crítica

A queda – Albert Camus

É provável que, em algum momento da vida nos deparemos com algo que vai nos modificar para sempre. Pode ser um acontecimento, uma vivência, uma experiência, ou até mesmo algo dito a nós por alguém, um filme, uma série, um livro… Mas em alguma curva da vida temos a sensação de que uma chave foi virada em nossa cabeça e que tudo mudou. A vida que conhecíamos não existe mais. Nossas crenças antigas não fazem mais sentido, nossas certezas foram desconstruídas e assim passamos a buscar uma nova forma de viver e de estar no mundo.

Esta é a proposta de A queda (Record, 2017), onde o escritor, filósofo, dramaturgo e ensaísta Albert Camus nos apresenta um protagonista que toma consciência do absurdo da vida e a partir de então, procura viver de uma outra forma, assumindo a verdade sobre si mesmo e buscando respostas para a sua existência. Através desse personagem, chamado Jean-Baptiste Clamence, o romancista apresenta suas teorias em relação ao existencialismo e à teoria do absurdo como uma forma de liberdade humana, mostrando que o homem deve assumir a responsabilidade por seus atos e conviver com suas escolhas.

Jean-Baptiste é um advogado famoso, bem-sucedido que vive em Paris e que segue todas as regras de conduta social. Até que um dia ele presencia um suicídio e não consegue impedi-lo. Na verdade, ele não faz nada, simplesmente vai embora, segue o seu caminho, acreditando não ter nada a ver com aquele episódio. O problema é que esse fato não sai de sua cabeça, levando-o a olhar para si mesmo e a perceber todo o seu hedonismo. Assim, o narrador-protagonista abandona a capital francesa e seu antigo estilo de vida, mudando-se para Amsterdam, onde encontra um ouvinte em uma mesa de bar e desabafa a sua história.

Escrito em forma de monólogo, A queda é um texto denso, curto, mas cheio de reflexões existencialistas e profundas sobre o ser humano. É como uma conversa mesmo, como se esse protagonista estivesse em um divã contando suas mazelas e fazendo suas observações sobre a vida, o ser humano e as mudanças pelas quais passou através de uma vivência. Essa é uma característica dos filósofos existencialistas: utilizar a ficção, a literatura para demonstrar suas ideias e exemplificar a aplicação de seus conceitos no dia a dia das pessoas comuns. É o que Jean-Baptiste nos mostra com a sua experiência: presenciar um suicídio e não tentar impedi-lo, o modificou drasticamente.

Camus nos leva a refletir junto com o narrador, dando-nos muitos tapas na cara, nos mostrando de forma simples e contundente como as nossas ações são hedonistas, como somos ridículos e pequenos e que provavelmente, a maioria de nós age dessa forma sem se importar com isso, como se fossemos apenas marionetes em um grande teatro do mundo e que posteriormente vamos todos ser perdoados e libertos das nossas más condutas e ações como em um passe de mágica. Mas para a teoria do absurdo não há perdão e clemencia. Há uma responsabilidade em aceitar que somos maus e agir conscientes disso. Ou seja: se faço doações para a caridade para me sentir bem comigo mesma, para mostrar aos outros o que estou fazendo e como sou “magnânima”, que eu faça isso consciente do que estou fazendo e não acreditando que sou realmente bondosa por doar aos pobres.

De acordo com a teoria do absurdo, a partir do momento em que aceitamos que agimos na maioria das vezes com segundas intenções e que vamos continuar fazendo isso, nos libertamos de uma culpa e de uma necessidade de perdão para nos tornarmos conscientes das nossas ações e também para escolher se as vamos praticar ou não. Jean-Baptiste é um clássico exemplo de uma pessoa cheia de defeitos, de imperfeições, mas que age dentro da lei. Ele não consegue se conectar com as outras pessoas, não se compadece com o seu sofrimento, tudo o que faz é para si próprio e para se sentir bem consigo mesmo. Não se importa com os sentimentos alheios, julga as pessoas com facilidade, utiliza a lei e a ordem para viver com tranquilidade. Porém, a partir do momento em que se depara com uma morte violenta, uma pessoa tirando a própria vida, ele não consegue parar de se questionar sobre a crueldade do mundo. Torna-se cada vez mais claro a ele que há algo de muito errado no mundo que leva as pessoas a cometerem desatinos como o suicídio.

Camus foi um grande pacifista e pagou um preço caro por isso. O fato de não se posicionar de forma reacionária ou extremista o levou ao isolamento. Seu pensamento e sua filosofia de vida são complexos demais para que todos compreendam. Ele foi um homem contrário às guerras, à violência e ao ódio. Em sua visão de mundo, as pessoas deveriam procurar se entender e viver em harmonia. Ele não acreditava na guerra ou em ataques terroristas como ações válidas para a conquista da liberdade. Para ele a educação e o conhecimento são as portas da liberdade e autorreflexão e a consciência de cada indivíduo são o bastante para que cada um possa se responsabilizar por seus atos e omissões.

A queda é um livro que nos faz pensar muito sobre muitas coisas da vida. Ele nos retira da nossa zona de conforto e nos esfrega na cara todos os subterfúgios que utilizamos no nosso cotidiano para driblar a nossa consciência do absurdo do mundo. É um livro reflexivo, com muitas frases de efeito, mas que pertencem a todo um contexto onde fazem sentido e estão bem colocadas. Tanto o título desta novela quanto o nome do protagonista são referências a passagens bíblicas que nos afastam da teoria do absurdo: a queda é uma referência à queda do paraíso e o sobrenome Clamence nos remete imediatamente à clemência de Deus, que perdoa todos os nossos pecados e que nos permite viver sempre em um estado de hipocrisia, de falsidade. A partir do momento em que não podemos mais contar com essa clemência, nos tornamos responsáveis por nossos atos e daí vem a queda e com ela também a liberdade de ação.

A queda é um livro inesgotável e que permite muitas interpretações e estudos. Seus temas são universais e atemporais, permitindo ao leitor uma imersão na narrativa e a possibilidade de se enxergar através do texto ou mesmo refletir sobre si e sobre o mundo através dele. Recomendo muito a leitura para aqueles que possuem a mente aberta para o conhecimento e para a quebra de velhos paradigmas.

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