isso a limite ou conduza a sua vida.

Após a volta de Tomas para Praga, ela começa a se relacionar com Franz, um homem bastante peculiar: é professor universitário, casado há mais de vinte anos com uma galerista a quem ele não ama e pai de uma jovem comum, sem muitos atrativos e qualidades. Franz mantém esse casamento porque tem uma dívida de gratidão com sua mãe. Ele vê em todas as mulheres a força e a lealdade de sua mãe e essa imagem idílica do feminino que ele cultua o impede de separar-se da mulher que não ama. Em um certo momento, esse “feitiço” se quebra e ele percebe que sua esposa nada tem da imagem maternal que ele acreditava e assim, apaixonado por Sabina, resolve romper o casamento. O que ele não esperava é que Sabina fosse fugir desse compromisso deixando-o sozinho para lidar com essa nova situação.

A sensualidade e o sexo livre estão muito presentes na vida dos personagens de Kundera. Ele explora bastante a questão da religião no sentido da nossa “expulsão do Paraíso” e em como isso reflete nas nossas escolhas e no nosso comportamento sexual. Tomas é o homem branco, hetero, cisgênero e dominador. Há uma cena gráfica dele e Sabina que é bastante chocante no sentido da submissão feminina ao homem, um conceito tabu que vem sendo quebrado ao longo do tempo, mas que neste enredo faz sentido, considerando a época em que se desenvolve a história dos dois. Além disso, o autor está discutindo justamente as dicotomias da vida: peso e leveza; culpa e liberdade; masculino e feminino; amor e ódio; desejo e pecado…

Sabina é uma mulher que não tem problemas em relação à sua sexualidade, ao contrário de Tereza, que tem horror à nudez, que tem medo de se entregar e que por isso e por ingenuidade acaba se colocando em uma situação extremamente desconfortável com um estranho. Essa é outra cena gráfica muito pesada e que nos leva à reflexão do conceito de violência, além de que nos dias atuais, ela ganha um peso ainda maior que na época de seu desenvolvimento. O autor aborda essa violência de forma até naturalizada, sem muitos questionamentos, mas, no monólogo interior da personagem, é possível perceber como esse acontecimento mexeu com ela de forma brutal e a desestruturou ainda mais. Kundera gosta muito de refletir sobre as coisas que não queremos ver, que ignoramos ou que jogamos para debaixo do tapete. Nesta passagem de Tereza sendo violentada, ele faz uma alegoria da nossa vida com um vaso sanitário que é acachapante:

As privadas dos banheiros modernos se erguem do chão como uma flor branca de nenúfar. O arquiteto faz o impossível para que o corpo esqueça sua miséria e para que o homem ignore o que acontece com os dejetos de suas entranhas quando a água da descarga os expulsa gorgolejando. Os canos dos esgotos, ainda que seus tentáculos cheguem até nossos apartamentos, são cuidadosamente escondidos de nossos olhares e nada sabemos acerca dessas invisíveis Venezas de merda sobre as quais estão construídos nossos banheiros, nossos quartos de dormir, nossos salões de festas e nossos parlamentos” (KUNDERA, 2009, pág. 169).

Essas provocações do autor vão preparando o leitor para o seu gran-finale que é uma discussão muito forte sobre o conceito de Kitsch: “o acordo categórico com o ser tem por ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde cada um de nós se comporta como se ela não existisse. Esse ideal estético se chama kitsch (…). É preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Por isso, o kitsch não se interessa pelo insólito; ele apela para as imagens-chaves profundamente ancoradas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor” (KUNDERA, 2009, pág. 266/269).

Esse conceito de kitsch, que Kundera vai explorar bastante nos capítulos finais de sua obra-prima, nos remete a todo e qualquer tipo de idílio e também de estereótipos. Seria mais ou menos como supor que todos os sobreviventes de guerra sofrem de estresse pós-traumático ou que são pessoas superiores por causa de seu sofrimento. Sabe-se que muitas pessoas que enfrentaram as guerras não sofreram abalos mais sérios em suas rotinas, com exceção da carestia de vida e a falta de gêneros alimentícios. Entretanto, isso não faz dessas pessoas seres incríveis e superiores. Por outro lado, todos nós temos um espaço na nossa memória que chamamos carinhosamente de “lugar conforto”. Esse conceito, no mundo pós-moderno, é explorado ao máximo pela sociedade de consumo e está em todos os lugares: é como uma espécie de indulgência nos momentos difíceis ou um escape da vida cotidiana.

Essas reflexões de Kundera me lembraram muito alguns episódios da série This is us. No episódio 16 da quarta temporada, o personagem Randall está em uma sessão de terapia, onde a psicóloga pede-lhe que faça um exercício de como seria sua vida se o seu pai não tivesse morrido. Neste caso, a proposta dela é que ele imagine o que faria diferente no mundo ideal, segundo a sua percepção. É o que ele faz: em um primeiro momento, sua vida seria perfeita, sem os problemas, com soluções simples e fáceis, mas, ele também ficaria com as coisas boas de sua vida real. Sabemos que isso é uma utopia e que se as coisas tivessem acontecido de outro modo, as infelicidades e os problemas continuariam existindo da mesma forma. É aí que Kundera questiona o conceito de leveza e de peso. Afinal, o que é o peso da vida? A vida perfeita, sem o peso é sustentável?

Um exemplo que autor traz e que conversa diretamente com qualquer pessoa, que more em qualquer cidade do mundo nos mostra um pouco do peso que carregamos no dia a dia e que parece banal, mas nada mais é que uma grande metáfora da vida:

Estava chuviscando. As pessoas se apressavam, levantando sobre a cabeça os guarda-chuvas abertos, e, de repente, formava-se um tumulto nas calçadas. As armações dos guarda-chuvas se entrechocavam. Os homens eram gentis e, passando perto de Tereza, levantavam o guarda-chuva bem alto para lhe dar espaço. Mas as mulheres não se afastavam nem um milímetro. Olhavam em frente, o rosto duro, cada uma esperando que a outra se confessasse mais fraca e capitulasse. O encontro dos guarda-chuvas era uma prova de força. No começo, Tereza se afastava, mas quando compreendeu que sua gentileza jamais era retribuída, empunhou seu guarda-chuva com mais força, como as outras. Muitas vezes, seu guarda-chuva esbarrava violentamente num outro que vinha em sentido contrário, mas nunca nenhuma mulher pedia desculpas. Em geral, ninguém abria a boca; duas ou três vezes, ela ouviu: ‘Puta!’ ou ‘Merda!’” (KUNDERA, 2009, pág. 147)

Reflexões sobre as dicotomias da vida, relacionamentos, perdas e ganhos são constantes nesse livro. A vida dos personagens dá muitas reviravoltas, mas, é no final que todos eles viverão a lei do eterno retorno de Nietzsche: passam a vida carregando o peso de suas metas, objetivos, escolhas, não escolhas, trabalho, relacionamento, filhos até que enfim, percebem que este era o peso: a vida que anda em círculos. Nas palavras de Humberto Gessinger, “os dias parecem séculos, quando a gente anda em círculos, seguindo ideais ridículos de querer lutar e poder”, que neste caso, sintetizam de forma simples as digressões de Kundera. Você pode até não concordar com tudo o que ele diz, mas que este livro vai tirar você da sua zona de conforto e te obrigar a olhar para o mundo de outra maneira, ele vai.

Em relação à edição especial da Companhia das Letras, eu esperava mais. A capa é linda, o projeto gráfico também, a diagramação é ótima, mas, senti falta da fortuna crítica que costuma acompanhar esse tipo de edição. Não que eu precise de textos de apoio para dialogar sobre essa obra, mas acho interessante ver outros pontos de vista que eu deixei passar. Obviamente que A insustentável leveza do ser é um livro para muitas releituras, afinal, trata-se de um clássico inesgotável, monumental, atemporal e universal. Certamente que nas próximas leituras, farei novas digressões e refletirei com mais maturidade tanto literária, quanto de vida sobre esse romance/ ensaio. Recomendo a leitura a todos. É um livro filosófico, experimental, porém, extremamente fluido e fácil de ler e compreender.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *