crítica

A terceira vida de Grange Copeland – Alice Walker

“Na minha família próxima também havia violência. Suas raízes pareciam embutidas na necessidade do meu pai de dominar minha mãe e seus filhos, e na resistência verbal e física dela (e nossa) contra tal dominação (…) Vendo o corpo da Sra. Walker na mesa esmaltada, percebi que, na verdade, ela poderia ser minha própria mãe e, talvez, com relação aos homens, também fosse um símbolo de todas as mulheres, não apenas incluindo a avó e a mãe do meu marido, tão diferentes das minhas quando possível, pensava eu, mas também de mim. É por isso que ela se chama Men no livro, em referência a la même, em francês, que significa a mesma”

O enredo de A terceira vida de Grange Copeland (José Olympio, 2019), gira em torno do ciclo da violência. Violência esta que se inicia com a opressão das classes marginalizadas, sendo estas as pessoas não-brancas. A situação de miséria, de pobreza extrema e de exploração de seres humanos na Geórgia dos anos de 1950 é o gatilho perfeito para o início desse ciclo que se perpetua a cada geração da família Copeland e aprisiona essas pessoas em uma espiral de ódio, rancor, vingança, inveja e tragédia.

Grange Copeland, personagem que dá título à obra é um senhor de idade, que sempre viveu como empregado nas fazendas do sul dos Estados Unidos. Como já é de conhecimento geral, os estados do sul norte-americano são famosos por seu tradicionalismo, patriarcalismo e racismo. Portanto, as condições de vida de Grange e sua família eram desumanas, degradantes e opressoras. Na época de sua primeira vida, ele era casado com Margaret, uma mulher submissa e cheia de ódio por uma vida sem sentido, e que em determinado momento, passa a se prostituir para colaborar com o sustento da família. Eles são pais de Brownsfield, um garoto que cresce em meio ao horror e à miséria, sendo vítima do abandono dos pais.

Grange nutre uma obsessão de que se conseguir mudar-se para o Norte, sua vida melhoraria consideravelmente. Por isso, ele abandona a esposa e o filho e segue o seu destino rumo à Nova York. Para conseguir essa proeza, ele mantém um relacionamento paralelo com Jose, uma mulher branca, proprietária de uma bodega e apaixonada por Grange. O que ele ainda não sabe é que ao abandonar sua família, criou-se um vazio enorme na vida do filho Brownsfield, que jamais será preenchido. E essa negligência terá consequências terríveis para a família Copeland.

Em Nova York, Grange percebe que as dificuldades continuariam as mesmas. Ele não tinha estudo, nem condições de conseguir um trabalho digno. Lá ele se transforma em mais um na multidão, mais um pedinte nas ruas, mais um homem negro oprimido e subjugado pela cor da sua pele e sem oportunidade nenhuma de progredir. Assim, ele retorna para a Geórgia e procura novamente Jose, convencendo-a a vender seu negócio e comprar uma fazenda para os dois viverem juntos e construírem um futuro.

Infelizmente, esse plano não dá muito certo pois, Grange, apesar de modificado pela vida e pelas experiências no Norte, não abandonou completamente seus velhos hábitos. Ele ainda sente um ódio muito grande por seus opressores e não perde a chance de descontar tudo isso na esposa. Além de continuar bebendo muito e jogando, perdendo muito dinheiro e passando noites fora de casa.

Enquanto isso, seu filho Brownsfield casou-se com Mem, uma moça instruída, independente e empoderada para a época. Ela é sobrinha de Jose e se sente muito isolada dos familiares por ser considerada inteligente demais para estar com eles. Ao aceitar se casar com Brownsfield, Mem abre mão de si mesma, colocando-se em uma situação de penúria, submissão e violência sem fim. Logo no início do casamento, ele se mostra um homem ruim, violento, agressivo, invejoso e sem nada de bom para oferecer. Mesmo sabendo que, por a esposa ter estudado, poderia conseguir trabalhos onde ganhariam mais dinheiro, ele a impede de aceitar as ofertas de trabalho e a obriga a viver na miséria total, em condições de abandono e em locais insalubres, apenas para se auto afirmar como “o homem da casa”, “aquele que veste as calças em casa”.

Mem, como bem colocou a escritora, representa todas as mulheres que vivem em situação de violência doméstica e não encontram um meio de se libertar desses grilhões. O que acompanhamos através da narrativa de Walker é a destruição e a desconstrução de uma mulher inteligente, capaz, bonita em um nada. Analisando essa construção de enredo de forma universal e atemporal, conclui-se que a opressão que começa na escravidão, lá no passado, termina dentro dos lares, sobre as mulheres. A sensação que temos ao ler essa obra, é que estamos em meados do século XIX, ainda nos tempos da escravidão. Mas, quando nos damos conta de que se trata da metade do século XX, esses acontecimentos se transformam em uma realidade muito próxima de nós.

O ciclo da violência precisa terminar e a terceira vida de Grange, é uma metáfora para a conscientização de que por mais opressões que a vida ou a sociedade nos imponha, nós temos o livre arbítrio e a liberdade de escolher quem somos, quem seremos e o que faremos com isso. Esta terceira fase da vida do protagonista, é o momento em que as consequências dos seus atos o atingem em cheio e ele se vê responsável por sua neta Ruth. Através dela, ele conhece o amor. E assim, consegue mensurar as suas escolhas de vida e analisar o seu comportamento passado e entender que durante toda a sua vida, ele permitiu que algum terceiro fosse responsável por seus atos e principalmente, por seus sentimentos. Ele só sabia odiar, pois foi odiado o tempo todo por todos ao seu redor.

Em contraponto a Grange, Mem é aquela que não permitiu que o seu espírito fosse morto. Ela perseverou no bem, no amor, na caridade. Até mesmo nos piores momentos, ela sabia que precisava se modificar externamente para que Brownsfield pudesse existir. Ela compreendia o seu sentimento de inferioridade e tentava a todo custo modifica-lo, fazer com que ele aceitasse a sua condição e se transformasse em um bom homem. Em alguns momentos, por amor a suas filhas, ela reagia, assim como a maioria esmagadora das mulheres que sofrem violência e têm filhos.

A escrita de Walker é fenomenal. Apesar de simples e fluida, ela coloca o leitor dentro da história e o faz visualizar e sentir o que os personagens estão passando. Não é um livro fácil, porque não é romantizado, trata-se de uma realidade nua e crua. Entretanto, é uma obra universal, atemporal e necessária. É possível ao leitor encontrar beleza em meio à desgraça, através de uma literatura que esfrega em nossa cara o poder das palavras, do léxico e da linguagem. É importante pensarmos em quantas pessoas como Mem, Grange, Brownsfield, Ruth, Jose, encontramos ao longo de nossa vida. E principalmente, como podemos encerrar o ciclo da violência. Ele precisa acabar em algum momento e isso só depende de nós.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *