crítica

A vagabunda – Colette

Gabrielle Colette foi uma das maiores escritoras da França, escreveu mais de trinta livros, dentre romances, novelas, ensaios, crítica literária e peças de teatro. Atualmente, quase não ouvimos referências à autora e no Brasil, lamentavelmente, temos apenas três livros seus traduzidos, disponíveis para compra. A pergunta que não quer calar é: qual o motivo do apagamento de uma escritora tão qualificada? Por que não a lemos ou falamos sobre ela?

Seus primeiros livros, que fizeram um enorme sucesso no início do século XX, tornando-se um fenômeno em Paris, dando origem a suvenires e vários produtos agregados à Claudine, a personagem título de uma tetralogia semiautobiográfica publicada sob o pseudônimo de seu marido, Willy, que gerou muitos rendimentos ao casal, não é publicada no Brasil, não temos uma tradução para ler esses romances que me deixaram bastante curiosa. Esse silenciamento da voz de Colette talvez tenha origem em sua história longa e controversa de vida.

A escritora nasceu em uma cidade campestre da França, sendo o seu amor à natureza algo intrínseco em sua personalidade. Seu pai, um comerciante abastado, se endividou e perdeu grande parte de seu patrimônio. Ainda muito jovem, Gabrielle se casou com Henry Gauthier-Villars, mais conhecido como Willy, um homem famoso no meio cultural por publicar livros escritos por outras pessoas sob esse pseudônimo. Henry não tinha talento para lidar com o dinheiro e era capaz de perder grandes somas esbanjando com luxos e confortos supérfluos. Ao se mudar para Paris, casada com Henry, Colette conheceu muitas pessoas influentes dos principais salões parisienses e também relacionadas ao meio literário.

Não demorou muito para que o seu marido percebesse o talento da esposa para a escrita e assim surgiu a famosa tetralogia de Claudine, textos semiautobiográficos, que renderam uma fortuna ao casal. Aos poucos Gabrielle foi se autodescobrindo, a partir tanto da escrita quanto dos fatos que viveu junto ao marido: traições, hipocrisias, falsidade, jogos de interesse, perdas financeiras e tantos outros dissabores que vivenciou ao lado de Henry. Ao frequentar os grandes salões, passou a se relacionar sexualmente com mulheres, algo aprovado por seu marido. Porém, apesar de todos saberem o que as pessoas faziam e não haver segredos na alta sociedade parisiense, manter as aparências sempre foi fundamental. Lendo Em busca do tempo perdido, essa característica da sociedade francesa fica muito evidente: todos sabem os podres de todos, mas fingem não saber. A sociedade é construída sobre uma grande falácia de uma ideologia falida, da moral e dos bons costumes.

Colette não se enquadrava nessas hipocrisias. Desejava ser livre, viver sua vida como bem quisesse, sem ter de fingir costume onde quer que fosse. Insatisfeita com o rumo que a vida estava tomando, resolveu trabalhar como atriz e dançarina. A princípio, Henry foi contra, mas depois achou que poderia ganhar dinheiro com essa nova fase da esposa. O casal Gauthier-Villars perdeu tudo o que tinham ao investirem na estreia de Colette no Moulin Rouge, que beijou sua amante, a Marquesa de Belbeuf em cena, sendo vaiada, apedrejada e tendo seus espetáculos todos cancelados. Em meio a esses acontecimentos, seu marido Henry desesperado por dinheiro, vendeu os direitos autorais da tetralogia de Claudine para um editor, escondendo o fato da esposa. Cansada de tanta exploração, mentiras, traições e humilhações, Gabrielle se divorciou e saiu em turnê, apresentando o espetáculo onde a aceitavam. Esse período de sua vida foi contado da mesma forma que na tetralogia de Claudine, em A vagabunda, mais um romance semiautobiográfico da autora.

O romance tem início em uma noite onde a protagonista René está se arrumando para iniciar sua apresentação no teatro. Ela começa a falar sobre a precariedade de seu figurino, a falta de dinheiro e principalmente sobre a solidão. Para esse romance, ela criou um casal que também se separou, onde o marido explorava a esposa, tanto em sua imagem, quanto em seu talento literário e que, depois de ser traída por ele, René o abandona e segue o seu caminho, ganhando o próprio dinheiro através do mesmo ofício que Colette tinha no momento: apresentação no teatro como atriz e dançarina.

Ao compararmos a trajetória da escritora com esse romance, percebemos que as vivências são as mesmas, ou seja, o funcionamento de uma turnê, os contratos, os preconceitos sofridos, as humilhações e tantas outras particularidades desse tipo de trabalho e principalmente na época em que ela faz a ambientação de seu romance, porém, há diferenças bem grandes de sua realidade. O grande propósito desse livro é discutir o lugar da mulher na sociedade e no casamento, aproveitando-se a escritora de suas próprias vivências, mas que ao mesmo tempo retrata todas as mulheres e se mantém muito atual.

René alega que o seu casamento foi não apenas um ato de exploração de seu talento, como também uma lista infinita de afazeres domésticos, que vão desde a ordem da casa até a vistoria das gravatas, dos dentes, das orelhas e das unhas do marido. Cabe a uma esposa o cuidado, na maioria das vezes não por afeto, mas por submissão de gênero, de zelar pelo conforto do marido, lhe dar filhos e até mesmo receber e vigiar suas amantes enquanto ele se encontra com outras mulheres. Infelizmente esse tipo de comportamento é muito comum, menos tolerado atualmente que na época em que Colette publicou o seu livro. Porém, muitas situações continuam iguais e ainda estamos longe de uma mudança radical.

No filme biográfico sobre Colette disponível no Prime Video, vemos que Henry sempre se desculpava por seus casos ou por qualquer outra coisa ruim que fizesse dizendo “os homens são assim mesmo, nós fazemos essas coisas”. Essas desculpas singelas e esfarrapadas convenciam algumas das nossas ancestrais, que se limitavam a permanecer no seu lugar e aceitar de bom grado que o marido voltasse para casa. Este não era o caso de Gabrielle e nem de sua protagonista René. Entretanto, abandonar uma relação desigual, abusiva é um passo muito difícil de se dar. É preciso que haja muita certeza, muita força de vontade, uma quantidade enorme de dignidade e principalmente, uma rede de apoio. Sem ela, muitas mulheres se submetem à infelicidade e à exploração de seus corpos e mentes por um abusador, sem terem para onde ir ou por receberem tantas críticas e pedradas quando tomam uma decisão inconveniente para a sociedade.

Um dos trechos do romance A vagabunda que mais me chamou a atenção foi quando a protagonista relata que ao reclamar em casa sobre as traições do marido e as explorações de seu trabalho intelectual, ouviu de seus familiares “ora minha filha, o que mais você quer? Ele deixa faltar as coisas em casa? Ele te deixou por outra? Então contente-se com isso, os homens são assim mesmo e cabe a nós agradecer por sermos casadas e termos tudo do bom e do melhor”. A voz narradora diz: “agradecer? O que eu quero mais? Um pouco de respeito talvez, ser feliz. Ou tudo isso será muito para uma mulher? ”.

Colette utiliza a sua ferramenta principal que é a escrita para mostrar ao mundo como funciona a alta sociedade francesa e suas máscaras sociais. Por sua ousadia, aliada ao seu talento, ela foi fortemente rechaçada pela sociedade, ao passo em que a elite de intelectuais e literatos da época reconheciam e apreciavam a sua capacidade de escrita e os seus textos. Ela seguiu publicando prosas até o fim da vida, mas somente foi reconhecida como uma das principais escritoras francesas do século XX após o avanço dos movimentos feministas que deram voz a tantas Colettes espalhadas pelo mundo. Afinal, qual o seu problema? Não aceitar a vida de mentiras em que foi colocada? Ter desejos sexuais? Ter vontade de viver livremente, viajar, conhecer lugares e pessoas e experimentar a vida? Onde está o crime nessas atitudes? Se pensarmos um pouco, os homens fazem isso desde que o mundo é mundo e são sempre perdoados e até mesmo glorificados por serem devassos e “vida louca”.

O título do romance de Colette, A vagabunda, em seu idioma original, não tem essa conotação pejorativa que tem aqui no Brasil. O significado desse termo le vagabound, é simplesmente a andante, aquela que caminha livremente pelas ruas. Essa foi Colette e seu alter ego René. Pessoas livres, que mesmo passando por dificuldades, não abriram mão de ganharem o seu próprio dinheiro com aquilo que sabem fazer, com o seu trabalho artístico e literário. Acho o máximo que René não é uma mulher de hábitos simples, ela gosta do luxo, de frequentar os cafés, de ir a concertos e óperas, de comer boa comida e de se vestir bem. Ela não abre mão desses luxos, mas os tem quando pode pagar por eles com o seu próprio esforço e não o aceitando de outras pessoas que claro, lhe exigirão algo em troca. Pode-se dizer que A vagabunda é um livro sobre liberdade, sobre ser mulher e ser livre, mesmo que para tanto seja preciso estar só.

Ano que vem, 2024, a morte de Colette completa 70 anos e isso significa que sua obra entra em domínio público. Espero que as editoras brasileiras se atentem em publicar mais romances da autora, principalmente a famosa tetralogia de Claudine, que me deixou muito curiosa devido ao frisson que causou na Paris dos anos 1900. Por enquanto, temos essa obra comentada neste texto, A vagabunda, publicada pela Imã Editorial e disponível em áudiolivro no aplicativo Storytell. Outra edição disponível é do romance Cherry, publicada pelo Grupo Editorial Record, em uma edição bem antiga. Esse romance é bastante conhecido e foi adaptado para o cinema. Há também A ingênua libertina, publicado pela editora Nova Fronteira, disponível nas versões física e também em e-book. Livro que não demorarei para ler. Colette se tornou um alvo de interesse literário para mim, principalmente por seu apagamento inexplicável diante da sua importância na literatura mundial.

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