crítica

A leste do Éden – John Steinbeck

Eu não poderia começar essa resenha de outra forma senão apresentando a vocês o meu personagem literário favorito do momento que é Samuel Hamilton. Descendente de imigrantes irlandeses, que chegaram aos Estados Unidos com a intenção de conquistar o sonho americano, porém, de forma mais contida e menos ambiciosa. Herdou dos pais uma terra improdutiva na cidade de Salinas e aprendeu a amá-la e a trata-la com respeito, obedecendo o seu tempo e as suas possibilidades. Tinha muitas ideias, era um homem inventivo, entretanto, nunca teve vocação para ganhar dinheiro e assim, via as suas projeções serem desenvolvidas e realizadas por outras pessoas que faziam fortuna com elas. Nem por isso, Samuel Hamilton era um homem revoltado. Sabia o que podia esperar dos outros, evitando assim as frustrações da vida. Era calmo e paciente; educou cinco filhos, fruto de seu casamento com a Sra. Hamilton, uma mulher religiosa, trabalhadora e muito honesta. Assim seguiu sua vida, ajudando a quem podia e aconselhando o seu vizinho Adam, de quem podemos dizer, trata-se esse enredo.

Adam Trask viveu sua infância e juventude em Connecticut, junto ao pai, à madrasta e ao irmão Charles. Sua mãe faleceu após o parto e assim o protagonista não chegou a conhece-la. O pai tinha por ele uma predileção estranha, provocando no irmão um ciúme doentio, que o levava a agredir Adam sem motivos, provocando-lhe dor e frustração. Quando alcançou a maioridade, praticamente obrigado pelo pai, Adam partiu para o exército, percebendo logo que não tinha vocação para a carreira militar. Porém, optou por se realistar a fim de fugir das opressões de seu lar. Um tempo depois, sem um destino certo, voltou à fazenda do pai, sendo recebido pelo irmão Charles e informado da morte do seu genitor. Os irmãos compartilharam a casa e a herança por um tempo até que um dia apareceu por lá uma mulher misteriosa que se tornou a esposa de Adam.

Cathy veio do interior dos Estados Unidos fugindo de seus crimes que foram vários. Desde criança, via apenas a maldade nas pessoas. Acreditava que todas elas eram muito ruins, que sempre desejavam algo em troca quando lhe ofereciam afeto ou um elogio. Tinha um lar estável, seu pai era um empresário de sucesso e sua mãe uma boa mulher. A comunidade em que cresceu era gentil e ela sempre foi querida por lá. Dona de uma beleza ímpar, inteligente e muito sagaz, utilizou todos os seus dons para a maldade e a crueldade. Abandonou a cidade após uma tragédia e dedicou-se à prostituição encontrando no caminho pessoas que tentaram coloca-la em seu lugar e mostrar-lhe que a vida não é maniqueísta, mas sim cheia de vicissitudes e que cabe a nós enfrentar as adversidades de forma justa e honesta, mantendo dentro de nós a esperança e a serenidade. Após ser espancada por um ex-cliente, ela pede ajuda na fazenda de Adam e Charles e assim, conquista o irmão mais velho, que se casa com ela e os dois se mudam para Salinas a fim de conquistar o sonho americano.

Chegando na Califórnia, Adam comprou uma propriedade vizinha à de Samuel, porém, ao contrário da fazenda dos Hamilton, as terras de Adam eram produtivas e tinham de tudo para gerar uma boa renda para ele e a família que estava começando. Totalmente cego de amor por Cathy, Adam decide criar para ela um “Jardim do Éden”, com árvores frutíferas, muitas flores, grama verde, uma casa de princesa, poços para ter água em abundância e tudo o mais que o dinheiro pode comprar. Contratou para trabalhar com eles, meu segundo personagem favorito, que é Lee. Filho de trabalhadores chineses que foram enviados aos Estados Unidos no final do século XIX para aplanar as estradas a fim de construir as ferrovias. Lee não tinha parentes sanguíneos vivos, era um homem solitário, que dava à sociedade aquilo que ela esperava dele, porém, sempre foi um grande sábio, observador e tinha muito amor para dar àqueles que quisessem recebe-lo.

Cathy estava gravida de gêmeos e não desejava esses filhos. Assim que nasceram, ela os abandonou junto à Adam e fugiu, indo trabalhar em um prostíbulo nos arredores de Salinas. Os gêmeos Aaron e Caleb ficaram aos cuidados de Lee, já que o pai não conseguia reagir ao abandono da esposa e à sua indiferença em relação aos filhos. O tempo passa, os personagens vão envelhecendo, os filhos de Samuel Hamilton seguem o seu caminho, cada um à sua forma e os gêmeos ganham o protagonismo do romance após a terceira parte do livro, repetindo a dinâmica que acontecia entre Adam e Charles: o pai tem um favoritismo por Aaron e Caleb luta contra os seus demônios para não sucumbir à maldade e se tornar uma pessoa ruim por ser rejeitado.

É notória a referência de Steinbeck à Bíblia, com a história de Caim e Abel e também com o Gênesis, onde é criado o Jardim do Éden. No entanto, essas referências são muito bem trabalhadas pelo autor, levando o leitor à reflexão sobre a dualidade do ser humano, questionando o livre arbítrio e mostrando que sempre temos uma escolha. Atualmente é antiético dizer que uma pessoa é má. Essa característica do caráter de um indivíduo é questionável pela psicologia, mostrando que existem distúrbios de comportamento, mas o ser humano possui tanto a capacidade de praticar o bem, quanto o mal, podendo assim escolher como vai conduzir sua vida. Obviamente, Steinbeck não tinha acesso a essa linha de pensamento que é totalmente atual. Ainda assim, ele já coloca essa questão do destino e do livre arbítrio em perspectiva, apontando soluções e principalmente reflexões que precisam ser feitas para evitarmos desavenças, crimes, vinganças totalmente infundadas.

Em um dos diálogos mais profundos e potentes da Literatura, Samuel diz a Lee e a Adam:

Se uma história não é sobre um ouvinte, ele não vai querer escutar. E aqui eu estabeleço uma regra: uma grande e duradoura história deve falar de todos, ou não será duradoura. O estranho e remoto não é interessante, só o profundamente pessoal e familiar” (STEINBACK, 1952)

Essa conversa acontece quando Samuel descobre que os gêmeos ainda não possuem um nome, mesmo depois de terem completado um ano de vida. Ele vai até a fazenda de Adam a fim de tirá-lo do torpor em que vive para apresenta-lo aos filhos. É uma passagem extremamente tocante porque ele vai se aprofundar nos dilemas humanos universais e nos mostrar porque buscamos em nossas leituras e na TV imagens semelhantes a nós mesmos, que dialoguem conosco de alguma forma. E assim ele define a história de Caim e Abel como algo que diz respeito a toda a humanidade, justificando a sua recorrência na literatura e nas histórias que escutamos ao longo da vida:

Acho esta a história mais conhecida do mundo porque é a história de todos. Acho que é o símbolo da alma humana. O maior terror que uma criança pode sofrer é não ser amada, a rejeição é o inferno que ela teme. Acho que todo mundo, uns mais outros menos, já sentiu a rejeição na pele. E com a rejeição vem a raiva e com a raiva alguma espécie de crime como vingança pela rejeição, e com o crime a culpa. Eis aí a história da humanidade. Acho que, se a rejeição pudesse ser amputada, o ser humano não seria o que é. Talvez houvesse menos pessoas loucas. Tenho certeza de que não haveriam tantas prisões. Está tudo aí, o início e o começo. Uma criança, tendo recusado o amor pelo qual anseia, chuta o gato e esconde sua culpa secreta; e outra rouba para que o dinheiro a torne amada; e uma terceira conquista o mundo – e sempre a culpa, a vingança, e mais culpa. O ser humano é o único animal que carrega a culpa. Acho que essa história antiga e terrível é importante porque ela é um mapa da alma – da alma secreta, rejeitada e culpada” (STEINBACK, 1952)

Através de seus personagens icônicos e de seu comportamento cíclico, Steinbeck trata sobre temas universais como a culpa, a ambição, mas principalmente essa rejeição que Samuel descreve como a história de todos nós. O fato das histórias se repetirem é muito simbólico porque esse movimento cíclico nos mostra que não conseguimos evoluir a ponto de não repetirmos os erros dos nossos ancestrais. Em contraponto a esse comportamento tão ocidental, Steinbeck cria Lee, um chinês que é estereotipado pela população norte-americana, mas que ninguém naquela comunidade de Salinas se interessa em conhecer melhor e saber quem é ele. Lee cria os filhos de Adam e por sua causa, Caleb, que sempre foi rejeitado tanto pelo pai quanto pela sociedade, se salva de ser uma pessoa destruída pela culpa. Lee está sempre à frente das ações de Caleb pelo fato de o conhecer muito bem e assim, sabe dar-lhe conselhos preciosos que o impedem de seguir pelo caminho errado.

Praticamente todos os nomes dos personagens de A leste do Éden são referências bíblicas. Caleb e Josué (primeira opção de nome para Aaron) foram os únicos que saíram do Egito e chegaram à terra prometida. Já Aaron não conseguiu chegar, mas foi o nome bíblico escolhido por Adam para o seu filho. Abra, que foi namorada de Aaron por grande parte do romance foi aquela que o pai pediu um filho e lhe deram Abra, também uma referência ao antigo testamento e que já diz muito sobre esse personagem: ele não desejava ter uma filha, mas sim um filho. Dessa forma, não conseguia ver nela a garota boa e cheia de qualidades que era. Mais uma vez Lee entra em ação, fazendo as vezes de pai dessa moça, dando a ela o conforto e os conselhos que deveriam vir do seu verdadeiro pai. A figura de Lee na obra é muito significativa porque ele representa toda uma geração de imigrantes que nasceram na América porque seus pais estavam ali prestando algum tipo de trabalho escravo. Esses imigrantes morriam muito cedo por causa das condições precárias de vida que tinham. Eles nunca significaram nada para os WASPs, sempre foram apenas uma mão-de-obra barata.

Lee buscava apoio e sabedoria em sua comunidade que vivia nos Estados Unidos. Dentro do Centro Cultural Chinês, eles estudavam os livros dos grandes mestres e procuravam manter a sua cultura, apoiando toda a população de origem chinesa que buscasse auxílio ali. Lee tentou viver na China, mas não conseguiu se adaptar lá. Da mesma forma como era visto nos Estados Unidos como um imigrante, um estrangeiro, na China, as pessoas também o viam da mesma forma. Para se proteger e evitar explicações desconfortáveis, Lee adotou um personagem de fala enviesada, usando o rabicho que simbolizava a escravidão chinesa, se vestia à caráter e procurava ser discreto e silencioso, oferecendo às pessoas aquilo que elas esperavam dele. Há várias passagens no romance onde Lee se expressa com um inglês dentro da norma culta, sem sotaque e as pessoas demonstram não o compreender. Imediatamente, ele repete a frase com o sotaque enviesado e aí sim, ele é entendido pelos norte-americanos. Esse não-lugar vivenciado por Lee em uma obra que foi escrita na década de 1950 ainda é muito explorado pela literatura contemporânea. Estrangeiros de várias nacionalidades narram atualmente o mesmo desconforto sentido por Lee no início do século XX. Ou seja, Steinbeck acertou em cheio narrando histórias cíclicas, pois estamos sempre confirmando sua posição de que não somos capazes de aprender com os erros do passado e continuamos agindo da mesma forma.

Outro tema bastante explorado por Steinbeck em seu romance é a ociosidade aliada à riqueza. Em várias passagens do romance, ele faz referências às pessoas que ganham muito dinheiro e por isso se acomodam, não reagem diante da vida. Ele chega a dizer que algumas pessoas, se não tivessem dinheiro herdado, morreriam de fome por não saberem o que fazer da vida. Adam, apesar de rico, sempre foi muito honesto. Mas ele carregava uma inércia diante da vida, uma falta de perspectivas que lhe causavam muitos problemas e dissabores. Adam não tinha um propósito de vida até conhecer Cathy. Quando ela o deixou, tudo ao seu redor perdeu o sentido e ele só foi encontrar algum objetivo muito tempo depois. Dessa forma, suas terras se tornaram improdutivas por falta de manejo adequado, algo que ainda hoje nos cobra um preço alto: tanto o excesso de exploração, quanto a falta de uso do solo provocaram catástrofes climáticas que vêm se agravando com o tempo. Essa é mais uma referência bíblica à parábola dos talentos, onde cada um recebe as sementes e escolhe o que fazer com elas.

Essas discussões são feitas através dos personagens Samuel, Adam e principalmente dos filhos de Samuel. Todos eles conseguem se estabelecer economicamente, exceto Tom, que herdou a inventividade do pai. Willian Hamilton se tornou um grande negociante, porém, ele não tinha escrúpulos em como ganharia dinheiro. Durante a Primeira Guerra Mundial, ele explorou os pequenos produtores a fim de exportar os seus grãos por uma fortuna, pagando-lhes um valor ínfimo da renda gerada. Esse é um comportamento bastante comum do ser humano: ganhar dinheiro às custas da miséria e das calamidades alheias. Em contraponto a Willian, temos Tom e Una, a filha mais velha de Samuel. Eles não se deixavam seduzir pelo dinheiro e seguiam as tradições do pai de viver na simplicidade, prezando o conhecimento e a filosofia.

As idiossincrasias da cidade de Salinas também são apresentadas ao leitor de forma bastante crítica. Pessoas acima de qualquer suspeita se encontravam nas mãos de Cathy por realizarem com ela suas fantasias mais desonrosas, enquanto suas esposas zelavam pela estabilidade do lar, frequentavam a Igreja e ajudavam a comunidade. Toda a população sabia quem era Cathy e conhecia seus filhos. Mesmo aqueles que se solidarizavam com Adam ainda faziam mexericos sobre eles e conjecturavam sobre a reação dos gêmeos ao saberem a verdade sobre a mãe. Havia uma regra de conduta implícita, uma segregação velada e punições severas para quem não conseguia seguir as regras do sonho americano: a exclusão. Enquanto isso, os cidadãos americanos viviam seu cotidiano, criando a publicidade, aprendendo com o marketing como vender mais e melhor, a exploração imobiliária seguia de vento em poupa, grandes negócios eram feitos todos os dias, mas as características de uma cidade pequena permaneciam firmes e fortes.

Adam em um determinado momento foi convocado para recrutar os jovens que se alistariam no exército e que seriam enviados para o front de batalhas. Para ele foi uma experiência terrível, e Steinbeck nos brinda com reflexões e passagens muito importantes para pensarmos sobre essa ação criminosa de enviar crianças para o front. Com o seu senso de justiça muito arraigado em si, ele tinha medo de um dia ter de recrutar os próprios filhos e sempre dizia que quando esse dia chegasse, ele se demitiria do cargo, pois não beneficiaria qualquer um deles, sabendo que todos os dias encaminhava os filhos de alguém para a morte e que os seus próprios filhos se encaixavam dentro dos critérios exigidos para tanto. Esses dilemas éticos e morais totalmente humanos fazem de A leste do Éden um livro incrível e muito atual, mesmo tendo 70 anos. Em uma de suas falas, Adam diz:

Não há dignidade em morrer na batalha. Geralmente é uma massa salpicada de carne e fluido humano e o resultado é sujo, mas há uma dignidade grande e quase doce no sofrimento desamparado e sem esperança que se abate sobre uma família com a chegada de um telegrama” (STEINBECK, 1952)

É de conhecimento público a forma como os Estados Unidos lidam com essa questão dos veteranos de guerra. Os que voltam são condecorados e tratados como heróis, mesmo se não tiverem feito nada demais nos fronts de batalhas. Existem memoriais para os heróis abatidos em combate, como uma maneira de acalentar os familiares enlutados pela perda de seus filhos, cônjuges, irmãos e pais. Steinbeck relembra a guerra contra o México e faz paralelos entre a postura dos alemães na Primeira Guerra e a inabilidade dos mexicanos na guerra anterior, que abarcava apenas Estados Unidos e México. Provando que a vida é cíclica e que as coisas se repetem, Lee diz:

Tudo é somente por um dia, tanto aquilo que lembra, como aquilo que é lembrado. Observem constantemente todas as coisas que acontecem por meio da mudança e acostume-se a considerar que no universo a natureza aprecia mudar as coisas existentes e fazer coisas novas parecidas com elas. Pois tudo aquilo que existe é de certo modo a semente daquilo que existirá” (STEINBECK, 1952)

A leste do Éden é um livro para pensar. Ele carrega em si um universo próprio, que é um microcosmo da condição humana universal. Ele traz as nossas misérias, as nossas frustrações, a nossa esperança em um mundo melhor, assim como apresenta também a sabedoria, a paciência e o espírito livre que habita em cada um de nós. Steinbeck foi um exímio escritor, que nos deixou uma obra muito vasta e cheia de questões para reflexões, denúncias dos crimes que cometemos e nos chacoalha para acordarmos a tempo de vivermos uma vida mais plena, com mais significado e com um olhar atento para o próximo.

P.S.: No momento, não temos edição física disponível em Língua Portuguesa desse clássico. Fiz a leitura através do original (Penguim Estados Unidos) e a tradução da Editora Record, disponível no Kindle Unlimited.

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