Domingo, 16 de maio de 2021. Um dia comum para muitos de nós, para outros, um dia de descanso e para alguns o dia de enterrar seus mortos. Logo cedo lemos a notícia da morte da atriz Eva Wilma, vítima de câncer. Logo após o café da manhã, recebemos o comunicado do falecimento do Prefeito de São Paulo, Bruno Covas, aos 41 anos, também vítima de câncer. Mal terminamos o almoço e somos bombardeados com uma notinha pequena, mas muito significativa de que Thiago, um fotógrafo de Niterói foi morto a tiros por traficantes após pedir um pouco de silêncio para sua filha dormir. E não, o dia não acabou. À noite, ficamos sabendo que MC Kevin, um jovem músico de 23 anos caiu do 11º andar de um hotel no Rio de Janeiro e faleceu após ser levado em estado grave para o hospital.
Já é de conhecimento público que a desgraça vende e vende bem. Ela é lucrativa, chama a atenção e desperta a curiosidade das pessoas. Mas, o que geralmente não questionamos é porquê esse tipo de noticiário nos atrai tanto. Pode ser pelo fato de que precisamos tentar entender o motivo desse tipo de barbárie, ou para tentar evitar que determinadas coisas aconteçam conosco (como se fosse possível) ou mesmo porque, como disse o escritor Fernando Scheller em seu livro “Gostaria que você estivesse aqui”, “nem todos nós somos marcados pela tragédia, não somos todos que passaremos por isso”. Essa questão do destino pode ser o mote para que nós procuremos pelas tragédias e queiramos saber sobre elas e como as pessoas lidam com o mal.
Outra possibilidade é o fato de estarmos tão acostumados à violência de todas as formas, que já não nos assustamos mais com ela. Isso é muito preocupante porque à medida em que nos acostumamos com algo que deveria nos chocar, passamos a normatizar comportamentos como o das pessoas (se é que podemos chama-las assim) que deram risadas ou escreveram “bem feito” nos comentários sobre a morte do Prefeito Bruno Covas. A pessoa que faz isso, consciente ou inconscientemente, está ajudando a apertar o gatilho da arma que matou o fotógrafo Thiago. Enquanto outras se sentem confortáveis em apenas “ser silenciosas, orgulhosas de não ter vontade de gritar e nada para dizer”. A omissão também ajuda a disparar os tiros que matam e ferem.
Nós precisamos começar a conectar os fatos isolados em um todo maior para poder mudar nossas atitudes e pelo menos tentar agir como pessoas do nosso tempo. Quando percebemos duas pessoas famosas morrendo de câncer no mesmo dia, enquanto pelo menos uma pessoa na família de cada um de nós também está travando uma batalha contra essa doença, é um sinal de que algo está errado. Mas, no dia a dia, vamos normatizando mortes por câncer. Mas o que causa esse mal? O destino? Deus? Não, o câncer é uma das consequências da vida moderna. A cada árvore derrubada, a cada indústria construída, a cada progresso tecnológico, milhões de pessoas perdem a vida para os tumores malignos. É um simples caso de causa e consequência, mas que está passando dos limites e que deveria ser visto com um pouco mais de cuidado. Afinal, quem paga essa conta geralmente são as pessoas menos privilegiadas, que não têm muitas opções. Apesar de doenças não escolherem raça, gênero ou classe social, a mídia vai notificar apenas os casos das figuras públicas, então, não temos noção do número de diagnósticos e mortos nas periferias das grandes cidades do Brasil e do mundo. Mas, se formos atrás, ficaremos estarrecidos com esses números.
Outra forte consequência do mundo moderno é a depressão, a ansiedade e os casos de suicídio. Após investigações sobre a morte de MC Kevin, a polícia levantou a hipótese de suicídio. E então, questionamos os motivos que levam um rapaz jovem, famoso, rico, recém-casado a se matar. Não sabemos, mas podemos imaginar que a sua “vida perfeita” que imaginamos pode não ser nada do que achamos ser e sim muito mais complicada do que parece. Os motivos podem ser muitos e diversos, mas o ato de tirar a própria vida, significa que a pessoa quer fazer a dor parar. E que dor é essa? As dores do mundo, talvez? A dificuldade de enfrentamento? O medo de viver em um mundo que vemos se deteriorar a cada instante? Precisamos refletir sobre isso porque a cada ano vemos mais jovens atentando contra a própria vida e isso simplesmente não é normal.
Mas, dessas notícias do fatídico dia 16 de maio de 2021, a que mais me incomoda é o assassinato de Thiago. Esse fato coincidiu com a minha leitura atual do livro “Longo e claro rio”, da escritora norte-americana Liz Moore, onde ela aborda a vida dos viciados em opióides na cidade da Filadélfia. Mas, o que os dois acontecimentos têm em comum? Para mim tudo! Quem são os traficantes? E porque eles matam? Na verdade, todos os eventos desse dia estão conectados com o tema do livro de Moore. O tráfico de drogas é mantido porque arrecada muito dinheiro e muitas pessoas intocáveis fazem parte dele. Neste caso, aqueles que mataram Thiago, são apenas a ponta do iceberg que ninguém quer que seja descoberto.
Então, pessoas, independente de fazerem parte do tráfico de drogas ou não, se sentem no direito de dar festas (no meio de uma pandemia, porque aqui ainda não acabou a crise do covid) e não aceitam ser incomodadas em seu momento de lazer, mesmo que estejam atrapalhando os outros ou invadindo o direito alheio. Quando perdemos a capacidade de conversar, utilizamos da violência física para resolver nossos problemas e assim, morreu um jovem pai de família, com um tiro porque pediu silêncio. O pior de tudo isso é que, além de deixar esposa e filha, esse homem não terá justiça. Seus assassinos continuarão lá, vivendo suas vidas vazias e contribuindo para que mais pessoas entrem para o mundo das drogas.
O tráfico de drogas movimenta uma quantia exorbitante de dinheiro no país. Muitos dos dependentes químicos são vítimas da violência que chamei no título de “violência travestida”, uma paráfrase de uma música dos anos 1980 que sempre me chamou a atenção. Essa violência é aquela que normatizamos, daquele pai que espanca o filho por nada, mas diz que o está educando. Da mãe que vende a filha dizendo querer o seu bem, do chefe que grita e humilha seus empregados, fazendo com que estes levem essa violência para casa em forma de uma garrafa de bebidas ou de um remédio para dormir. A partir desse contexto, todos nós tentamos sobreviver de alguma maneira. Seja nos isolando em nossos hobbies ou afundando nas drogas, que podem começar com as lícitas e terminar com as proibidas.
O vício em drogas é algo tão intrincado na nossa sociedade que temos a capacidade de fechar os olhos para esse mal e colocar todos os usuários em uma mesma caixinha. O problema é que muitas pessoas que vivem nas ruas, seja da Filadélfia ou de São Paulo, estão ali porque não encontraram espaço em outros lugares. Pode ser que a filha do Thiago que queria dormir e teve sua vida interrompida pelos traficantes seja futuramente uma dessas pessoas largadas nas ruas do Rio de Janeiro buscando mais uma dose. Pode ser que não (e eu espero que não), mas o fato é que ela foi vítima da violência e sua vida nunca mais será a mesma.
Outra forma de ir parar nas ruas é o vício que começa nas farmácias. Antigamente, as famílias prendiam seus problemas em hospícios. Como estes foram proibidos, agora, elas aprisionam esses problemas em cápsulas, vendidas nas farmácias. Elas fazem dormir, ficar calado, manter uma aparência de normalidade… Mas qual o efeito disso no longo prazo? O vício. E quando ele sai do limite aceitável, só resta um lugar para conseguir mantê-lo: com os traficantes.
Muitas pessoas se solidarizaram com a morte do ator Paulo Gustavo na semana passada, vítima da covid, e com a morte de MC Kevin neste domingo, mas elas não conseguem perceber onde podem ajudar a impedir novas mortes neste sentido. Continuam vivendo suas vidas, oferecendo suas festas, frequentando bares lotados de pessoas, quando apenas 8% da população brasileira foi vacinada, rindo daqueles que são diferentes em qualquer sentido, excluindo aqueles que não se encaixam no mundo perfeito criado em suas cabeças. Elas não querem admitir sua culpa na proliferação desenfreada do vírus, demonstrando um enorme desprezo pela vida humana. Não é porque essas pessoas estão longe de nós que não somos corresponsáveis pelo que lhes aconteceu. Enquanto não tivermos consciência coletiva, não sairemos do lugar.
Então sim, nossa sociedade ajudou a apertar o gatilho da arma que matou Thiago. Ela também é responsável por sua filha e sua esposa. Nós ajudamos a apertar os gatilhos da chacina da Candelária, da chacina do Carandiru e vamos continuar a ajudar a apertar esses e vários outros gatilhos enquanto não aprendermos a viver em sociedade. Respeitar os direitos dos outros, parar de rir quando alguém que não gostamos morre, deixar de impor a nossa vontade aos outros. Esses comportamentos isolados, que parecem não se conectar são as armas da violência travestida que permeia a nossa existência. Para que ela deixe de existir, precisamos renunciar a muitas cosias que fazemos habitualmente e que consideramos normais por serem praticadas pela maioria. É fundamental lembrarmos que as pessoas nunca saem do mesmo lugar, mas sim de lugares diferentes. Cada pessoa que está vagando pelas ruas, parecendo zumbis saídos de The Walking Dead é o filho de alguém, é o irmão de alguém, a mãe de alguém.
Talvez essa violência seja o câncer da humanidade, que mata várias pessoas todos os dias. E precisamos erradica-lo. Produzir discursos de ódio, dar festas durante a pandemia, compactuar com a violência generalizada, seja na forma de preconceitos, de egoísmo ou mesmo praticando-a diretamente, são atitudes que se assemelham a um pacto fáustico com a maldade. É a normatização do que não é normal e a aceitação de um mundo cruel e mesquinho que vai continuar produzindo vítimas em cima de vítimas que vão terminar nas ruas das grandes cidades ou mortas por uma bala perdida. Cabe a cada um de nós decidir se vai puxar o gatilho ou ser resistência.
Notas:
O texto acima foi escrito em 17 de maio de 2021. Hoje, 29 de julho de 2021, em pesquisa no site www.g1.globo.com, fiz atualizações sobre as notícias do falecimento de Mc Kevin, sobre o caso do fotógrafo Thiago e atualização do número de pessoas imunizadas contra a Covid-19.
Caso Mc Kevin: de acordo com a reportagem, havia uma festa no hotel onde estava o músico e as pessoas convidadas consumiram uma grande quantidade de álcool e drogas ilícitas. Foi constatado que o músico realmente caiu da janela, tentando fugir de um flagrante da esposa.
Caso do fotógrafo Thiago: de acordo com a reportagem, a polícia ainda está investigando o caso e procurando os culpados pelo crime.
Porcentagem da população imunizada (com as duas doses da vacina) contra a Covid-19: 19% apenas.