crítica

A senhora de Wildfell Hall – Anne Brontë

É redundante afirmar que as Irmãs Brontë foram mulheres à frente de seu tempo e que revolucionaram a literatura vitoriana. Porém, das três irmãs, Anne se destaca para mim. Ela foi uma pessoa extremamente corajosa no sentido de expor as mazelas dos seres humanos em suas obras com o intuito de alertar a todos sobre as consequências de um comportamento inadequado e as reverberações das nossas ações nos semelhantes.

Em seu segundo e último livro (infelizmente), a autora retrata com maestria um relacionamento abusivo sofrido pela protagonista Hellen, que em momento algum é uma simples vítima, mas alguém que acreditou no amor e cedeu à paixão arrebatadora por um homem egoísta, egocêntrico, boêmio e voluntarioso. A construção desse relacionamento é totalmente verossímil e pasmem, muito próxima da nossa realidade atual, mostrando a atemporalidade e a universalidade do tema.

Hellen é uma moça jovem que vive com os tios. Seu pai ainda é vivo, mas não mora com ela. Como era o costume da época, seus tutores começam a apresenta-la aos pretendentes para um casamento, porém, ela não gosta de nenhum deles e se sente segura em suas escolhas. Por guardar valores éticos e morais muito fortes, a garota acredita que saberá escolher bem o marido e que não há necessidade de aceitar a primeira proposta de casamento que surgir. Até o momento em que conhece Arthur, filho de um amigo de seu tio e se apaixona por ele.

Aos poucos, seu noivo começa a se mostrar uma pessoa bastante desagradável, fazendo comentários sexistas, debochados e irônicos sobre a vida alheia, além de se entregar às noitadas com os amigos e a bebida. Seus tios tentam alertá-la quanto ao perigo de se casar com um homem da reputação de Arthur, mas como tantas outras jovens, Hellen acredita que poderá modifica-lo com o seu amor após o casamento. Ela crê que a vida vazia do rapaz, a falta de uma esposa e de uma família o leva a ter esse comportamento ruim, mas que com o passar do tempo ele terá uma regeneração.

O fato é que, como já sabemos, as esperanças de Hellen se esvaem em poucos dias de casada. Arthur se mostra uma pessoa intolerante, opressora, ciumenta, manipuladora e exige da esposa uma presença constante e que tudo seja feito de acordo com a sua vontade. Ele implica com tudo o que ela faz – desde as roupas que veste até a sua devoção a Deus, do qual ele sente ciúmes. Atualmente, uma moça nas condições de Hellen poderia simplesmente sair de casa e pedir o divórcio, mas não na Inglaterra do século XIX.

Assim, ela segue tentando de todas as formas mudar a essência do marido. Depois do nascimento do filho as coisas pioram e ela passa a ser ofendida e humilhada por seus visitantes, amigos do marido, que passam férias (meses) hospedados em sua casa. A falta de respeito dessas pessoas é tão grande que incomodam o leitor. Em muitos momentos, senti vontade de fazer como Joey em Friends e colocar o livro no congelador de tanta raiva que sentia dos convidados de Arthur e principalmente dele mesmo.

Isso me fez pensar em como esse tipo de comportamento é construído na nossa sociedade atual. Ontem mesmo, em uma live de Leitura Coletiva com a Mell Ferraz, ela disse o seguinte: “a sociedade são as pessoas com quem convivemos, por isso é difícil enfrenta-la, mesmo sabendo que está tudo errado”. A nossa necessidade de inclusão, de fazer parte de um grupo e de ser aceito é tão grande que muitas vezes nos leva a fazer coisas que talvez em outros contextos nós nunca faríamos. Estou me referindo à opressão que a sociedade nos impõe, muitas vezes de forma inconsciente, de consumir bebidas alcóolicas em ocasiões festivas para parecer descolados e legais.

Esse hábito secular começa na infância/ adolescência. Me lembro de quando eu estava no final do Ensino Fundamental 2 e que nas festinhas que frequentávamos, erámos incentivados por colegas mais velhos a beber escondido e posteriormente, no Ensino Médio, a pressão era para que usássemos drogas, ao menos para experimentar, caso contrário, erámos taxados de chatos e caxias. Na faculdade essa situação ganha contornos mais preocupantes porque nesse caso, somos maiores e teoricamente, podemos beber até cair e é esse o conceito de pessoa legal e divertida. Entretanto, todos aqueles que se submetem a essas investidas se transformam em chacotas para os colegas e atualmente, viram memes na internet e têm seus vexames explorados e compartilhados por aqueles que mais incentivaram a pessoa a beber até não poder mais.

Não precisamos ir muito longe para perceber as consequências dessas ações. O catálogo da Netflix está repleto de séries adolescentes que mostram exatamente essa realidade – como o álcool e as drogas entram na vida dos jovens. Algumas pessoas se libertam facilmente desses vícios. Isso dura apenas o primeiro ano da faculdade. Depois, seguem em frente e não fazem mais esses estragos. Porém, outros não conseguem se livrar principalmente da bebida e levam isso para a vida. Muitas vezes, quem paga por isso é a família: esposa/ marido e filhos. E a grande questão é que a própria sociedade que levou as pessoas ao vício, posteriormente, as exclui.

Voltando ao enredo de A Senhora de Wildfell Hall (Record, 2017), Anne Brontë expõe questões sociais muito importantes, denunciando o sexismo, quando em uma situação de separação, a mulher perde toda a sua reputação e tudo o que tem, enquanto o marido não sofre nenhum tipo de perda, principalmente em relação à sua moral. Infelizmente é outro padrão que se repete na nossa sociedade atual. Além do casamento como uma prisão e o silenciamento da mulher.

A narrativa, que foi de uma sacada genial de Anne, tem início com a chegada de Hellen com o seu filho a uma propriedade abandonada há muito tempo em uma cidadezinha do interior da Inglaterra. O narrador é o seu vizinho Gilbert, que assim como todos os habitantes do local, se intriga com os segredos da protagonista. Ele é até certo ponto imparcial, mas por se tratar de um narrador em primeira pessoa, existe um filtro pelo qual ele vai nos contar a história dessa mulher calada.

Em um segundo momento da narrativa, Gilbert recebe de Hellen o seu diário, onde ela relata o casamento abusivo com Arthur e os seus sentimentos em relação aos fatos. Ou seja, a voz de Hellen está oculta por trás de várias vozes e de muitos filtros, impedindo-a de se manifestar como gostaria. Esse recurso é muito importante para a análise literária da obra porque mostra como as mulheres não têm voz em muitas situações complexas. A situação colocada dessa forma conversa diretamente com o documentário jornalístico Praia dos Ossos, publicado pela Rádio Novelo em 2020, quando as jornalistas tentam ouvir uma gravação com a voz de Ângela Diniz, vítima de feminicídio em 1976. A fala da socialite está ofuscada por várias vozes de homens, que não nos permite entender o que ela estava tentando dizer.

Posto isto, fica muito claro que os abusos acontecem desde sempre. Infelizmente, por mais que tentemos mudar as coisas e as pessoas, continuamos os mesmos, cedemos às pressões sociais, pois precisamos conviver com as pessoas, fechamos os olhos para a vizinha que está em apuros e vemos nos jornais todos os dias cenas do cotidiano mundial, onde sempre alguma mulher foi morta por um homem ou teve a sua voz calada pela sociedade. Anne Brontë deixou um legado importantíssimo para reflexão e suas obras merecem e devem ser lidas sempre. Em cada releitura, descobrimos mais sobre as pessoas e sobre essa grande mulher que deixou o seu nome gravado na Literatura Mundial.

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