crítica

A muralha – Dinah Silveira de Queiroz

Inspirado na história real dos bandeirantes ou sertanistas – primeiros exploradores do sertão brasileiro, descendentes diretos de portugueses que expandiram e conquistaram terras para a Coroa Portuguesa, durante os séculos XVI e XVIII – A muralha (Instante, 2020) é um romance histórico, que traz elementos verídicos da história do Brasil intermeados com a ficção, apresentando ao leitor um panorama de São Paulo no início do século XVIII, ainda sob o Tratado de Tordesilhas e com a presença dos jesuítas por aqui a catequizar os povos indígenas.

A partir de um núcleo fictício, formado pela família de Dom Braz Olinto, composta pelo patriarca, sua esposa Mãe Cândida e seus filhos Leonel, Tiago, Basília e Rosália, a autora conta a trajetória desses homens que passavam mais tempo fora de casa, nas bandeiras, explorando, guerreando, desviando o curso dos rios para retirar o ouro, descumprindo as regras do Tratado de Tordesilhas e mostrando toda a bravura dos paulistas e das mulheres que permaneciam no lar, esperando a volta dos homens, rezando, plantando, colhendo, educando os filhos que seus maridos tinham fora do casamento e mantendo a casa em constante funcionamento como um suporte aos homens.

Essa dinâmica de vida é quebrada com a chegada de Cristina, uma moça que vem de Portugal para se casar com Tiago, em um matrimônio arranjado por Dom Braz e o irmão da jovem. Ao aportar em Santos, a garota sente o choque cultural e a partir daí apresenta uma grande dificuldade de adequação com as práticas adotadas em São Paulo de Piratininga. É importante frisar que a autora é descendente de bandeirantes e assim, seu posicionamento fica um pouco ambíguo. No texto percebemos uma narrativa muito bem-feita sobre os acontecimentos daquela época, com um exímio trabalho de pesquisa histórica para composição das cenas, dos diálogos e dos desdobramentos da trama. Porém, para o leitor atual, há muitas descrições incômodas, assim como há um absurdo total nas práticas dos bandeirantes, algo que é apontado por Cristina.

A portuguesa sofre a sua primeira decepção ao chegar ao Brasil quando o noivo Tiago não está no porto esperando por ela, mas sim, Aimbé, um indígena escravizado pela família de Dom Braz e que foi encarregado de levar Cristina até a Lagoa Serena, propriedade rural da família de Dom Braz. Após atravessar a muralha da Serra do Mar, com muita dificuldade e alguns dissabores, ela chega à fazenda e conhece as mulheres da família. De todas elas, a única que lhe é mais agradável é Margarida, esposa de Leonel. Ela é vibrante, muito afetuosa, apaixonada pelo marido e deseja fortemente ter um filho. Mãe Cândida é apresentada como a fortaleza em pessoa, uma mulher que enfrentou muitas agruras e hoje sabe lidar com a vida e suas vicissitudes. Basília é solteira, aparenta ser muito amargurada e só abranda um pouco a sua dureza na presença da irmã mais nova Rosália, que é cheia de vida e de sonhos, em meio a tantas desventuras.

Tentando se adaptar à rotina da casa, Cristina começa a questionar alguns comportamentos, observar a vida resignada daquelas mulheres e se questionar se um dia vai conseguir viver ali, como elas. Até que os homens voltam de uma expedição e ela finalmente conhece o seu noivo Tiago, um rapaz taciturno, evasivo e que parece esconder alguma coisa. Dom Braz é um homem bronco, que mostra valentia em todas as suas ações, desde as mais simples até as mais importantes e Leonel é mais tranquilo, ao mesmo tempo em que é totalmente passional, algo que será muito explorado ao longo do romance. Junto com os homens chega também Isabel, sobrinha de Dom Braz, que perdeu os pais quando criança e foi criada pelo tio e por Mãe Cândida. Isabel é um mistério, fugidia, prefere a companhia de uma jaguatirica que ela trouxe da mata a ficar junto de sua família.

Ao longo do romance, o leitor vai acompanhando os desdobramentos da vida desses personagens, que podem ser interpretados de várias maneiras. A primeira chave de leitura para esse romance é seguir a narrativa sem confrontá-la com os conhecimentos que temos atualmente. Assim, encontramos um enredo que se trata de uma tragédia, unindo o destino e o livre arbítrio dos personagens que vão leva-los à bancarrota. Tiago e Cristina se casam e logo depois os homens saem para uma nova expedição, sem data para voltar. Entretanto, descobrem que Isabel está grávida e pensam que o filho é de um homem indígena chamado Apingorá que vive em uma tribo próxima da fazenda. Leonel, com a intenção de vingar a honra da prima, mata esse guerreiro e incendeia a sua aldeia. Depois, parte ao encontro de seu pai.

Os meses vão passando, o bebê de Isabel nasce branco e logo percebe-se que Apingorá era inocente. Mas já é tarde demais. Os sobreviventes do incêndio da aldeia invadem a Lagoa Serena e há uma batalha entre as mulheres da casa e os indígenas, que apesar de perderem a luta, colocam fogo em todas as plantações do local, deixando as mulheres em uma situação difícil. Rosália, sem nenhum pretendente em vista, foge e se casa escondido com Bento Coutinho, líder dos emboabas – mineiros, baianos e portugueses que disputavam com os paulistas o ouro das Minas Gerais – provocando um morticínio enorme durante a Guerra dos Emboabas. Margarida, ao perceber que o filho de Isabel não pode ser de Apingorá, passa a acreditar ser o filho de Leonel, entra em depressão, adoece e morre. O marido, ao voltar à fazenda sozinho a fim de buscar uma encomenda para o pai, abandona tudo e se perde na mata, alegando não ter forças para superar a morte da esposa. Lido dessa forma, o romance é uma verdadeira tragédia, mostrando que em meio às conquistas, há muitas perdas e que não é possível alcançar o progresso sem causar destruição por todos os lados.

Outra possibilidade de interpretação é sob o âmbito histórico, o que torna o romance também uma obra-prima, no sentido da pesquisa, da escrita e da contextualização que a autora faz aqui. O tema central, além de apresentar o trabalho dos bandeirantes, é a Guerra dos Emboabas – conflito travado entre os anos de 1707 a 1709, na Capitania de São Vicente, onde hoje é o estado de Minas Gerais, com liderança de Borba Gato (bandeirante) e Manuel Nunes Viana (emboaba), que disputavam as jazidas de ouro encontradas no local. Os emboabas venceram a guerra, mas esse fato permitiu que outras minas de ouro e pedras preciosas fossem exploradas e São Paulo se transformou em uma cidade, passando os estados de Minas e São Paulo a capitanias ligadas à Coroa Portuguesa.

Para ilustrar essa guerra, Dinah Silveira de Queiroz faz menções aos líderes reais dos dois lados, sem que eles sejam personagens de sua obra. Porém, há uma batalha muito intensa, que é descrita com maestria pela autora, onde muitos bandeirantes são mortos, liderados por Dom Braz Olinto em confronto com Bento Coutinho, tendo como maior incentivo para essa luta, Rosália, filha do bandeirante, casada com o emboaba. Esse é um recurso bastante utilizado pelos romancistas quando vão narrar um fato histórico real, com protagonistas fictícios: humanizam os fatos, trazendo para um microcosmo íntimo, um acontecimento muito maior, que mudou a vida de inúmeras pessoas, cidades e nações. Visto dessa forma, a autora literalmente, eufemiza e justifica os atos vis dos bandeirantes, ao passo em que coloca os emboabas em uma posição de carrascos e bárbaros.

O romance não deixa de contemplar os sentimentos e as agruras de Bento Coutinho, porém, ele é o inimigo. E neste caso, para a época, essa dualidade era bastante comum e aceitável nas obras literárias. Há uma frase de Dom Braz Olinto, que me marcou bastante, porque ela mostra o quanto eles acreditavam estar agindo de forma correta: “Deus está do lado dos paulistas! Nós somos o povo de Cristo, somos batizados, o Rei nos autorizou tomar o ouro que achamos, por isso não estamos em pecado”. No século XVIII, a religião era muito forte para os bandeirantes e ditava as regras de conduta. Eles acreditavam piamente que deveriam escravizar os povos originários, porque eles eram “pagãos” e dessa forma, não tinham direitos. Os cristãos estavam ali para salvá-los e essa é outra característica do romance presente o tempo todo: a subserviência dos indígenas e dos negros. Hoje, sabemos que os fatos históricos não aconteceram dessa forma, porém, precisamos lembrar que esse é um romance escrito em 1954, por uma mulher branca, descendente de bandeirantes, escolarizada, cheia de privilégios e que teve essa obra encomendada em comemoração aos 400 anos de São Paulo. Portanto, sua abordagem é sim tendenciosa.

É importante lembrar que para além da questão social, há também o trabalho estético da obra e o romance em si, desconsiderando esse posicionamento da autora. O leitor crítico do século XXI, vai ler esse folhetim com outros olhos e perceber que há aqui muito da história do Brasil, contada por um dos lados. E para uma leitura ativa e analítica, a história nunca pode ser única: vamos sim apontar aquilo que nos desagrada, sem tirar do romance o seu mérito criativo, de pesquisa e de escrita. Além disso, temos dramas familiares e questões humanas contidas nesse texto que são universais e que ainda perduram nos dias atuais. Alguns exemplos disso são a depressão de Margarida, que naquela época não era vista dessa forma, mas sim como uma espécie de loucura, algo que a autora consegue transmitir ao leitor de forma brilhante. Os casamentos arranjados também ainda são praticados em muitas civilizações e as possibilidades de darem errado continuam muito grandes. Os filhos fora do casamento, principalmente com mulheres indígenas e negras, que nunca foram assumidos e assim passam necessidades, enquanto os irmãos, frutos da união santificada, têm tudo do bom e do melhor.

Por fim, temos o elemento estranho na obra que é Cristina, aquela que terá a visão crítica que nós leitores também temos. Para a moça, que veio de Portugal, tudo o que acontecia nas bandeiras e em Lagoa Serena não passavam de selvageria. Ela não conseguia compreender o estilo de vida daquelas pessoas e por isso aponta os crimes e as coisas erradas que vê ali. Apesar de pautar seus julgamentos através da religião, ela se mostra sempre uma pessoa sensível ao sofrimento do próximo, não aprova a forma como os povos originários são tratados, desaprova as ações e as descortesias de Dom Braz, não vê sentido nas bandeiras, acredita na lealdade e na fidelidade dos sentimentos e não aceita as traições do marido. Ela também condena os crimes que são cometidos em nome da honra, sendo assim a voz da razão em meio a uma terra árida de amor e de empatia.

Dinah Silveira de Queiroz me surpreendeu com a sua prosa eloquente e adequada para a época em que o romance se passa. Seu trabalho com a linguagem me cativou. A criação e o desenvolvimento de seus personagens também. Ela conseguiu criar um núcleo pequeno de pessoas que simbolizam aquele tempo, ao passo em que são universais. Tratou sobre o livre-arbítrio de uma forma indireta, enquanto nos mostra que as nossas ações têm reações e que muitas vezes, atitudes e decisões imprudentes são fatais. A autora também fez descrições muito bonitas da nossa natureza, mostrando a ligação forte dos povos originários com a fauna, a flora e os animais. Há uma aura de misticismo no romance, que traz a ele uma brasilidade em meio à guerras e batalhas sangrentas, herança dos bárbaros que aqui se encontravam com o objetivo de explorar as nossas riquezas. A muralha é um livro bonito, muito bem escrito, que nos faz refletir sobre diversos aspectos e que permanece com o leitor após a sua experiência.

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