crítica

A morte em Veneza e Tonio Kröger – Thomas Mann

A medida em que vamos nos aprofundando na obra de um escritor, começamos a perceber certos traços em sua escrita e nos temas abordados em seus romances que são recorrentes. No caso de Thomas Mann, percebi que ele sempre retrata a solidão, as máscaras sociais, o não-lugar, a dificuldade de relacionamento entre as pessoas e principalmente, a decadência do homem no geral. Essas impressões não foram diferentes nas novelas A morte em Veneza e Tonio Kröger, publicadas em uma única edição pela Companhia das Letras.

Fiz minhas observações, marquei várias passagens importantes e interessantes dos textos e depois, vieram dois ensaios maravilhosos sobre o escritor no final da edição. Qual não foi minha surpresa quando o especialista na obra de Mann explanou sobre todas essas impressões que tive de forma ampla e complexa, engrandecendo a minha própria interpretação das novelas e mais ainda: fazendo com que os outros dois romances do autor que já li, crescessem ainda mais para mim. Thomas Mann tem a capacidade de mesclar temas universais e atemporais junto às suas próprias inquietudes e vivências para construir verdadeiras obras-primas.

Em A morte em Veneza, conhecemos o protagonista Gustav Aschenbach, um professor aposentado, que sempre seguiu todas as regras sociais, construindo uma carreira de sucesso e uma reputação impecável. Um dia, cansado da monotonia da vida, teve um ímpeto de viajar e curtir um pouco, escolhendo como destino a cidade italiana de Veneza. A escolha peculiar do protagonista já abre para nós uma chave de leitura importante: com tantos destinos possíveis, porque escolher uma cidade que está sempre relacionada ao desejo, ao romance, tem um toque de ousadia, de rebeldia. E este é justamente o recado que Gustav está transmitindo, ele quer fazer algo impulsivo, diferente, que lhe permita dar vazão aos seus sentimentos e a novas possibilidades.

Em Veneza, Aschenbach descobre que a cidade não é o idílio que ele buscava, ao contrário, é suja, cheia de pessoas de várias nacionalidades, as pessoas falam alto, as ruas estão sempre lotadas, as comidas não são boas, o atendimento é apressado, enfim, uma decepção para alguém como o professor. Já assustado com o que encontra, ele decide pôr um fim em sua empreitada e voltar logo para casa, entretanto, em meio aos hóspedes de seu hotel, ele se encanta por um adolescente e decide ficar em Veneza a fim de observar o rapaz.

Não sabemos muito sobre Tadzio, o jovem alvo da atração de Aschenbach. Ao longo da narrativa, o acompanhamos fazendo suposições sobre a figura do rapaz de origem oriental, observações sobre sua família, seus horários, suas atitudes, porém, tudo isso é bastante superficial, pois Gustav nunca falou com Tadzio e não sabe absolutamente nada de concreto sobre ele. A obsessão do protagonista se torna algo patético, doentio. Ele não consegue parar de observar o rapaz, constrangendo as pessoas à sua volta que percebem algo fora do normal. Para piorar um pouco a situação, Veneza é assolada por uma epidemia virótica, que está provocando a morte de muitos turistas. Aschenbach é aconselhado a deixar a cidade o mais rápido possível, a fim de se poupar da peste. Porém, ele decide ficar.

Todo esse comportamento kamikaze do protagonista nos leva a refletir que ele não consegue mais dominar os próprios impulsos, sendo que passou a vida toda fazendo isso, se controlando. A vazão dos sentimentos homoafetivos para um burguês do início do século XX, em um país tradicional e conservador como a Alemanha é algo grave e afrontoso. Nas entrelinhas, fica subentendido que Aschenbach sempre desejou viver um amor com um homem, mas a sua posição social não o permitiu isso. No fim da vida, ou quando ele encontra uma paixão avassaladora, mesmo não sendo correspondida, ele sucumbe e se entrega à morte. É como o fim de uma jornada infeliz, malsucedida, pois, o homem é composto de várias facetas, sendo que o sucesso de uma não é capaz de promover o sucesso de todas. Uma pessoa que não pode se relacionar afetivamente de forma livre, devido às máscaras sociais, dificilmente será uma pessoa feliz.

Observando a biografia do autor, que tinha inclinações homoafetivas, mas nunca as assumiu, pode-se compreender que Aschenbach é uma alegoria do próprio escritor em vários outros sentidos, até mesmo em suas dificuldades de relacionamento interpessoal, sua postura aristocrática e a sensação constante de não pertencimento no mundo. É sabido que pelo fato de Thomas Mann ser filho de um alemão com uma brasileira, ele se sentia deslocado em meio à sociedade em que cresceu. Não sabia se era alemão ou se as influências brasileiras de sua mãe produziam nele algum tipo de atavismo, levando-o a uma posição comparada ao conceito de torre de marfim, onde o indivíduo se isola, acreditando não fazer parte do todo, da massa ou da esfera social onde está inserido.

Essas aflições do próprio escritor se fazem ainda mais presentes na novela Tonio Kröger, onde acompanhamos um protagonista em sua infância, que desejava ser poeta, gostava muito de ler e de analisar obras literárias, mas não tinha muitos amigos. Ele se descreve como fora do comum, pois é filho de um nobre alemão com uma mulher estrangeira. Essa miscigenação fez dele uma criança de cabelos e olhos pretos, diferente da maioria de seus colegas de classe e vizinhos, que eram todos loiros dos olhos claros. Ele acredita que a sua aparência física o afasta dos demais e não os seus hobbies que são totalmente diferentes dos outros. Seus colegas gostam de hipismo, de esportes e de lutas, algo que não lhe desperta nenhum interesse. Porém, para explicar essa sensação de estrangeirismo, ele acredita que as influências de fora da Alemanha, herdadas de sua mãe, lhe causam essa falta de estímulos para as atividades físicas.

Com o passar do tempo, depois de se apaixonar por uma moça e não ser correspondido e também devido à morte de seu pai, ele se afasta de vez da sociedade a qual pertencia e se aproxima dos artistas, afinal, decidiu por seguir a sua carreira na escrita. Mesmo sendo um poeta, um escritor já publicado, ele ainda não consegue se inserir e se sentir aceito junto à comunidade artística. Para estes, ele não passa de um burguês, extremamente apegado à vida e às coisas mundanas, algo que para os artistas despojados, não é condizente com a alma de um escritor. Há controversas, é claro, não vamos concordar com esses extremismos, mas podemos perceber no que se segue a essa exclusão de Tonio da classe artística, como um exílio voluntário, assim como em A morte em Veneza, onde o protagonista se isola da sociedade, habitando uma torre de marfim, amparado por sua empáfia e certeza de ser alguém superior aos demais, como se fosse uma espécie de escolhido para brilhar.

Não há nada mais universal e atemporal do que o indivíduo, seja ele quem for, em algum momento de sua vida, se sentir totalmente incompreendido pelos outros, isolado e solitário. Como já dito antes, a solidão é um dos grandes temas de Thomas Mann, que podemos observar, também foi uma pessoa muito solitária. A forma como ele coloca esse sentimento nas duas novelas que compõem esse livro, são muito tocantes e impressionam o leitor no sentido de perceber o exagero dos protagonistas, ao mesmo tempo em que compreende as suas decisões temerárias e sua dificuldade de convivência com a sociedade. Considero e fui amparada pelo texto de apoio contido na edição da Companhia das Letras, escrito por Anatol Rosenfeld, que Tonio seria um embrião de Adrian Leverkühn, protagonista do último romance de Thomas Mann, Doutor Fausto. O seu isolamento, sua solidão e o desejo de ser superior e conhecido por suas obras e não por sua individualidade, levam esses personagens à loucura, assim como Aschenbach também não foge à regra.

No quarto volume da série Em busca do tempo perdido, do francês Marcel Proust, ele discute bastante a questão da imortalidade da obra-prima tanto de um compositor, como de um pintor ou de um escritor de sucesso. Para ele, alguém pode ser imortalizado através de sua obra, entretanto, essas obras póstumas ainda dependem dos vivos para se manterem vivas. Elas precisam ser lidas, ouvidas, vistas e principalmente, interpretadas de formas individuais, pois, cada pessoa carrega dentro de si um mundo inteiro. Portanto, quando Tonio Kröger se isola e coloca toda a sua fé em suas obras e determina que elas o representarão e que assim não precisa de muitas pessoas a seu redor, afinal, ele se enxerga como um ser superior, ele está tentando ser imortalizado através de seus poemas. Mas, sem o apoio dos seus contemporâneos, como sua obra será imortalizada?

Thomas Mann na maioria das vezes, dá um desfecho trágico às suas tramas. É até mesmo um tanto proustiano esse conceito que gera um tipo de leitmotiv, onde aparentemente, estamos sempre vivendo um castigo de Sísifo, e que nós nunca vamos conseguir nos livrar dele. No caso de Thomas Mann, esse castigo é a empáfia de muitos de seus personagens que começam a sua jornada sendo boas pessoas, responsáveis, abrindo mão de seus desejos mais intensos e profundos a fim de se adequar aos padrões sociais e que em determinado momento, a partir de um revés ou de algum acontecimento determinante, este protagonista se afasta das máscaras sociais e decide fazer um pacto fáustico com o mundo, onde o indivíduo fará qualquer coisa em prol do sucesso e que consequentemente, o isola das demais pessoas.

Thomas Mann descobre que o seu tema pessoal, a experiência pungente de sua juventude, o seu isolamento, a sua marginalidade e alienação, é um processo que se repete através da história e se perde na sombra do mito” (ROSENFELD, 2020, pág. 155)

Essa é uma chave de leitura para a obra do autor, que pode ser vista desde o seu primeiro romance, Os Buddenbrook. Esse conceito da decadência humana e do isolamento dentro dos padrões que já passaram e se tornaram obsoletos, perpassa toda a obra de Mann, cada personagem à sua maneira, mas que dialogam com o mesmo conceito: a posição da Alemanha dentro da Europa. O povo alemão sofre as consequências de seus atos e de seu isolamento até os dias atuais e o autor vivenciou as duas grandes guerras, o entre guerras e o pós-guerra. Dessa forma, ele teve a oportunidade de observar as coisas acontecendo e registrar as consequências que as muitas omissões do povo alemão trouxeram para o país em um momento delicado e decisivo para o mundo.

Como todas as obras de Thomas Mann, o Fausto também pode ser interpretado em diferentes cortes de profundidade. Trata-se da tragédia da arte e do artista, da tragédia da Alemanha, da humanidade em nossa era e do conhecimento do homem” (ROSENFELD, 2020, pág. 177)

Apesar de suas idiossincrasias, Thomas Mann foi um exímio escritor da literatura mundial e que teve a maestria em transmitir ao leitor sentimentos muito vívidos e universais, mesmo partindo de um ponto específico ou de um local de fala privilegiado.

“(…) o gênio não é no fundo nada mais do que uma expressão extrema do homem simplesmente. Ser homem significa superar de maneira permanente a natureza humana. A norma da humanidade é no cerne a de jamais ser totalmente normal” (ROSENFELD, 2020, pág. 178)

Em seus livros sempre encontraremos as aflições do ser humano em relação ao existencialismo, ao utilitarismo e às nossas escolhas que sempre vão se voltar contra nós, seja para o bem ou para o mal. Não foi à toa que o escritor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1929. Suas obras realmente foram imortalizadas e dialogam perfeitamente com o mundo atual e contemporâneo.

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