crítica

A sangue frio – Truman Capote

Obra-prima de um escritor controverso, que, tanto através do prefácio e do posfácio da edição da Companhia das Letras e do filme sobre o período em que Truman Capote escreveu o livro (Capote, MGM, 2006) mostram o quanto o autor foi um homem arrogante, sem o mínimo de humildade, prepotente ao ponto de afirmar que estava “criando um novo gênero literário” com essa obra de “ficção sem ficção”, A sangue frio (Cia das Letras, 2003) é um livro inesquecível, bem escrito e com um desenvolvimento de personagens incrível.

A função de um crítico literário não é julgar a vida de um escritor, mas sim, avaliar o seu texto, através da estética, da estilística e de outros termos abrangentes da Teoria Literária que transformam um escrito em uma obra-prima ou em algo mediano. Por isso, separando (na medida do possível) obra e escritor, A sangue frio é um livro perfeito. A premissa dessa obra surgiu quando Capote leu em um jornal uma matéria sobre um assassinato de um fazendeiro e de sua família de forma brutal na cidade de Holcomb no estado do Kansas. Munido de sua curiosidade jornalística e da oportunidade de escrever um artigo sobre o caso, acompanhado de sua melhor amiga Harper Lee, ele foi para a cidadezinha, entrevistou os moradores, o xerife e posteriormente os assassinos para ter um panorama geral do que aconteceu à Família Clutter.

Capote utilizava uma técnica de entrevistas que deixava os entrevistados muito à vontade para se abrirem com ele, pois este não gravava as conversas. Após muitos treinos de memorização de textos e discursos, ele tinha a capacidade de se lembrar de tudo o que lhe foi contado e assim escrever o seu texto. Devido a esse método de trabalho, a redação de Capote é muito fluida, ao mesmo tempo em que há toda uma narrativa lírica e um desenvolvimento de personagens fantástico, que envolvem o leitor desde o primeiro parágrafo. Ele começa descrevendo a cidade, suas idiossincrasias, sua geografia e posteriormente, as pessoas que ali viviam. Dessa forma, o leitor tem um panorama geral de como era a vida pacata de Holcomb antes dos assassinatos.

Entremeado a essa narrativa sobre as vítimas, há também a história trágica dos assassinos: de onde veem, as vicissitudes de suas trajetórias de vida, as assincrasias de seus pais e irmãos e a forma como chegaram até o fatídico dia 14 de novembro de 1959. Esta forma de contar um fato jornalístico, de escrever um romance de não-ficção é muito mais palatável ao leitor que a forma tradicional desse tipo de texto, que entremeia relatos dos entrevistados (geralmente sem edição ou com poucas edições), fotos e às vezes, sem comentários do jornalista ou apenas frases de contextualização ou de ligação entre um depoimento e outro. A estética de Capote é a forma de um romance de ficção, porém, tudo o que ele conta em A sangue frio, infelizmente, aconteceu de verdade.

Outro ponto muito significativo da obra de Truman é o desenvolvimento dos personagens que humanizou os dois assassinos, sem diminuir a gravidade do que fizeram e a culpa dos dois. Não apenas os assassinos tiveram a dignidade da pessoa humana preservados, como também todos os personagens reais envolvidos na tragédia. Capote os mostrou como seres humanos, passíveis a erros e acertos, discutiu questões incômodas tais como os abusos na infância, o alcoolismo, a miséria, as relações inter-raciais, que ainda são um enorme tabu nos Estados Unidos, o inconformismo das pessoas em relação às questões identitárias, à xenofobia e às desigualdades sociais que acompanham a população norte-americana desde os primórdios. Essas abordagens nos levam a uma reflexão muito ampla sobre o impacto de todos esses fatores na vida de pessoas que possuem algum tipo de complexo de inferioridade ou mesmo naquelas que desejam sair do lugar de onde vieram e não conseguem alcançar uma mobilidade social, conquistando assim o tão desejado “Sonho Americano”.

Conforme mencionado no início dessa resenha, o ideal aqui é separar o autor da obra. Mas, no caso de A sangue frio, algumas questões sobre a vida pessoal do escritor fazem parte dessa construção humana dos envolvidos. Não é segredo para ninguém que Capote se envolveu pessoalmente com um dos assassinos da Família Clutter, Perry Smith. Esse envolvimento do jornalista com o assassino veio de uma identificação de suas histórias de vida. Capote perdeu os pais para o álcool muito cedo e por isso foi morar com uma tia. Sofreu bastante durante esse período, sentindo-se solitário e incompreendido. Porém, sua raça e classe o favoreceram de alguma forma e assim, através do seu talento para a escrita e de sua tenacidade, ele se transformou em um escritor conhecido e bem-sucedido. Já Smith, mestiço, filho de uma índia cherokee com um homem branco pobre, terceiro em uma família de quatro irmãos, membro de uma família desestruturada pelo álcool, pela prostituição e pela miséria, fatalmente não deu certo na vida.

Lendo essa resenha, pode-se pensar que tudo aqui é muito romantizado e que Capote, devido à essa identificação com Smith, minimizou sua culpa e sua frieza em agir de forma tão brutal e homicida. Entretanto, não é o que temos em A sangue frio. O próprio título do livro já deixa claro que não há justificativas plausíveis para esse crime hediondo. Porém, todos nós somos pessoas, fazemos parte do mesmo material e somos passíveis a sermos um Perry Smith ou mesmo um Dick Hickok. Nem eu nem Capote estamos defendendo essas pessoas, mas, tentando entender o que as levou a cometer esses desatinos e a destruir a vida de quatro inocentes que segundo Smith, ao se referir ao patriarca da família Clutter diz: “ele era um homem gentil, mas forte e nem um pouco covarde”. Mesmo tendo mais afinidades com Smith, Hickok tem o mesmo espaço no livro de Capote, sendo humanizado e respeitado como um ser humano que errou. O autor conta a história dos dois de forma justa e tentando ser o mais imparcial possível, sem deixar de levantar questionamentos importantes.

Talvez uma das questões que mais aparece neste livro é a discussão sobre a pena de morte. Smith e Hickok foram condenados à forca, em um julgamento considerado imparcial, na cidade onde os assassinatos aconteceram. Os advogados indicados pelo tribunal alegaram que a comunidade de Holcomb era majoritariamente católica e contra a pena de morte. Dessa forma, seria mais fácil pleitear uma condenação de pena máxima de prisão, dando aos assassinos a oportunidade de rever seus conceitos, se arrepender e ser úteis para a comunidade de alguma forma. Neste ponto, além da discussão sobre o direito de um júri de condenar alguém à morte (discussão bem aprofundada e tocante), há também uma discussão sobre os princípios cristãos que muitas vezes se mostram controversos e ambíguos em relação à interpretação da Bíblia.

A sangue frio é um livro que nos faz pensar muito. É uma obra para ser revisitada e consultada quando estivermos procurando argumentos para embasar discussões ou diálogos sobre a vida, sobre a condição humana, sobre a desigualdade e a crueldade que alguém é capaz. É também um livro para quebrar paradigmas, para refletir e também agradecer a vida que temos, pois, talvez, apenas em um mundo paralelo um pai vai apontar uma arma para um filho por causa de um pedaço de bolo, como aconteceu a Smith durante a sua juventude. Também é um livro sobre empatia. Acompanhar a saga da Sra. Hickok, tentando entender qual a sua participação nos crimes de seu filho, ao mesmo tempo em que precisa enfrentar a morte do marido, a perda de suas terras e a dependência da bondade de familiares em acolhê-la durante um período tão insólito de sua vida é cruel demais. Por outro lado, é triste saber que quatro vidas foram ceifadas por causa $30 dólares. E ficamos com uma indagação: quanto vale a vida?

Capote, após passar seis anos escrevendo este livro, finalizou-o após o enforcamento de Smith e Hickok. Foi convidado pelos dois assassinos a assistir a esse horror, mas não conseguiu ver seu amigo Perry ser morto. Depois de algum tempo convivendo com os dois, investigando o crime, refazendo o trajeto deles da casa de Hickok até Holcomb, parando nos lugares que disseram ter ido, entrevistando seus familiares e as vítimas da cidade, Capote se modificou como ser humano. A história que desejava contar se tornou parte de sua vida e maior do que esperava. Teve problemas em seu relacionamento, se afastou dos amigos e começou a beber compulsivamente. Depois de A sangue frio, não conseguiu concluir nenhuma outra obra literária. Marcou a história da Literatura, mas pagou um preço alto por isso. Faleceu em 1984, vítima de complicações provocadas pelo alcoolismo.

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