Você já parou para refletir sobre as narrativas que conta e sobre as narrativas que escuta e as reproduz, sem a devida validação de veracidade? Até que ponto somos críticos, analíticos, reflexivos ou crédulos? Será que o nosso nível de escolaridade ou o nosso grau de erudição definem o tamanho do nosso ceticismo? Quando uma pessoa de moral ilibada, acima de qualquer suspeita nos conta uma história ou faz algum tipo de crítica a algum conhecido nosso, acreditamos sem pestanejar ou questionamos essa narrativa? E aquele ditado popular que diz que “quem conta um conto, aumenta um ponto”? Será verdade ou mentira?
E a partir dessa discussão, quantas pessoas tiveram a sua honra maculada, o seu nome jogado na lama, a sua credibilidade abalada ou a sua vida destruída por causa de boatos ou fofocas sobre sua conduta? Muitas, não é? E desde que o mundo é mundo a humanidade enfrenta as consequências da maledicência, do alcovite e das conjecturas infundadas provenientes de narrativas falsas, motivadas pelo ciúme, pela inveja ou pelo complexo de inferioridade de algumas pessoas. A calúnia e a difamação são o tema principal desse romance de peso escrito por Philip Roth na época do escândalo que envolveu o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton em seu affair com a secretária Mônica Lewinsk.
O enredo principal de A marca humana (Cia das Letras, 2018) gira em torno de uma acusação feita a um professor universitário, ex-decano da faculdade por utilizar um termo racista ao se referir a dois alunos sempre ausentes de suas aulas. A palavra que Colleman Silk, nosso protagonista utilizou é spooks, que no sentido original significa fantasma ou espectro. Entretanto, durante o período da guerra civil norte-americana, esse termo era utilizado para se referir às pessoas escravizadas que fugiam das fazendas e se juntavam aos ianques. Para a sua grande infelicidade, os alunos que ele nunca tinha visto em suas aulas eram negros. A partir desse episódio, muito bem desenvolvido por Roth na sua prosa envolvente e bem construída, a vida de Colleman se transforma em um verdadeiro inferno, levando-o a situações que beiram o insólito.
Após se desligar da universidade e ter a sua credibilidade abalada como docente, Colleman se envolve sexualmente com uma mulher que tem a metade de sua idade, aparentemente simples, pobre, vulnerável e analfabeta funcional. Esse simples caso que acontece entre duas pessoas adultas se transforma em uma questão de gênero em um curto espaço de tempo, levando Silk ao isolamento total e transformando-o em um pária. Até mesmo sua relação com seus filhos é perdida por causa de conjecturas e mentiras sobre sua conduta como homem.
Roth conduz essa discussão que vai tratar sobre diversos assuntos muito contemporâneos, mas ao mesmo tempo atemporais e universais, através de um narrador onisciente em terceira pessoa, um escritor amigo de Colleman, que resolve contar a história do professor após a sua morte. Esse narrador, em algumas passagens será também um personagem da história e fará alguns juízos de valores, levando o leitor a se solidarizar com o protagonista. Porém, essa condução do narrador pode muito bem ser algum tipo de provocação do autor para que não sejamos tão crédulos e façamos as nossas indagações e conjecturas sobre os temas propostos, assim como todos os personagens do livro não são capazes de fazer. Com exceção da personagem tida como a mais vulnerável, a mais ignorante de todas. Já chego lá.
Faunia Farley é a amante de Colleman e uma das personagens literárias contemporâneas mais bem construídas, ricas em camadas e difíceis de classificar que eu já li. A princípio, a vemos como uma mulher simples, sofrida, trabalhadora e bastante comum. Ela é tida como analfabeta e vítima de todas as circunstâncias. É como se todas as minorias, exceto as raciais se concentrassem nessa personagem. Pode ser que Roth tenha criado essa personagem com essas características superficiais e até mesmo caricatas para aos poucos ir retirando cada um desse estereótipos de cima dela e trazendo à tona uma mulher complexa, inteligente, dona do seu próprio destino. Ela se apresenta bastante simplória e quer que todos a vejam dessa forma, mas por trás dessa aparência, existe uma pessoa fascinante.
Faunia foi casada com Les, um ex-combatente do Vietnã, que sofre de Síndrome do Estresse Pós-traumático. Esse é outro tema vastamente explorado por Roth nesse romance. O leitor, ao final desse livro, consegue visualizar as dores e as dificuldades de uma pessoa que volta da guerra, sem preparo nenhum para se reintegrar à sociedade e que, termina por se afastar de todos os seus familiares e amigos, tornando-se uma pessoa solitária e triste. Entendemos porque tantos ex-combatentes agridem suas mulheres e filhos ou pais devido a movimentos bruscos dessas pessoas. Movimentos que para nós são comuns e corriqueiros, para eles é como se estivessem diante do inimigo. Uma risada mais alta, uma simples virada na cama durante a noite, um cheiro característico – pode ser de comida asiática ou perfume ou mesmo plantas. Comer em um restaurante oriental para eles é uma batalha e que pode terminar muito mal.
É claro que diante de todo esse drama, o casamento dos dois não deu certo. Cada um a seu modo lidou com a situação e o mais interessante no romance de Roth é a forma como lidaram ou não lidaram com isso. O desenvolvimento das ações é que nos prendem a essas histórias. Mesmo sem termos passado por situações semelhantes, somos capazes de compreender e de sentir empatia por esses personagens tão críveis e verossímeis que acompanhamos ao longo da jornada de leitura. Na página 308, Faunia nos diz o que é a “marca humana”:
“nós deixamos uma marca, uma trilha, um vestígio. Impureza, crueldade, maus-tratos, erros, excrementos, esperma – não tem jeito de não deixar (…). Ela é como os gregos, os gregos de Colleman. Como os deuses dele. Eles são mesquinhos. Brigam. Lutam. Odeiam. Matam. Trepam (…). Nada disso: a marca divina. Seria uma religião bem ligada à realidade (…) tal como dita a fantasia orgulhosa, feita à imagem de Deus, sim, mas não do nosso – do deles. Deus depravado. Deus corrompido. Um Deus da vida, como nenhum outro. Deus à imagem do homem” (ROTH, 2018, pg. 308/ 309).
A partir desse conceito de a marca humana, chegamos a uma personagem muito complexa, muito visceral e de uma tenacidade impressionante: Delphine Roux. Francesa, saiu de seu país para estudar na América, trazendo consigo todos os conceitos de prosperidade e sucesso evocados pelo famigerado “sonho americano”. Fazendo um diálogo com os pensamentos da filósofa Simone de Beauvoir, Roux vivenciava uma difícil relação com sua mãe e principalmente com as tradições das famílias aristocráticas da França do século XX. Assim encontrou em sua erudição e inteligência uma ponte para a liberdade em um país distante, fugindo assim das opressões sofridas em sua classe social e principalmente das expectativas criadas sobre ela. O problema é que, características que na França pareciam imprescindíveis para o sucesso pessoal e profissional, na América não passam de chatices e de frescuras.
Dessa forma, Roux não se encaixa tão bem nos Estados Unidos conforme esperava: seu desejo era ser professora nas universidades da tão aclamada Ivy League, mas isso não aconteceu. Afinal, não é tão fácil assim. O que também se tornou muito difícil para ela foram os relacionamentos interpessoais – aqui temos a principal discussão proposta por Roth neste romance: a linguagem e o seu poder. Para que conseguisse se comunicar de forma real e verdadeira com as pessoas nos Estados Unidos, Roux precisava ter domínio dessa linguagem, o que ela não tinha. Na página 346, o autor nos dá uma explicação sobre esse estrangeirismo da personagem:
“Delphine constata, atônita, que está praticamente isolada nos Estados Unidos. Despatriada, isolada, distanciada, confusa a respeito de tudo o que é essencial a uma existência, um estado desesperador de anseio cego e por todos os lados cercada de forças antagônicas que a veem como o inimigo” (ROTH, 2018, pg. 346).
Essa confusão da personagem provoca uma série de eventos que vão ser determinantes para o futuro de todos os envolvidos no escândalo de Colleman. Outra discussão que Roth nos coloca a partir de Delphine é sobre o nosso excesso de problematização de tudo e de todas as coisas. Desejamos ser críticos, ser inteligentes e nunca, em hipótese alguma sermos feitos de idiotas ou enganados. Ultimamente, muito se fala sobre a questão de problematizar tudo o que conhecemos como “normal”. Porém, Delphine, na voz de Roth nos dá um show das consequências de problematizar tanto as coisas, principalmente aquelas que não são um problema, criar falácias sobre o pensamento ou as ações dos outros de forma irresponsável. Devemos sim ser questionadores, analíticos e principalmente, buscar a verdade e as respostas para as nossas dúvidas, o que não devemos fazer é comprar narrativas falsas e reproduzi-las de acordo com a nossa conveniência. Ainda na página 346, o autor resume a nossa condição humana através dos sonhos de Roux:
“Vou para a América para me tornar autora da minha própria vida, diz ela; vou me construir a mim mesma fora da ortodoxia imposta pela minha família, vou lutar contra essa ortodoxia, vou levar ao limite essa subjetividade passional, o individualismo no que ele tem de melhor – e eis que ela termina sendo personagem de um drama que foge ao seu controle. Termina autora de nada. Ela sente o impulso de dominar as coisas, e a única coisa que termina sendo dominada é ela mesma” (ROTH, 2018, pg. 346/ 347).
Em diversos trechos desse romance, enxergamos nós mesmos ali: a nossa falta de proficiência em nossa linguagem e na forma de utilizá-la, nossa incapacidade moral de julgar os outros, nossas escolhas baseadas apenas em nossas conveniências e não no pensamento coletivo, nossas marcas, deixadas para trás, os rastros que deixamos para que os outros limpem, nossa humanidade esfregada em nossa cara. Essa corrida eterna que travamos contra o tempo em busca de uma felicidade clandestina e que culmina em uma infelicidade total e sem sentido nenhum, intensificada por nossa solidão, que é sempre a nossa companheira quando escolhemos nos especializar em lutar uma batalha inglória de se provar bom o bastante, autossuficiente o bastante, capaz o bastante, melhor que este ou aquele, superior ao nosso antecessor e por aí adiante. Delphine Roux é o retrato da nossa geração, ainda com características das gerações anteriores, o que faz dessa obra atemporal e imortal.
Philip Roth é conhecido por ser um escritor machista, misógino e que utiliza o sexo como mote de suas histórias. Para muitos críticos, sua obra é datada e vulgar. Por causa desses comentários, eu tinha pouco interesse por seus livros e acreditava que me sentiria incomodada com a sua abordagem em relação às mulheres. Porém, após algumas páginas de A marca Humana, percebi que se tratava de um grande prosador, de uma mente inquieta e pensante, de alguém que não se conforma com a superficialidade e com a banalidade da vida e das questões humanas. Há um conteúdo sexual em seu texto, mas não é algo incômodo e depravado que chegue a nos incomodar. Também não consegui ler essa obra como misógina ou machista. Vi ali o pensamento coletivo de pessoas comuns, algumas engajadas em movimentos sociais e outras conservadoras, pessoas estas, que compõem a nossa sociedade e com as quais convivemos diariamente.
O que mais me encantou nessa obra foi o quanto ela me fez refletir e pensar sobre minhas próprias atitudes e engajamentos. Consegui perceber nossa humanidade descrita nas mais de 400 páginas desse romance. E certamente, quero ler outros livros do autor. Recentemente li do escritor alemão Heinrich Böll uma novela chamada A honra perdida de Katharina Blum, texto que dialoga profundamente com A marca humana de Roth, com a diferença de que este último é muito mais elaborado e tem uma qualidade estética impecável. Mas o que nos interessa neste diálogo é que na década de 1970, Böll se incomodou com a divulgação de mentiras sobre as pessoas e com as consequências dessas difamações infundadas. Em 2008, Roth também se sente motivado a escrever sobre o mesmo tema e ainda hoje somos vítimas desse grande mal que é a maledicência.
Outra obra que dialoga diretamente com A marca humana é um romance policial de altíssima qualidade estética e de desenvolvimento de personagens escrito por Joël Dicker, escritor suíço residente nos Estados Unidos, chamado A verdade sobre o caso Harry Quebert. Li esse romance há alguns anos, logo que foi publicado no Brasil e por uma feliz coincidência, durante os dias em que eu lia A marca humana, estava assistindo à adaptação para TV do livro de Dicker. Foi muito interessante fazer esses paralelos entre as duas obras e ver o potencial que esse tema suscita em nós e o quanto ainda precisamos falar sobre ele. Recomendo tanto o romance de Roth, quanto a novela de Böll e o livro de Dicker ou até mesmo a série homônima que está disponível na Globo Play e que ficou muito fiel ao livro. E então, leitor? Você já consegue responder a todas as perguntas do início do texto? Eu ainda estou pensando sobre isso.
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