crítica

A parábola do semeador – Octavia E. Butler

A partir de uma história de ficção científica escrita originalmente na década de 1990, onde o futuro distópico seria nos anos de 2025 em diante, Octavia Butler nos aterroriza com possibilidades reais de mudanças significativas no mundo, provocadas pelo efeito estufa, pela degradação do meio-ambiente, pela ganância, pelo individualismo e pela intolerância. Partindo de suas observações a respeito do ser humano e do comportamento de seus contemporâneos, a autora criou em A parábola do semeador (Morro Branco, 2021) uma história fascinante, contada a partir dos diários de Lauren, uma garota negra de 15 anos que mostra ao leitor como é a vida na Califórnia após uma catástrofe ambiental e uma divisão muito intensa de raça e classe social no país.

Logo nas primeiras entradas do diário, entendemos que a família da narradora vive em uma comunidade fechada, cercada por muros e grades, com a intenção de se proteger dos infortúnios que acontecem do lado de fora. Essa comunidade fechada não é tão unida quanto deveria: existem conflitos internos que provocam nos seus habitantes sentimentos de inveja, raiva, frustração e descontentamento. O pai de Lauren é um professor universitário que sai para trabalhar todos os dias do lado de fora da comunidade. Profissões como a sua estão sendo extintas dos Estados Unidos por causa da carência de profissionais capacitados para ministrar aulas de qualquer disciplina. Por isso, ele tem uma boa condição financeira, apesar da carestia dos gêneros básicos de alimentação.

A mãe da protagonista faleceu logo após o seu nascimento. O motivo dessa morte foi o uso exacerbado de drogas, algo que é bastante comum nessa distopia. Por isso, Lauren nasceu com uma condição provocada pelo uso de entorpecentes durante a gravidez, que é a hiperempatia – capacidade de sentir as dores físicas do outro. A garota precisa lidar com essa característica durante toda a sua trajetória, pois, em alguns momentos ela pode prejudica-la fortemente. Sua família é composta pelo pai, por sua madrasta e por seus dois irmãos mais novos. Lauren é uma menina muito consciente da situação do país e do que vem pela frente. Apesar de seu pai ser o pastor da comunidade, ela não acredita na religião pregada por ele. Dessa forma, a partir de seus conhecimentos científicos e estudos filosóficos, ela procura uma forma de encontrar Deus a partir da Semente da Terra, religião que ela está construindo para o futuro.

Octavia Butler conduz a sua narrativa a partir de dois fios condutores: a criação da Semente da Terra, baseada na Parábola do Semeador (Mateus – 13:3-23), onde Jesus mostra aos homens como cada um deles pode conduzir a sua vida a partir daquilo que lhes foi dado pelo criador. Entram aqui o livre arbítrio e as escolhas que fazemos durante a nossa caminhada terrena. Dessa forma, unindo esse conceito e outros temas filosóficos e científicos, a autora tenta mostrar ao leitor que a vida pode ter um sentido mais humanitário, menos individualista e que é possível ter atitudes mais dignas, que proporcionarão um futuro melhor a todos. A base dessa doutrina é a mudança, portanto, a protagonista repete por diversas vezes que “Deus é mudança” e o que vai diferenciar os homens é como eles lidarão com as mudanças constantes da vida. A frase mais simbólica da Semente da Terra é: “Tudo o que você toca você muda. Tudo o que você muda, muda você. A única verdade perene é a mudança”.

O segundo fio condutor da trama é a mudança que ocorre após a invasão da comunidade onde Lauren vive com sua família. Em certo momento, as grades são rompidas por incendiários, usuários de drogas que se tornaram piromaníacos devido ao constante uso de entorpecentes e assim, a comunidade é saqueada, destruída e incendiada por essas pessoas e os poucos sobrevivente precisam fugir e enfrentar o desconhecido: o novo mundo que acontece fora dos muros. Apesar de Lauren ter um certo conhecimento e um tanto de preparo para esse dia, ainda lhe é assustadora a situação em que se encontra o pais: destruição total, pessoas vagando pelas estradas sem destino certo, assaltos, estupros, violência gratuita, uso exagerado de drogas e exploração de mão-de-obra por parte daqueles que ainda possuem algum poder aquisitivo. O racismo está presente nesse cenário e casais interraciais não são bem-vindos aqui.

A situação da mulher também é periclitante: elas se tornaram um alvo fácil de violência, principalmente sexual, além de roubos e assassinatos. Por isso, Lauren decide se passar por homem com a intenção de se preservar um pouco até se sentir segura nesse mundo devastado. Esse é um dos exemplos de como a protagonista lida com as mudanças: enfrentando-as e seguindo em frente. Não demora muito para que ela forme uma nova comunidade, onde infelizmente, os mesmos sentimentos humanos que geravam conflitos na comunidade anterior continuarão a fazer parte dos desafios de convivência, gerando momentos de tensão em um ambiente hostil, onde estar unidos e passar por cima das diferenças é mais importante para a sobrevivência que uma disputa infantil de egos.

Essa saga que os caminhantes vão enfrentar pode ser vista como um microcosmo de tudo o que gerou essa catástrofe nos Estados Unidos: o desmatamento inconsequente provocado pela sociedade de consumo; o abuso de entorpecentes, que provocam danos psicológicos e físicos em fetos e ainda causam a morte de muitas gestantes nessa condição, além de deixarem muitos indivíduos em situação de rua por não conseguirem se livrar do vício; a banalização do sistema educacional e a tentativa de impedir a mobilidade social. Por ser uma escritora negra, Octavia Butler não deixa de mostrar que a questão racial ainda é um fator sensível nos Estados Unidos e que enquanto houver racismo e segregação, situações aterradoras como a que acompanhamos em seu livro serão totalmente possíveis.

Em uma entrevista, a autora diz como surgiu a ideia para escrever esse livro:

Eu considerei drogas e o efeitos delas nos filhos de viciados. Olhei para a crescente distância entre ricos e pobres, para o trabalho precarizado, para a nossa disposição de construir e encher prisões, nossa relutância em construir e reformar escolas e bibliotecas e para o nosso ataque ao meio-ambiente” (BUTLER, 2021, pág. 417)

Se pararmos para pensar, é urgente ao menos tentar impedir que as coisas sigam nessa toada, chegando a uma distopia real de um mundo devastado, onde não há chuvas, nem água, nem comida para todos.

Imaginei que a fome crescente provocaria maior vulnerabilidade a doenças. E haveria menos dinheiro para vacinas ou tratamento. Também graças ao aumento da temperatura, doenças tropicais como a malária e a dengue se espalhariam pelo norte. (…) Imaginei os Estados Unidos se tornando lentamente pelos efeitos conjuntos de falta de perspectiva e de interesses imediatistas e egoístas um país de terceiro mundo” (BUTLER, 2021, pág. 417/418)

O que não fica muito distante do que temos no Brasil e no mundo inteiro. Esse livro é um alerta para todos. Quando o lemos, tudo parece muito possível, até porque, foi baseado nas observações argutas da autora, que fez uma projeção um tanto realista do futuro mundial comandado por interesses individuais e pela ganância. Esta obra pertence a uma série de dois volumes e logo teremos a resenha do segundo livro, A parábola dos Talentos.

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