crítica

A República dos Sonhos – Nélida Piñon

Durante os sete dias que antecedem a morte da matriarca Eulália, conhecemos a saga familiar de Madruga, seus filhos, sua família que ficou na Galícia e de Venâncio, melhor amigo do protagonista e que veio junto com ele da Espanha para construir “A República dos sonhos”. Mas não se engane, leitor, esse romance é muito mais que uma saga familiar: ele une o cotidiano de pessoas comuns, com as memórias mais queridas que um ser humano pode ter, passando pela história do Brasil do século XX, tratando aqui de aspectos políticos, literários e idiossincráticos do nosso povo, formado por tantas nacionalidades que aqui vieram em busca do sonho americano, ou nas palavras de Madruga, “fazer a América”.

Sendo essa uma obra monumental, cheia de temas abordados com muita profundidade, proponho nesta resenha uma análise do romance através de seus personagens, entremeada pelo título do livro, que é bastante emblemático e metafórico, contendo em si um significado imenso, assim como o próprio romance e que pode ser analisado de várias formas. Em um plano geral, o título A República dos sonhos, sintetiza a obra como um todo. Partindo do começo, a primeira personagem a que somos apresentados é Eulália, a matriarca da família. Na frase que abre o romance, ficamos sabendo que ela está morrendo e que a partir desse acontecimento, a história de sua família será contada de forma não-linear, mas bem diferente da forma como estamos acostumados a ler em livros de memórias ou em narrativas que vão e voltam no tempo. Nélida criou neste romance sua forma própria de contar histórias, mesclando a oralidade e a escrita, com uma metalinguagem muito bonita.

Eulália é uma personagem cheia de camadas que podem passar despercebidas por ser sempre vista pelos olhos dos outros, apresentada ao leitor pelas vozes do marido, do melhor amigo e da neta. Porém, se colocarmos uma lupa sob essa personagem – e tudo isso está no texto do romance – a enxergamos como uma mulher de seu tempo, calada, submissa, educada sob dogmas muito severos, extremamente religiosa, contida, discreta e que aparentemente está ali para servir. Eulália não apresenta grandes paixões além da fé cristã e do amor a seu pai e às memórias da Galícia, isso porque nunca ouvimos a sua voz. Se analisarmos o tempo do romance, é notório que a maioria das mulheres educadas na religião católica, algo muito comum no Brasil e na Espanha, no final do século XIX e início do século XX, elas são representadas por essa personagem tão complexa que é a Eulália. No início da saga, a autora entrega essa personagem para o leitor da seguinte forma:

Eulália cedia ao marido discretas porções de si mesma, ansiosa para recolher-se ao quarto, sempre seguida de Odete, a fiel escudeira. Ou à igreja, onde chegava a tempo de assistir à primeira missa, ainda em jejum, e da qual jamais se afastou um só dia” (PIÑON, 2021, pág. 31)

Ora, as mulheres como Eulália estão na maioria das vezes cercadas do marido, dos filhos, dos agregados, dos netos e sempre se antecipando às suas necessidades. No início do século XX, as mulheres não tinham opção de escolha a não ser o monastério ou o casamento. A primeira opção de Eulália seria o celibato e a religião, algo que ela cultivou mesmo após o casamento. Porém, como apresentada pela autora, ela despertava paixões, era uma mulher bonita e atraente, mesmo que não tivesse consciência disso. Madruga após se estabelecer no Brasil, foi até a Galícia e pediu a Dom Miguel a mão da filha em casamento, a qual lhe foi concedida. Dessa forma, a República dos sonhos de Eulália era a Galícia. Ao mesmo tempo em que vivia no Brasil, seus sentimentos e suas raízes estavam na Espanha. O Rio de Janeiro foi um lugar onde ela construiu a sua família, o seu lar, sempre teve tudo o que o dinheiro pode comprar, mas guardou para si a sua essência, os seus segredos e a sua intimidade, dando ao marido e aos filhos discretas porções de si mesma.

Observando nossas famílias e a vasta literatura brasileira, encontramos muitas mulheres como Eulália por aí. Elas eram o esteio da família, não compartilhavam os seus desejos próprios, mantinham-se reservadas, porém, ansiavam por um momento de solidão, onde poderiam dar vazão aos seus anseios e sonhos. A matriarca se identificava muito com Venâncio, amigo da família, pois ele dava voz aos seus pensamentos compartilhados e tinha opiniões mais próximas às dela que o marido. Sua relação com os filhos era distanciada, apesar de amá-los muito. Eulália tinha um carinho especial por Miguel, que herdou o nome do seu pai e que tinha também mais afinidades interpessoais com a mãe. Essa predileção da personagem por um dos filhos provocou nos outros sentimentos de hostilidade, ciúmes, inveja e a forte sensação de injustiça.

Muito diferente de sua esposa e representando toda uma geração de imigrantes e de pessoas que chegaram em uma terra estranha com o objetivo muito claro de enriquecer, Madruga é um dos personagens mais instigantes desse romance. Aos treze anos (sim, é isso mesmo) ele atravessou o Atlântico e veio para o Brasil em um navio inglês, tendo como companhia apenas Venâncio, um rapaz da sua região que estava fazendo a travessia também. Aportaram no Rio de Janeiro, seguiram para o centro e se hospedaram em uma pensão próxima à Praça Mauá. Madruga logo conseguiu um trabalho e teve ideias visionárias que o ajudaram a progredir. Além disso, muito observador, ele não teve dificuldades em perceber que no Brasil, as coisas funcionavam de um jeito diferente dos outros lugares. Por isso, precisava dominar a língua portuguesa e fazer dela um bom uso a fim de ser bem-sucedido em seus empreendimentos e não ser passado para trás. Ao longo do tempo, Madruga fez contatos importantes, construiu um império, abrindo mão para tanto de tempo com sua família, intimidade com sua esposa e a amizade dos filhos.

O sustentáculo de Madruga são as suas raízes galesas, sua esposa Eulália e os sonhos de Venâncio. Ao longo de todo o romance vamos observar o protagonista fazer referências muito sensíveis à sua família, principalmente ao seu avô Xan, o contador de histórias, que desejava com todas as suas forças manter vivas as tradições celtas e druidas. Pode-se dizer que ele é uma referência à Dom Quixote, obra que está muito presente em todo o livro, apresentando assim ao leitor um pouco da história desses povos que ajudaram a “fazer a América”. Madruga apesar de seus familiares que tentaram e não conseguiram ter o sonho americano, conquistou sua República dos sonhos com louvor. Entretanto, ao perceber sua vida chegando ao fim, ele passa a refletir sobre as suas escolhas, os seus atos e questiona sobre quem vai dar continuidade ao seu legado. Madruga queria o ouro, mas também queria as memórias do avô Xan. Queria sua família, o amor e a sua completude. Não sabendo lidar com os próprios sentimentos e emoções, ele transformou sua vida tão auspiciosa em uma verdadeira tragédia.

Madruga é complexo e extremamente humano. Suas atitudes são justificadas por uma época onde fugir da miséria e conquistar o ouro era tudo o que um homem poderia desejar. Apesar de ser visionário para os negócios, ele foi conservador em relação à sua família, olhando os filhos como moldes aos quais ele poderia dar forma. Esperava de todos eles a sua continuação, que todos fossem como ele, fortes, corajosos e que respeitassem as regras sociais impostas por aquela República dos sonhos chamada Brasil. Mesmo percebendo as suas hipocrisias, o jeito torto de fazer as coisas, os conchavos políticos que se travavam em salas fechadas, as opressões da ditadura, as eternas bajulações em troca de favores, para o patriarca era fundamental que todos seguissem essas regras comportamentais e vivessem de acordo com elas. Aos poucos, Madruga foi se distanciando daquele menino que tinha um brilho nos olhos quando atravessou o Atlântico e se tornou um homem fechado, sisudo e muito severo. A objetividade e a razão passaram a controlar suas atitudes, inclusive com a família, fazendo dele um estranho ou até mesmo um ser intocável, que precisa ser agradado para dar aos outros migalhas de seu afeto e segundos de sua atenção. Assim era Madruga sob o olhar de seus filhos.

Venâncio é uma espécie de paradoxo para Madruga. Mesmo tendo a oportunidade de ganhar dinheiro, trabalhar duro e “fazer a América”, ele escolhe estudar, cumprir suas tarefas, ser mediano e sonhador. O dinheiro e principalmente o poder não significam nada para o amigo, que gostava mesmo era de conhecer as pessoas, conversar com elas sem desejar nada em troca, tomar sua cervejinha na Lapa e frequentar a Biblioteca Nacional nas horas de folga, estudando Marx e tentando desvendar seus mistérios. Venâncio se torna o guardião temporário das memórias do avô Xan, lembrando a Madruga que o sonho não pode morrer, emite opiniões controversas nos tradicionais almoços de domingo e guarda dentro de si uma enorme solidão, uma dor que o leitor vai descobrir apenas no final dessa saga enorme.

Através de Venâncio, a autora aborda um dos temas de seu romance que é o franquismo e a Guerra Civil Espanhola. A partir do absurdo de tudo isso, os diários de Venâncio, confiados à Eulália, mostram a tragédia que um homem é capaz de provocar na vida de milhares de pessoas por exigir de uma população que a sua vontade seja cumprida, mesmo que ela não faça sentido nenhum para mais ninguém. A destruição de uma nação, o medo no olhar das pessoas, a miséria e a opressão provocada pelas torturas, levaram os espanhóis a um estado de loucura e de demência precoce, que foram acachapantes para qualquer um que compartilhasse essas experiências com os outros de alguma forma. O paralelismo entre a Guerra Civil Espanhola e a ditadura militar no Brasil mostram que em qualquer parte do mundo, enquanto houver alguém lutando pelo poder, haverá guerra. Essas guerras dizimam populações civis inteiras e são infundadas e inúteis.

Em uma entrevista ao escritor Raphael Montes, a autora diz que “se Napoleão tivesse lido Tolstói, Guerra e paz, ele não teria invadido a Rússia” e sim, Guerra e paz foi escrito após as Guerras Napoleônicas, mas o que ela quer dizer é que a literatura tem essa função de humanizar e de mostrar ao leitor o quanto são absurdas e ridículas certas atitudes que temos, mas que no momento da ação, não nos parece assim. Nessa mesma entrevista, Nélida falou sobre o seu apreço pelo cotidiano e pelas coisas simples da vida, que podem ser gozadas sem banalidade. E essa vida diária, de atividades simples é o que compõe A República dos sonhos. Até mesmo nas cenas onde há um entrave político, alguma decisão sendo tomada, ou os personagens estão em casa ouvindo o rádio ou na Lapa tomando um vinho quando vem uma notícia que mudaria os rumos do Brasil nos próximos anos. Essa abordagem de Nélida faz a obra monumental e muito complexa, em todos os sentidos. Não há personagens maniqueístas, nem rasos. Todos eles são muito vastos e bem desenvolvidos através de suas idiossincrasias e vicissitudes, que abarcam política e História entremeados ao dia a dia destes.

Odete por exemplo é uma mulher silenciada de todas as formas. Negra, sem saber as suas origens e portanto, nada sobre a sua ancestralidade, vive em função de Eulália, desde o dia em que entrou na casa de Madruga para trabalhar como empregada. Ela é capaz de antecipar os desejos de sua patroa e as duas se comunicam através do olhar. Há uma intimidade muito grande entre ambas e Eulália tem por ela um carinho genuíno. Entretanto, para os outros membros da família, ela não passa de um objeto na casa. Madruga lhe tem um certo respeito por saber o quanto ela cuida de sua esposa enquanto ele está conquistando A república dos sonhos. Já os filhos do casal, a veem como uma intrusa ou sentem até mesmo ciúmes da mãe com ela.

Por não ter família ou um passado concreto, não sobrariam muitas opções para Odete a não ser viver a vida alheia. É triste e até mesmo duro escrever isso, mas se observarmos as condições daquela época, infelizmente, não sobra a Odete muitas alternativas. Ouvindo as histórias do avô Xan e todas as memórias que a família de Madruga guarda da Espanha, ela cria para si um lugar, uma origem e familiares que podem compor o seu próprio lar. Através dessa personagem que é um ícone para tantas outras pessoas que foram sequestradas de seu país de origem e arrastadas para a construção do sonho alheio, Nélida Piñon mostra claramente ao leitor o que é uma vida sem memória, sem passado, sem um lugar para onde se pode voltar. Quando um indivíduo não tem essa memória, cabe a ele criar uma para si ou viver as dos outros, mostrando assim que, apesar dos grilhões, a mente de um ser humano é livre e sempre será até que a loucura o alcance.

A primeira filha do casal Madruga e Eulália é Esperança, uma moça cheia de vida e de instintos selvagens para a época. Feminista, insubmissa, indomável e nada conservadora, se opõe ao pai quando escolhe se relacionar com um homem casado e fica grávida de Breta. Para Madruga essa atitude é imperdoável e ele a coloca para fora de casa. Parece um clichê porque estamos exaustos de ver isso em novelas dos anos 1980/ 90, mas é algo muito trágico para uma família ter uma filha expulsa do lar por causa de algo tão idiota. A hipocrisia da vida está retratada aí: ao homem, tudo é permitido, enquanto para uma mulher, tudo lhe é proibido e principalmente, imoral. Estamos diante de uma das principais idiossincrasias do Brasil: um país arcaico, cheio de regrinhas comportamentais, que não podem ser burladas na frente dos outros. Porém, se foram praticadas longe dos olhos da sociedade, não tem problemas.

Esperança mesmo morta por dentro não se curva ao pai. Bate de frente com ele e segue sua vida. Mas, continua presa à sua família porque uma mulher solteira e mãe de uma filha “bastarda”, em meados da década de 1950, não tem oportunidades de trabalho, de estudo e menos ainda de se casar com alguém. As profissões para mulheres naquela época já eram escassas, para alguém que foi “desonrada” eram inexistentes mesmo. Dentro de sua hipocrisia, Madruga mandava cheques volumosos para a filha, que deveriam ser entregues pela mãe, que claro, não a abandonou. Sem muitas opções, Esperança usava o dinheiro para se sustentar. Suas contradições são bastante humanas e críveis, pois ela escolhe o nome da filha pensando em abrandar o coração do pai, fazendo uma referência à Bretanha, de onde vêm os celtas e os druidas e portanto, a base cultural da Galícia.

Madruga nunca perdoou a filha mais velha e nem por isso demonstrou um pouco mais de amor por Antônia, sua outra filha. Esta foi rejeitada desde o nascimento – ninguém na família via muita graça nessa pequena. Esperança já ocupava todos os lugares da casa e para Antônia não sobrou nada, nem mesmo a amizade da irmã. Parece outro clichê, porém, essa também é uma característica muito triste das famílias brasileiras. No início do século XX, com todas as convenções e idiossincrasias do povo brasileiro, pautadas na religião, as mulheres tinham filhos um atrás do outro, independentemente de sua classe social. Alguns morriam e outros sobreviviam. Assim, era bastante comum que um casal tivesse dez filhos e, sendo totalmente realistas, não há espaço e nem mesmo afeto para esse número enorme de filhos. Eles podem ser amados pelos pais, mas não terão afinidades com eles ou com os irmãos. É natural que o pai ou a mãe tenha mais afinidade com um filho que com o outro. Atualmente, temos recursos para lidar com essas situações, mas na década de 1950 não. Por isso, o casal Madruga e Eulália deixava os três últimos filhos à deriva. Não lhes dava atenção e demonstravam, até mesmo sem querer, que eles não eram os seus favoritos.

Antônia seguiu a sina de muitas mulheres brasileiras: casou-se com um homem de uma família quatrocentona extremamente tradicional e que estava ali apenas por causa da fortuna que um dia ela herdaria. Fica implícito que ela vivia um relacionamento abusivo e além de não ter o amor de seus pais, também não tinha o amor do marido e tampouco dos filhos. Ela apenas existia e apoiava o marido sob uma forte pressão deste para que ocupasse a cadeira de Madruga quando ele se aposentasse. Essa atitude a colocava em confronto direto com os irmãos Bento e Miguel. Bento ocupava o mesmo não-lugar de Antônia: recebeu esse nome porque o irmão mais velho que também se chamava Bento morreu no navio de volta da Espanha para o Brasil. Assim, passou a ser o espectro de um homem que nunca existiu. Lutava para chamar a atenção do pai, começou a trabalhar na empresa muito jovem, com medo de Miguel ocupar todos os espaços de lá e não sobrar nada para si e ao longo do tempo, se transformou em um homem amargo, cheio de medos, frustrações e de uma ambição sem medida.

Miguel, o segundo filho do casal e também o predileto de Eulália, tinha desde muito criança uma relação íntima com a irmã Esperança. Há indícios fortes de uma relação incestuosa não correspondida da parte de Miguel com a irmã, e a sua partida precoce de casa o abalou profundamente. Miguel cumpriu as regras e se casou com uma mulher com a qual nunca foi feliz. Teve filhos, mas eles não significavam nada para ele, tanto que nem são muito citados no romance. Suas obsessões eram a irmã mais velha e o dinheiro do pai e seu hobbie era frequentar casas de tolerância e trair a sua mulher com prostitutas ou com qualquer outra que quisesse. Na nossa República dos sonhos, muitos homens da geração de Miguel mantinham esses hábitos desagradáveis de ter a sua garçoniere, onde recebiam mulheres e mantinham em casa a esposa frustrada, que lhes servia apenas como uma figuração social. Esse estilo de vida vazia se alastrou pelos quatro cantos do Brasil, tornando-se quase uma regra social, difícil de ser quebrada e que destruiu a vida e os sonhos de muitas famílias, principalmente levando os filhos à revolta contra os seus genitores.

Assim é o filho mais novo do casal de protagonistas, Tobias. Temporão e totalmente oposto aos irmãos, também não foi muito querido pelos pais. No entanto, ele é afilhado de Venâncio, encontrando ali um esteio familiar. Tobias é revolucionário, anticapitalista, defende os fracos e oprimidos, está sempre ao lado do proletariado e deseja fortemente que haja justiça social. Se opõe veementemente ao pai e discorda de sua forma de viver e de se relacionar com as pessoas. Ele também não concorda com o posicionamento político do pai e por isso, nos capítulos referentes a Tobias e a Venâncio são feitas as maiores discussões políticas e sociais do Brasil República, da Era Vargas e do Brasil Democrático. Os dois fazem embates incríveis falando sobre esses temas e que nos ensinam muito sobre a nossa própria história, nos levando a reflexões importantes sobre A república dos sonhos, chamada Brasil.

Finalmente, Breta, a neta de Madruga e Eulália, aquela que foi rejeitada pelo avô quando nasceu, mas que por força das circunstâncias foi viver em sua casa no Leblon, é a redenção do patriarca. Desde que chegou ali para viver, ela se aproximou de Madruga e quebrou o gelo de seu coração. Tornou-se sua companheira, visitou a Galícia com ele, percorreu os caminhos do avô Xan, ouviu e guardou suas histórias, aprendeu a tomar vinho do Porto, se exilou na França por defender a democracia no Brasil após o Golpe de 1964 e por fim, tornou-se a depositária dos diários de Venâncio, onde havia muito da história de sua família e da Espanha, além de também receber com amor a caixa que sua avó fez para guardar as memórias de sua mãe Esperança. Breta passou a ser a guardiã das memórias dessa família e é também a nossa narradora metalinguística desse livro tão belo e tão grande. Breta tem além da função de nos contar essa história, a missão de reumanizar o avô Madruga e nos mostrar que ele é muito mais que um capitalista escroto.

A república dos sonhos é um romance construído de vários pequenos romances. Cada personagem contribui com o seu drama pessoal, que não faz parte apenas da sua conjuntura humana, mas também da história do nosso povo, representando muitos de nós. Para cada um deles há uma República dos sonhos e elas são diversas e diferentes. Esse é um romance monumental, que conta a saga de uma família de imigrantes, junto com a nossa história do século XX, entremeada no cotidiano desses personagens marcantes e inesquecíveis. Ao final da leitura, nos sentimos órfãos, porque é como se essas pessoas tivessem ido embora. Sim, elas ganham corpo à medida em que as vamos conhecendo aos poucos por essa narrativa tão singular e tão própria dessa autora que sabe-se lá porque é tão pouco conhecida no Brasil. Nélida foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras. Foi também a primeira mulher a receber diversos prêmios internacionais. É bastante reconhecida e traduzida no exterior, mas no seu país de origem, é negligenciada. Por isso, vamos espalhar a palavra dessa brasileira que nos deixou no finalzinho do ano passado e que merece todas as honras e méritos que recebeu em vida.

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