opinião

A transformação de uma personagem através dos livros em “Vivendo nas entrelinhas”

Recentemente, acompanhamos o lançamento do primeiro livro da Juliana Cirqueira, que teve uma boa recepção diante aos leitores, recebendo muitos elogios e críticas positivas. Confesso que ultimamente, não tenho lido livros no estilo de Vivendo nas entrelinhas (Planeta, 2022), entretanto, por ter acompanhado de perto todo o processo de escrita da autora e por admirá-la como pessoa e como profissional, decidi que seria mais que justo ler o livro com atenção e me permitir adentrar em sua história, esvaziada das minhas opiniões pré-concebidas sobre a literatura contemporânea. O que aconteceu, foi que devorei esse romance e, fui muito surpreendida pela escrita da autora, pelo enredo e por esse texto fazer um diálogo tão profundo com a contemporaneidade, com a literatura e até mesmo com a teoria literária. E é sobre isso que venho conversar com vocês hoje: sobre a transformação de uma pessoa através dos livros.

O enredo básico de Vivendo nas entrelinhas, narrado em primeira pessoa pela professora de história Heloísa, é um casamento abusivo no qual ela está envolvida, mas que não consegue ver as atitudes do marido como abusos. A narrativa da personagem vai conduzindo o leitor de forma singela, porém muito profunda e logo nas primeiras páginas, conseguimos ter um quadro da situação dessa mulher, sentindo compaixão, empatia e muitas vezes, nos enxergando em algumas situações colocadas por ela. Um certo dia, a protagonista resolve pegar um livro na biblioteca da escola para tentar voltar a ler, como fazia em seus anos de solteira e, dentro desse livro encontra um panfleto de um Clube do Livro, que se reúne às quintas-feiras em um café de Vitória. Ela então resolve participar desse grupo e sua vida começa a mudar.

Com a finalidade de confirmar que a literatura tem o poder de transformar a vida de pessoas reais, dou voz a um dos maiores críticos literários de todos os tempos, Antônio Cândido:

“[a literatura] é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente (…) Isso significa que ela tem papel formador na personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade” (CÂNDIDO, 2017, pág. 177/178)

Essa fala de Cândido, resume o que acontece com a protagonista de Vivendo nas entrelinhas: a partir das leituras, das discussões no grupo e das vivências que surgem a partir desse encontro de Heloísa com os livros, fazem com que ela veja o mundo de outra forma, que ela problematize coisas que antes aceitava como normais, que ela abandone velhos hábitos e crie novos e principalmente, os livros promovem um encontro da personagem com ela mesma, se redescobrindo através da literatura:

Lembrei com satisfação que era isso que os livros faziam: permitiam que fôssemos nós mesmos e que interpretássemos as histórias cada um à sua própria maneira, conscientes de que estávamos observando de fora outras realidades, talvez diferentes da nossa, e que a nossa também era passível de interpretações” (CIRQUEIRA, 2022, pág. 115)

As conexões que autora fez entre o enredo de seu livro, as transformações da personagem e as obras lidas no Clube do Livro são sensacionais. Para aqueles que conhecem os textos referenciais, foi bem fácil concatenar o período da vida de Heloísa com a história de ficção que estava lendo naquele momento. A começar pelo livro que ela empresta na biblioteca e que contém o fôlder do Clube do Livro: A volta ao mundo em 80 dias de Jules Verne. Essa obra é importante para a protagonista porque seu sonho antes de se casar e sua principal motivação em estudar História na Universidade foi o desejo intrínseco que ela tinha em viajar o mundo e conhecer outros lugares, outras culturas e enriquecer a sua mente com essas experiências.

Em A volta ao mundo em 80 dias, Verne cria um desafio aceito por um homem de que ele passaria pelos cinco continentes em 80 dias. Durante essa viagem, o leitor conhece os lugares pelos quais os viajantes passam, além de vivenciar com eles uma aventura única, engraçada, divertida, leve e ao mesmo tempo, carregada de emoções, de boas ações e de aventuras. É um livro que entretém adultos e crianças e, em seu lançamento, as pessoas não tinham o hábito de viajar por diversão. As viagens eram bem difíceis, inacessíveis e feitas apenas em casos de necessidades ou a trabalho. Essa obra conversa diretamente com o enredo de Vivendo nas entrelinhas e com o momento em que Heloísa o empresta, pois, ela está tentando voltar ao hábito de leitura. Assim, escolheu um livro leve e que a recorda de um sonho antigo seu. Esse é o seu primeiro encontro consigo mesma:

Fiquei olhando para o livro e tentando imaginar quantas pessoas já o haviam lido desde a sua publicação em 1873, e como era o mundo na época de Júlio Verne. Ficava impressionada com a capacidade que os livros têm de atravessar o tempo e ir muito além do que o seu autor um dia imaginou. Parecia-me que, de alguma forma, o livro ganhava vida própria e seguia seu rumo, mudando as pessoas pelo caminho” (CIRQUEIRA, 2022, pág. 24)

Outro detalhe que chamou muito a minha atenção e aqui, tenho que ressaltar que é uma opinião minha e não tenho certeza se foi intencional ou não, mas interpretei como uma referência: o clube do livro chama-se Escarlate. Para quem não conhece a obra a qual estou fazendo um intertexto, trata-se de A letra escarlate do escritor norte-americano Nathaniel Hawthorne. Esse livro ficou muito famoso e serviu como base para muitas releituras contemporâneas por se tratar de temas muito importantes sobre o lugar da mulher na sociedade, patriarcalismo, machismo, preconceito e relacionamentos abusivos. Na trama, a protagonista de Hawthorne, Hester Pryne, durante uma longa ausência de seu marido (casamento arranjado pelos pais), tem um caso com um pastor que é descoberto pela comunidade. Como punição, ela precisa bordar a letra A, de adúltera, em todas as suas roupas e usá-las assim, para que todos saibam que ela cometeu um pecado mortal. Essa discussão vai longe, gerando muitos debates sobre a submissão da mulher e principalmente, sobre os julgamentos pelos quais passamos ao longo da vida por pessoas que sequer nos conhecem.

De acordo com a minha análise, há na prosa da autora muito sobre a Hester Pryne e o seu destino infeliz. No momento em que a protagonista Heloísa encontra o fôlder do Clube do Livro Escarlate, ela está passando por um momento de pequenos incômodos que sente em sua relação com o marido. Aparentemente ele é gentil, comunicativo e muito agradável, mas, por outro lado, impõe à esposa comportamentos padrões, impostos pela sociedade, aqui representada por seu grupo de amigos do escritório de advocacia. Muitas vezes, ao longo dos encontros do casal Guto e Heloísa com esses “amigos”, pequenas violências são apresentadas, alguns desconfortos e uma forte opressão em relação à superioridade que essas pessoas acreditam ter sobre as demais. Na opinião delas, a profissão de Heloísa não passa de uma brincadeira. Suas leituras, não passam de uma chatice e são incompreensíveis para pessoas que preferem passar o dia deslizando o dedo por uma tela a fim de vigiar a vida dos outros ou de viver em um estado de competitividade patológico que não tem fim e nem limites.

Todas as pessoas no meu círculo de amigos, ou de Guto, achariam isso uma perda de tempo. Ou, na melhor das hipóteses, algo impossível nos dias de hoje. A verdade é que muita gente acha o mesmo, que ler ficção é perda de tempo, ou que apenas livros técnicos ou de desenvolvimento pessoal importam. Tenho certeza de que, se eles soubessem o quanto a literatura tem a oferecer, não limitariam tanto o seu pensamento. Por mais bobo que possa parecer, eu estava me sentindo em um mundo novo, como se eu tivesse atravessado o guarda-roupas para Nárnia” (CIRQUEIRA, 2022, pág. 44)

As discussões sobre o lugar da mulher na sociedade e no casamento têm uma continuação ao longo da prosa, sendo abordados em vários episódios de violência doméstica compartilhados por membros do clube do livro, além dos estigmas diversos que são apresentados pela autora em relação à personagens secundários e até mesmo nas histórias da mãe e da avó da protagonista, que mostram a ela que os casamentos não são perfeitos. No primeiro encontro do Clube ao qual Heloísa comparece, os participantes estão discutindo o livro A cor púrpura de Alice Walker. O enredo dessa obra gira em torno de uma mulher negra, pobre e muito simples que é vendida em casamento pelo pai a um homem mais velho que a faz de escrava em sua casa. Além do desenvolvimento desse conflito, há também questões de sexualidade abordadas na obra. É um romance clássico e ousado para a sua época de publicação e que traz a mulher e as violências pelas quais ela passa para o centro das discussões da obra.

A existência desse livro no Clube já nos abre algumas chaves de leitura para o romance aqui analisado: Heloísa está se aproximando de uma colega de trabalho que é homossexual e esse fato incomoda de forma preconceituosa o seu marido Guto. Mais uma vez, há uma forte discussão sobre a liberdade da mulher em fazer escolhas e em ser ela mesma em uma sociedade patriarcal que ignora ou esconde tudo o que foge às regras impostas por uma minoria dominante. Apesar de não ter lido A cor púrpura, Heloísa fica encantada pelas discussões e pelos trechos que os colegas leem no encontro, mostrando que o livro tem muito a dizer e a nos ensinar.

A primeira leitura que a protagonista faz para o Clube é Jane Eyre de Charlote Brontë. Creio que a maior parte dos leitores de clássicos conhece essa obra, mas, trata-se de um romance de formação, onde a protagonista vitoriana Jane, através de seus esforços, consegue tomar as rédeas da própria vida, fazer suas escolhas e vencer os obstáculos colocados em seu caminho pelo destino. É uma jornada muito bonita e heroica, o que traz vigor e coragem à jovem Heloísa para conquistar o seu lugar no mundo e buscar as suas conquistas pessoais. Em um texto da Professora Sandra Vasconcelos sobre Literatura Vitoriana, ela diz que esses romances, principalmente o bildungsroman, têm a capacidade de trazer esperança para o leitor, fazendo que acreditemos que se David Copperfield ou Jane Eyre conseguiram vencer as dificuldades da vida, nós também podemos. E essa coragem da protagonista vitoriana é transferida para Heloísa da maneira como coloca a Professora Sandra e também Antônio Cândido:

Quer percebamos claramente ou não, o caráter da coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e, em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo” (CÂNDIDO, 2017, pág. 179)

Outro livro que certamente fez um intertexto muito forte com Heloísa no texto da Juliana Cirqueira foi A hora da estrela de Clarice Lispector. Esse foi o livro que a protagonista leu durante a sua viagem à casa de sua família. Foi um momento de muitas descobertas e de revelações importantes para ela. É muito simbólico essa escolha de leitura por parte da autora porque a obra de Clarice fala justamente de uma mulher que não tem querências, uma mulher apagada, que ninguém vê, que é oprimida pelo noivo e que tenta de todas as formas aparecer, ser querida e respeitada ao menos por esse homem, mas não consegue. Ela passa pela vida como se não fosse nada, sem chamar a atenção de ninguém. Esses sentimentos de Macabéia, personagem criada por Clarice vão de encontro com uma Heloísa mais madura e mais segura de si e que não quer repetir essa sina da mulher oprimida. Dessa forma, sua decisão mais difícil da vida está começando a tomar forma.

De acordo com Cândido, os textos literários atuam em nosso cérebro de acordo com a sua organização linguística:

A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado. Este é o primeiro nível humanizador, ao contrário do que geralmente se pensa. A organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo (…) Quando recebemos o impacto de uma produção literária, oral ou escrita, ele é devido à fusão inextrincável da mensagem com a sua organização” (CÂNDIDO, 2017, pág. 179/180)

Dessa forma, os livros escolhidos pela autora nessa primeira fase da personagem são muito significativos porque aos poucos, eles foram modificando a forma como a protagonista enxergava o mundo e assim ela pode repensar a sua vida atual e relembrar o seu verdadeiro eu que estava oprimido por um casamento infeliz. Muitas vezes, não nos damos conta de que as coisas não estão bem. A autora demonstra esse sentimento de inadequação aos ambientes e às pessoas de forma brilhante, muito crível e que faz com que o leitor se reconheça nesses lugares:

Pensando sobre isso mais tarde, percebi o tanto que me incomodara naquele dia. Não foi só ter ido à festa quando eu não queria, ou a exposição de algo que eu gostaria de ter compartilhado somente com ele; o que mais me incomodou foi a sensação de ter a minha felicidade exposta apenas porque ele sabia que eu não queria estar ali e precisava provar para todos que eu estava feliz e exatamente onde deveria estar” (CIRQUEIRA, 2022, pág. 71)

Para finalizar essa análise da transformação de uma personagem através dos livros, talvez, o mais importante de todos eles seja O retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde. Esse livro fala sobre um homem vaidoso que deseja permanecer jovem para sempre. Ele tem pavor do envelhecimento e para conseguir a juventude eterna, faz um pacto faústico. Apesar do enredo enxuto que coloquei aqui, esse livro fala sobre muitas outras coisas. A começar sobre a vaidade, que faz um diálogo pontual com a nossa exposição nas redes sociais à procura de likes e principalmente, de aprovação. Wilde desenvolve esse tema com maestria em seu romance e nos brinda com trechos memoráveis e reflexivos sobre as nossas escolhas:

O objetivo da vida é o desenvolvimento próprio, a total percepção da própria natureza, é para isso que cada um de nós vem ao mundo. Hoje em dia as pessoas têm medo de si próprias. Esqueceram o maior de todos os deveres, o dever para consigo mesmas” (WILDE – Vivendo nas entrelinhas, 2022, pág. 98)

Nada mais atual que esse trecho. Até parece que foi escrito em 2022 mesmo. Mas, o fato é que O retrato de Dorian Gray traz muitas reflexões para Heloísa, sobre a importância que damos às coisas e às pessoas, o valor de cada uma delas e o que queremos para a nossa vida, o que vale a nossa existência. Além de trazer uma discussão sobre sexualidade, a obra de Wilde é daquelas transformadoras e que ficam ecoando em nós após a leitura. Ou seja, é uma obra humanizadora e que assim como muitas outras é vista por Cândido como necessidade universal:

Primeiro, verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza” (CÂNDIDO, 2017, pág. 188)

Houve uma identificação muito forte de minha parte com a protagonista criada pela autora no sentido da minha própria transformação através dos livros. Hoje, me vejo uma pessoa muito mais crítica, muito mais humana, tolerante com os erros alheios e com os meus próprios erros, me sinto mais próxima das pessoas por saber que partilhamos dos mesmos sentimentos, anseios, frustrações e dores, mesmo estando cada um de nós em um tempo e em um espaço diferentes e também vejo que a minha vontade de aprender e de saber mais sobre a vida, sobre as pessoas e sobre a humanidade é muito maior que já foi um dia. Deixei de ser uma pessoa bitolada e maniqueísta por causa dos livros e, um pouco desse horizonte mais amplo de leituras, fora de uma bolha de best-sellers, devo à Ju Cirqueira, autora desse livro tão bonito, por causa de seus vídeos no YouTube, que tanto me inspiraram e me instigaram a ler mais e a buscar mais conhecimento para a minha vida. Por isso, só tenho a agradecer e fazer a minha parte em espalhar a palavra da literatura, dos livros e de Vivendo nas entrelinhas. Deixo vocês com um dos meus trechos favoritos desse romance transformador:

Quando Guto e eu nos conhecemos, em uma festa totalmente ao acaso, éramos outras pessoas. Acho que essa é uma sensação comum após alguns anos. A de não ser mais o mesmo. Era como se estivéssemos girando velozes em um daqueles brinquedos de parque de diversões e, em um piscar de olhos, tudo em nosso redor se transformasse em outra coisa, levando consigo parte de nós e deixando para trás algo que passava a nos pertencer também. Era preciso girar de olhos fechados para não cair, mas ao mesmo tempo abri-los era o que nos deixava mais tontos” (CIRQUEIRA, 2022, pág. 93)

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