crítica

A parábola dos talentos – Octavia E. Butler

Livro que dá sequência à duologia Sementes da Terra, acompanhamos a história de Lauren Olamina, protagonista do primeiro volume da série, alguns anos após o final de A parábola do semeador. Entretanto, neste texto, temos como narradora principal a filha de Lauren, Acha Vere ou Larkin (seu nome original), que está contando a história da mãe através das suas observações e dos diários de Lauren, onde o leitor consegue acompanhar os desdobramentos do mundo pós-apocalíptico criado pela autora.

O objetivo dessa resenha crítica é apontar os temas abordados pela autora, fazendo uma análise deles com acontecimentos passados e presentes, mostrando que essa distopia está mais próxima de nós do que podemos imaginar. Por isso, não vou me deter a detalhes do enredo, até porque, para chegar neste volume, o leitor deverá passar primeiro pelo livro anterior e assim terá as informações mais relevantes sobre a história. Já temos resenha sobre A parábola do semeador aqui no site, para quem se interessar.

Dessa forma, o tema central de A parábola dos talentos é a religião como forma de dominação. Temos neste livro três líderes religiosos diferentes, cada um com suas ideologias e idiossincrasias, mas com apenas uma característica em comum: eles conseguem convencer as pessoas a segui-los e a fazer o que eles sugerem. O primeiro desses líderes é o atual presidente dos Estados Unidos no enredo, Arthur Jarret. Este homem se elege prometendo aos eleitores que conseguiria manter a ordem e a civilidade no país, além de derrotar os seus inimigos: o Canadá e o Alasca – estado norte-americano que se separou do restante do país e agora reivindica os seus direitos. Assim como já vimos no livro de não-ficção escrito pelo historiador Laurence Rees, O holocausto, as pessoas nesta situação caótica estavam sedentas por ordem e assim, apoiaram aquele que lhes prometeu organizar as coisas e manter o mundo da forma que eles estão acostumados a viver.

O grande estandarte da campanha de Jarret era a América Cristã, organização criada para combater o paganismo e transformar todos os norte-americanos em cristãos, seguindo as regras meritocráticas e obedecendo cegamente às leis dos “bons costumes”. Amparados por essa promessa, os eleitores votaram em Jarret, assim como nas eleições de 2016, os americanos elegeram Donald Trump, que tinha como slogan algo bem parecido com o que Octavia Butler colocou na voz de Jarret em 1998: “make America great again”. Utilizando-se das fraquezas das pessoas e do medo que sentiam de viverem na desordem, no caos provocado pela catástrofe ambiental, Jarret utiliza o poder das palavras e da oratória para convencê-las de que apenas com ele, a América estaria a salvo. Durante o seu governo, algumas coisas começaram realmente a progredir, porém, às custas de mortes e de escravidão de pessoas vulneráveis, consideradas pagãs e inadequadas à sociedade. De uma forma muito parecida com as práticas nazistas durante o holocausto, campos de treinamento e correção foram criados nos Estados Unidos. Sim, eles se assemelham muito aos campos de concentração nazistas e não é só isso: a reação da população é muito semelhante ao comportamento dos alemães em 1940, quando achavam que pessoas diferentes do padrão deveriam passar por “correções” aplicadas por policiais.

Durante a ascensão de Jarret, uma outra voz começa a ganhar força dentro da América Cristã, o jovem pastor Marc Duran, meio-irmão de Lauren Olamina. Marc é um homem sofrido, que passou por muitos problemas graves durante a infância e a adolescência. Entretanto, ele sempre soube que queria ser pastor e que tinha o dom da oratória. Começou a frequentar os cultos, a ajudar nas celebrações e logo se destacou como uma pessoa que reunia multidões e que as convencia a segui-lo. Assim, ganhou cada vez mais espaço nas igrejas e congregações da América Cristã. Marc é um personagem ambíguo: mesmo sabendo que muitas coisas pregadas por seus líderes não o convencem ou mesmo percebendo injustiças sendo cometidas, ele preferia fechar os olhos a isso, fingir que não estava vendo. Pode ser que fizesse isso para se proteger ou até mesmo para se dar bem, mas, tudo leva a crer que suas omissões aconteciam devido às suas carências afetivas e à sua necessidade constante de pertencimento.

Marc se assemelha bastante a algumas figuras solitárias que conhecemos no documentário da Globo Play, Extremistas. Nesse programa jornalístico, conhecemos pessoas reais como o Marc, que passam a acreditar em dogmas ultrapassados e a defende-los como se disso dependesse a sua própria vida. Esses indivíduos chegam a um nível de fanatismo tão grande que se transformam em criminosos, agentes ativos ou passivos de crimes cruéis. Se voltam contra os seus familiares por eles serem contrários às suas ideologias e tentam o tempo todo convencer as pessoas a se converterem à sua religião e a serem doutrinadas de alguma forma por eles. É claro que todo esse movimento acontece com base nas fraquezas humanas. Quando as coisas estão muito erradas, começam a ficar difíceis demais, é comum que as pessoas recorram à fé, à religião para se sentirem seguras e confortadas nos momentos de pânico. E esse apoio na religião, muitas vezes é utilizado por oportunistas para fins políticos e eleitorais.

Na série Extremistas, há um caso de um fiel que frequentava a Igreja há 20 anos e por discordar do pastor, foi expulso do local e posteriormente obrigado a se retratar diante da comunidade, ocasião em que seu irmão que o estava acompanhando, levou um tiro na perna, disparado por um fanático, que realmente acreditava estar diante do demônio. Essa desconexão com a realidade, consequência do escapismo, promove ascensão de oportunistas, pessoas geralmente de má índole, que insuflam o mal dentro dos outros e quando eles estão bastante inflamados, os incentivam a agir, cometendo crimes e pagando muitas vezes com a própria vida por ideologias baratas e que não levam ninguém a lugar algum, apenas engendram o ódio, a calúnia e o mal-estar na nossa civilização.

Gerar o caos é a primeira intenção de uma pessoa que deseja se aproveitar da situação para ganhar alguma coisa. E no caso de A parábola dos talentos, Jarret se aproveita do impacto ambiental e das calamidades oriundas dele para se eleger. Porém, como tudo tem o seu ápice e posteriormente a sua queda, o império deste impostor não tem vida longa. E, quando a derrocada de Jarret começou, Lauren Olamina entrou na história com a sua Semente da Terra. Desde o primeiro livro da duologia conhecemos essa religião que a protagonista está tentando criar. Diferente da maioria das religiões, ela coloca Deus como mudança e não oferece o conforto das outras crenças. O dogma de Lauren está mais voltado para a colaboração de uns com os outros e com o coletivo, que com uma força misteriosa que rege o mundo e tem domínio sobre nós. Contraditoriamente, Lauren acredita no destino e por isso sabe que sua missão na terra é fundar e difundir a Semente da Terra.

Lauren terá sucesso em sua empreitada, entretanto, ela passará por situações inenarráveis nesse segundo volume da série. Após criar uma comunidade nas terras de seu companheiro e insistir em ficar ali, mesmo tendo a possibilidade de se mudar para um lugar teoricamente mais seguro, eles sofrem um revés, quando a comunidade é invadida pelo chamado Exército de Jarret. Essas pessoas se apresentam como “educadores” e estão ali para converter e ensinar os pagãos a se cristianizar. Porém, basta voltarmos um pouquinho na história dos povos para saber o que esses criminosos vão fazer com as pessoas nesse campo de concentração: escravizar, calar, espancar, estuprar, tudo em nome de Deus. É cansativo ler, ficar sabendo, ouvir e assistir pessoas totalmente desconectadas da realidade praticando atrocidades em nome de Deus. E aparentemente essa loucura não tem fim: aconteceu durante as cruzadas, na perseguição às mulheres de Salem, se repetiu dentre os apoiadores de Trump nos Estados Unidos recentemente e aqui no Brasil, como vimos dia 08 de janeiro, na ocasião da invasão do congresso, do STF e do Palácio do Planalto. Voltando à série Extremistas, há um rapaz de 19 anos pleiteando a presidência da república com um discurso bem próximo a cometer crimes em nome de Deus, como se fosse ele “o escolhido” para corrigir as pessoas indecentes. No mesmo programa, uma professora brasileira foi proibida de ministrar aulas, além de ter sido perseguida e ameaçada de morte por conversar com os seus alunos sobre bullying, explicando que uma pessoa não deve ser ridicularizada por não se identificar com o seu gênero biológico.

Todos os exemplos reais citados acima mostram que infelizmente essa distopia de Octavia E. Butler está muito próxima de nós. E por isso é fundamental que a educação prevaleça sempre, que ela seja permitida a todos e principalmente, que as escolas do mundo inteiro formem cidadãos críticos, analíticos e reflexivos. Uma população ignorante é o berço do autoritarismo. Sem senso crítico e com o apagamento da história ou com o peso da história única, fatos horrorosos do passado irão se repetir no futuro. Quando olhamos para trás e pensamos no holocausto, nas ditaduras da América Latina, do Brasil, no comunismo da China e URSS, nos questionamos como isso aconteceu. Laurence Rees, Stefan Zweig, Amós Oz e tantos outros já explicaram para nós, como se tivéssemos quatro anos, como isso aconteceu. E se não tomarmos uma atitude mais crítica e de renúncia à posicionamentos extremistas, vamos caminhar diretamente para esse mundo distópico que a mestra Octavia Butler previu em 1998 e ambientou entre os anos de 2020 a 2035. Por isso, não vamos apagar a história, vamos estudar, ler e ser sempre indivíduos críticos a fim de tentar ao menos impedir o caos.

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