crítica

A lista de Schindler: a verdadeira história – Mietek Pemper

A história da lista de Schindler ficou bastante conhecida após o ano de 1993, quando o aclamado diretor de cinema Steven Spielberg dirigiu e produziu um filme homônimo, que contava de forma romanceada a ação salvadora de judeus, liderada pelo empresário Oskar Schindler, com o auxílio de algumas outras pessoas que participaram ativamente dessa empreitada tão perigosa, porém, totalmente recompensadora. É importante dizer que o filme de Spielberg limita bastante os acontecimentos, resumindo a história em partes mais importantes e principalmente mais impactantes a fim de prender o telespectador e conquistar a sua empatia.

Dessa forma, Mietek Pemper, um dos judeus salvos por Schindler, mas que também o ajudou bastante em sua ação salvadora, foi convidado a escrever as suas memórias e contar essa história para as pessoas. Ele construiu a sua narrativa com foco na antítese entre o general da SS, Amon Göth, líder do campo de concentração de Cracóvia-Plaszów, que foi também um grande genocida, um assassino frio e cruel, e Oskar Schindler, que em situações adversas se mostrou um salvador, arriscando a própria vida para salvar pessoas. O objetivo do autor, além de contar as suas memórias do holocausto é também nos atentar para o fato de que em qualquer tempo, temos escolha e que delas dependerão a vida e o futuro de outras pessoas. É também um relato impactante, que não poupa o leitor e que mostra o quão vil um ser humano pode ser.

Mietek Pemper nasceu em 1920, na cidade de Cracóvia, membro de uma família tradicional e por causa de sua avó paterna, que era de Breslau, sempre falou polonês e alemão fluentemente, desde a infância. Esse fator foi crucial para a sua sobrevivência nos campos de concentração, assim como a sua erudição. Por ser um menino avesso aos esportes, compensava essa inapetência para as atividades físicas com leituras e estudos mais aprofundados nas suas áreas de interesse: história, política e literatura. Já na escola, Pemper percebia o incômodo que os judeus causavam nos colegas poloneses quando se destacavam mais que eles em qualquer área, comprovando que o antissemitismo sempre existiu e foi apenas estimulado pelo partido nazista, originando o que conhecemos hoje como o holocausto.

O seu calvário por ser judeu, começou na Universidade Jaguelônica, em 1938, quando o reitor determinou que os judeus deveriam se sentar em carteiras determinadas, como uma forma de segregação.

Considerávamos a ordem uma discriminação inócua e uma tentativa de introduzir na Polônia as ‘leis de Nuremberg’, que desde 1935 legalizavam a exclusão de judeus na Alemanha. (…). estudantes de outras instituições procuravam a Universidade Jaguelônica porque não queriam perder a farra de ver judeus sendo humilhados. (…). Em virtude dessa ocorrência, desenvolveu-se em mim uma relação algo distanciada para com os poloneses. Percebi quão quebradiça, quão fina pode ser a camada de verniz da convivência. Pela primeira vez tomei consciência de que, sendo judeu, eu não era realmente querido na minha terra natal” (PEMPER, 2002, pág. 20/ 21)

Nesta época, as coisas já estavam ficando esquisitas e Pemper se lembrava sempre de uma frase que leu em uma igreja que costumava frequentar com seus pais na infância, que dizia “vive em vão aquele que não ajuda a ninguém” e de outra que leu no prédio da administração municipal de Cracóvia: “aos homens que presidem não é permitido negligenciar a bravura”. Essas frases serão lembradas por ele ao longo da prosa, enquanto observa e analisa tanto as atitudes de Amon Göth, quanto as de Oskar Schindler, os grandes protagonistas desse relato memorialístico.

Neste mesmo ano, Hitler ordenou que a cidade de Varsóvia fosse devastada, já que era considerada como um ninho de resistência e um símbolo de polonidade. Os judeus que possuíam ascendência alemã conseguiram sair da cidade e buscar auxílio na Alemanha, enquanto os outros, poloneses, ficaram na cidade e buscaram uma forma de se salvar da barbárie.

Aproximadamente 18 mil pessoas, entre elas estudantes secundaristas, foram embarcadas de modo forçado para a fronteira polonesa a oeste da Posnânia. No entanto, a deportação falhou em alguns casos e aproximadamente mil judeus retornaram para suas localidades de origem na Alemanha” (PEMPER, 2005, pág. 25)

Foi criado um grupo de resistência, que prestava auxílio aos judeus deportados da Alemanha. Muitos deles não falavam uma palavra em polonês e como Pemper era bilíngue, conseguia ajuda-los com o idioma. Um tempo depois, ainda em 1939, a Polônia foi invadida pelos alemães e a Segunda Guerra Mundial teve início. Os judeus foram expulsos de suas casas, perderam seus postos de trabalho, posteriormente foram evacuados para um gueto, depois tiveram de dividir o espaço minúsculo com outras famílias até que enfim, foram enviadas para os campos de concentração.

O ódio aos judeus era tão grande que em 1940, o governador geral Hanz Frank anunciou que:

Os judeus precisam ser expulsos da cidade, pois é absolutamente insuportável uma cidade que recebeu a alta honra do Führer de se tornar a sede de um importante órgão do Reich haja milhares e milhares de judeus vagando e possuindo apartamentos” (PEMPER, 2005, pág. 36)

Nesta mesma ocasião, quando os judeus de Cracóvia foram encaminhados para o gueto, o avô de Pemper se salvou por pouco. Os velhos e doentes, incapazes de se locomover, poderiam permanecer na cidade. Com base nessa decisão, Arthur Gabriel Pemper de 85 anos pode morrer em sua própria cama no final de 1941. Se tivesse um ano a mais, teria sido um dos primeiros deportados para Belzec direto para a morte: “E era assim que uma vantagem podia se transformar em desvantagem e vice-versa” (PEMPER, 2005, pág. 45). A partir do ano de 1941, os campos de concentração passaram a ser o destino de todos os judeus dos países ocupados. Havia uma seleção de pessoas, de forma arbitrária, que determinava as condições físicas e habilidades de trabalho deles, condenando à morte qualquer um que fosse julgado incapaz de contribuir para o Reich.

Pemper iniciou assim uma luta para empregar a mãe, o pai e o irmão mais novo, provando a sua utilidade, antes que fossem mortos. O que lhe permitiu fazer esses ajustes foi a sua rede de contatos por prestar serviços de datilografia, tradução e interpretação, onde conheceu as pessoas certas, às quais poderia pedir “favores”, enquanto ainda era possível ajudar uns aos outros. Infelizmente, algumas pessoas que o ajudaram muito nessa empreitada de empregar os seus familiares não sobreviveram ao genocídio, mas sua memória ficou para que sirva como exemplo aos outros: alguém morreu tentando ajudar outrem ou se recusando a cumprir ordens de execução de inocentes.

Ao chegar no campo de concentração de Cracóvia-Plaszów, Pemper se candidatou para ser estenógrafo pessoal de Göth. Muitas pessoas atualmente o questionam por que fez isso. Mas a intenção era continuar vivo, manter o maior número de judeus vivos e observar o que acontecia à sua volta, podendo assim estar preparado para os próximos desdobramentos. Foi uma estratégia arriscada, mas qualquer coisa nesse momento, significava correr um risco enorme. Por isso disse anteriormente que a erudição e a fluência em dois idiomas salvaram a vida de Pemper: sem esses atributos, ele teria morrido antes mesmo de conhecer Schindler e poder salvar sua família e tantas outras pessoas.

Convivendo com Göth, Pemper pode perceber como ele era um homem ruim ao extremo. Era comum que ao caminhar de sua casa até o escritório do campo de concentração, Göth atirasse em algumas pessoas pelo simples prazer de mata-las. Outras vezes, soltava seus cachorros treinados para matar em cima de famílias inteiras para serem dilaceradas por eles. Göth assistia a tudo com extrema frieza e dizia: alguns judeus a menos no mundo. Diante de tanto sadismo, era realmente perturbador trabalhar junto a Göth. Ele não tolerava erros, se achasse que estava sob ameaça por alguém que tinha informações relevantes sobre ele ou por que fez algo estúpido, executava o funcionário e toda a sua família. Assim, os empregados próximos ao general viviam em constante terror psicológico, com medo não apenas de errar, mas de cometer qualquer deslize, decretando assim a morte de toda a sua família.

A vida no campo de concentração, além de extenuante, degradante e absurdamente infeliz era também perversa. Muitas vezes, quando alguém conseguia ajudar outra pessoa, não podia nem mesmo agradecer ou comentar sobre o que fez, pedir notícias dos outros por que alguém da SS poderia ouvir e fuzilar os dois, além de claro, suas famílias também. Todos deveriam ter excessos de cuidado com tudo o que faziam e diziam dentro daquele espaço de terror, se queriam permanecer vivos. Mas, você leitor deve estar se perguntando: onde e quando entra o grande protagonista dessa história, Oskar Schindler? Bem, Schindler foi um encarregado de uma fábrica de peças esmaltadas próxima ao campo de Plaszów e dessa forma, contratava judeus desse campo para trabalhar com ele na produção das peças. Um tempo depois, ele comprou essa empresa e passou a ter mais influência dentro da SS para escolher seus funcionários e até mesmo falar com mais abertura com essas pessoas.

Ao perceber o que estava acontecendo em Auschwitz, Schindler decide fazer alguma coisa para salvar o máximo de pessoas possível da morte. Começa contratando mais funcionários do que precisa e os trata bem, não explora sua mão de obra e nem os agride. Também fornece comida de forma normal, sem o tradicional racionamento. Quando descobriu que havia a praça de chamada e que muitos morriam nesse lugar, não apenas de frio, fraqueza ou fome, mas também arbitrariamente pelo prazer de Göth, ele solicitou ao general que os seus funcionários dormissem no local de trabalho a fim de aumentar a produtividade da fábrica. Conseguiu através de argumentação que esse favor lhe fosse concedido.

Assim como Göth, Oskar Schindler também nasceu em 1908. Ao contrário de Göth, Schindler nunca foi briguento ou agressivo. Seu forte carisma lhe abria muitas portas. Seu aniversário, em 28 de abril, foi festejado em Brünnlitz em 1945. Schindler era originário de Zwittau, na região sudeta que desde o fim da Primeira Guerra Mundial pertencia à Tchecoslováquia. (…). Schindler falava um alemão notoriamente bonito e suas cartas preservadas confirmam a bondade e simpatia que lhe eram próprias” (PEMPER, 2010, pág. 171)

Pemper deixa claro o tempo todo que Oskar Schindler nunca foi um homem santo. Ele tinha defeitos como todos nós e sua mudança foi gradativa: de homem de negócios, ele passou a um salvador de vidas, representando para “os seus judeus” uma espécie de figura paterna. Uma característica impressionante de Schindler e que foi crucial para o seu plano dar certo, foi a prudência, aliada à uma força emocional, que não lhe deixavam agir de forma irrefletida, sempre ponderando bem suas ações, principalmente nos últimos meses da guerra, para que tudo desse certo. Sua companheira, Emilie Schindler, também foi uma figura central em toda a ação salvadora. Reconhecida por sua bondade e força de caráter, Emilie ajudou o marido e participou de forma ativa na recuperação de vidas e no salvamento de judeus.

Pemper afirma que no campo, o estilo de vida opulento de Schindler nunca foi um segredo e que ele mesmo tinha consciência de sua humanidade: “Estou longe de ser um santo. Como homem desmedido, tenho muito mais defeitos do que a grande média daqueles que passam virtuosamente pela vida” (SCHINDLER, 2010, pág. 176). Na verdade, a grande realização desse homem foi investir toda a sua fortuna em uma ação que poderia falhar, mas com a intenção nobre de salvar vidas. No final, foram salvos por Schindler um milhão e cem mil pessoas.

Infelizmente, depois da guerra, Schindler nunca mais conseguiu se reerguer. Também nunca recebeu em vida o reconhecimento público que merecia. Em Israel, teve o seu valor, plantou uma árvore no Yad Vashen Memorial e foi venerado como “o justo entre as nações”. Em 1974, faleceu sozinho e doente. Já Emilie Schindler, faleceu em 2021 e pessoas do mundo inteiro manifestaram os seus pêsames. Mesmo acontecendo tudo o que aconteceu durante o holocausto, as pessoas ainda se prendem a detalhes estúpidos sobre as coisas. Pemper afirma que muitas vezes, quando vai ministrar suas palestras pelo mundo, as pessoas lhe perguntam sobre os casos extraconjugais de Schindler. Poxa vida, estamos falando sobre uma pessoa que se arriscou e salvou mais de um milhão de pessoas. Mas, sua infidelidade conjugal, algo que diz respeito apenas a ele e sua esposa, fala mais alto que a ação salvadora. Outras perguntas recorrentes são se Pemper viu Hitler alguma vez ou por que ele aceitou trabalhar junto com um genocida. Creio que ainda precisamos crescer muito como pessoas para pararmos de questionar imbecilidades diante de tantas coisas grandes que aconteceram no mundo. Se alguém tem o privilégio de conversar com um sobrevivente do holocausto, esse tipo de pergunta nem deveria ser considerada.

Göth foi preso durante as suas férias em Viena, já no final de 1944. No tribunal de Nuremberg, ele foi condenado à morte. Pemper depôs contra Göth e ajudou a provar que o general não apenas obedecia às ordens de seus superiores como afirmara sua defesa. No filme de Spielberg, Pemper e Izak Stern foram fundidos em um único personagem, que representou todos os muitos datilógrafos que ajudaram a compor a famosa Lista de Schindler. De acordo com o autor, ela foi modificada por diversas vezes, principalmente por Marcel Goldberg, um homem que colocava nomes na lista por dinheiro e que posteriormente teve muitos problemas por sua conduta ambivalente. Pemper esclarece que algumas ações do filme não correspondem com a realidade. Essas discrepâncias são justificadas pelo diretor como uma forma de provocar a empatia nos telespectadores. Não é possível reproduzir todos os fatos em um longa-metragem.

O filme mostra Oskar Schindler se apresentando na casa de Amon Göth com uma mala cheia de dinheiro e comprando a liberdade de ‘sua gente’. Isso nunca aconteceu – nunca poderia ter acontecido. É provável que também não tenha havido um jogo de pôquer em torno de Helene Hirsch” (PEMPER, 2010, pág. 194)

O que facilitou muito a construção da Lista de Schindler foi na verdade, a burocracia e não o dinheiro. Outro ponto que Pemper elucida em suas memórias é a questão da violência sexual dos alemães contra as mulheres judias no campo de Cracóvia-Plaslow:

Algum especialista em marketing deve ter sugerido a Spielberg a ‘cena do porão’ com Amon Göth e Helene Hirsch. Durante os trabalhos de filmagem, tentei convencê-lo para improbabilidade histórica dessa cena. Göth tinha internalizado completamente as leis nazistas sobre raças. O tabu da ‘desonra da raça’ – a miscigenação – resguardou amplamente nossas mulheres de excessos sexuais por parte da SS e outras equipes de vigilância” (PEMPER, 2010, pág. 259)

O ódio dos alemães da SS pelos judeus era tão grande, que mesmo depois dos julgamentos, das condenações e de todo o esclarecimento dos fatos, Pemper não viu remorso naquelas pessoas:

Nos processos em que participei como testemunha ou intérprete, nunca ouvi de nenhum dos réus uma palavra de lástima ou alguma demonstração de sincero arrependimento. Ninguém declarou: ‘Agora eu vejo como agi erradamente. Eu nunca deveria ter obedecido às ordens injustas’. Nenhum réu utilizou o seu direito à última palavra para declarar, por exemplo: ‘Eu estava sob influência de uma falsa propaganda. Não sabia o que sei hoje. Eu mesmo fico admirado como pude agir assim. Lamento isso’. Nada disso aconteceu. Nenhuma confissão de luto pela morte de muitas vítimas inocentes, nenhuma desculpa, nenhuma renúncia, nenhum remorso” (PEMPER, 2010, pág. 254)

É óbvio que Mietek Pemper teve depressão depois da guerra. Lutou fortemente contra as sequelas psicológicas do trauma gigantesco que viveu. Viu seu pai enfraquecer até a morte depois de todas as atrocidades vivenciadas no campo de concentração. Sua mãe viveu mais um pouco e faleceu um tempo depois. Como os pais estavam bastante debilitados e a cidade de Cracóvia tinha sido destruída, Pemper teve de tirar forças sabe-se lá de onde para voltar a estudar, trabalhar e sustentar sua família até a morte. Depois de tudo isso, mudou-se para a Alemanha e tentou reconstruir sua vida. Pemper diz que as palestras que ministra e o livro de memórias são úteis para que possamos tentar entender como as pessoas chegaram ao ponto de se deixarem enredar por falácias mortais como a propaganda do partido nazista. E esse é justamente o motivo pelo qual eu leio tantos livros sobre o tema: é preciso saber o que fazer para que essas coisas não se repitam, estudar e procurar compreender como pode haver no mesmo lugar e nas mesmas circunstâncias Oskar Schindler e Amon Göth e por que agiram de forma tão diversa. Esse é um dos legados do holocausto que não deve ser esquecido.

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