literatura

Adeus às armas – Ernest Hemingway

Para aqueles leitores que gostam de um texto que não os subestima, que exige a sua leitura ativa e muitas inferências, Adeus às armas (Bertrand, 2020) é um prato cheio. Temos aqui a história de Frederik e Catherine, um casal que se apaixona durante a Primeira Guerra Mundial e vai viver esse amor romântico em meio às turbulências da batalha bélica, da escassez e das angústias daquele tempo.

Para compreender bem esse romance, é importante sabermos um pouco mais sobre o escritor para usarmos as chaves de leitura corretas e fazer as inferências sobre tudo o que ele não vai nos dizer, mas sim sugerir. Ernest Hemingway nasceu em julho de 1899 em Illinois nos Estados Unidos e faleceu em 1961, no estado de Idaho. Durante a sua vida, o jornalista e romancista foi um grande adepto das aventuras, da vida ao ar livre e das experiências incomuns. Alistou-se no Exército Italiano (aliados) como motorista de ambulâncias após não conseguir entrar para o Exército norte-americano devido a um problema de vista. Nesta época, ele tinha apenas 18 anos. Esse fato foi determinante para o seu futuro, tanto como escritor quanto na sua vida pessoal.

Dessa experiência, que durou um mês mais ou menos, de suas observações e vivências, surgiu o romance Adeus às armas e muitas inspirações para os seus contos e histórias em sua longa carreira de escritor. Seu primeiro romance, O sol também se levanta, conta a história da chamada “Geração Perdida”, através de um recorte. Este termo foi cunhado por Gertrude Stein e popularizado por Hemingway, que se refere à geração de pessoas nascidas entre 1883 e 1900, que lutou a adolescência na Primeira Guerra Mundial e viveu a vida adulta até a Grande Depressão. Muitos dessa geração viveram um exílio na Europa, procurando um sentido para a vida e para a Guerra. Essa denominação refere-se à falta de sentido e de direção, levando à “Loucura dos anos 1920” que culminou na Grande Depressão. Viver a fase adulta em um momento de instabilidade econômica, individualismo e quebra de paradigmas é algo comum e determinante para essa geração.

Por isso, Hemingway ganhou fama muito depressa, tornando-se uma celebridade e assim perdeu um certo prestígio com os críticos daquela época. Não por ser um escritor modernista, mas sim por um estereótipo que foi criado sobre a sua pessoa por ele mesmo, transformando-se em uma figura mítica: homem viril, grande caçador, aventureiro, corajoso e lutador. Essa exposição constante e principalmente o seu estilo de escrita aliado aos temas sociais apresentados em seus romances e contos, afastaram o público na década de 1930. Posteriormente, em 1940, o escritor volta a ser comentado, porém, outros contemporâneos começam a imitar o seu estilo, levando-o ao ostracismo. O escritor também não fez muito para se ajudar nesse sentido. Começou uma fase de estrapolação das narrativas sobre caçadas, pescarias e aventuras selvagens, com ênfase no masculino e na virilidade, afastando ainda mais o público de sua obra. A redenção vem com a sua última obra, O velho e o mar, uma metáfora da vida do homem moderno, aquele que luta, luta e morre na praia. Ou aquele que o mundo vai matar.

O estilo de Hemingway é simples, ao mesmo tempo em que é extremamente complexo. Mesclando a objetividade do texto jornalístico com o gênero dramático (carregado de diálogos) e com a secura de suas palavras e descrições, temos um texto único, direto, objetivo e pronto para uma adaptação. Ao ler os romances e os contos do escritor, há um certo estranhamento por parte do leitor, pois, a impressão que se tem é de estarmos lendo um roteiro para cinema. Na verdade, segundo o Professor Danilo Puglia, Hemingway tem uma escrita de iceberg, ou seja, o leitor precisa inferir o não-dito, que constitui a maioria dos romances do autor. Da mesma forma, aparentemente, os seus livros podem parecer superficiais, quando na verdade, ele está fazendo um recorte de um período histórico e o leitor é jogado ali sem nenhum tipo de informação antecipada e precisa se virar para compreender as metáforas, as metonímias e principalmente a ressignificação de tudo aquilo.

Suas obras apresentam uma grande ambivalência: não sabemos ao certo se ele está defendendo a Guerra ou a repudiando. Também não fica claro se ele é extremamente machista ou não (aparentemente, sim; principalmente, se consideramos a sua vida pessoal). E também não conseguimos resposta para as suas subjetividades e superficialidades, algo bem comum de sua geração, a partir de suas vivências. A Geração Perdida é composta pelos sobreviventes da Primeira Guerra Mundial. Dessa forma, coisas que para nós, pessoas comuns, parecem sem sentido e totalmente triviais, tais como comer um prato de macarrão, um pedaço de queijo ou tomar uma taça de vinho, para eles, simboliza um acontecimento, algo do qual até pouco tempo atrás lhes era negado pela escassez da guerra e pela situação daquele tempo. Tudo isso é fartamente retratado em suas obras.

Focando no romance Adeus às armas, no início da prosa, temos um narrador em primeira pessoa totalmente distanciado e frio, provocando no leitor um forte estranhamento. Ele é jogado ali e precisa entender o que está acontecendo. Ao passo que a história se desenvolve, há uma sensação de proximidade quando o protagonista é ferido em uma batalha e faz o seu tratamento em Milão, sendo cuidado por Catherine, uma das protagonistas mais chatas da literatura contemporânea. Vazia, fútil, tagarela e extremante submissa, a “mocinha” do romance dedica a sua vida à Frederick, sendo capaz de renunciar a si mesma e a todas as suas querências para se transformar no ser amado, como se houvesse uma fusão dos dois.

Há um exagero aqui, que é justificado pelo desejo de um idílio em meio à guerra. É como se o amor romântico pudesse salvar essas almas tão sofridas e perturbadas por mortes, fuzilamentos, massacres, amputações e tristezas. É como se fosse uma referência ao Romantismo no sentido de fuga e exagero. O idílio que o casal vive na Suíça após da deserção de Frederick é comparado pelos críticos ao clássico de Shakespeare Romeu e Julieta. Além dessa descrição excessiva de amor, de falas apaixonadas e de diálogos inúteis, há também uma áurea de contos de fadas e uma descrição desonrosa das mulheres. Como já mencionado anteriormente, Catherine é uma mulher extremamente submissa, que abre mão de si mesma pelo ser amado, que só consegue existir se ele estiver junto a ela. Abre mão de suas convicções, religião, cultura e ética para viver fugindo com Frederick, que agora é um desertor e pode ser preso e fuzilado a qualquer momento.

Não podemos esquecer que essa mulher é retratada por um filtro, pois temos aqui um narrador homem em primeira pessoa. Em contraponto a essa mulher frágil, os homens da história são caracterizados de forma extremamente viril, há uma abordagem superficial sobre as doenças venéreas e uma passagem que me chocou profundamente onde Frederick diz ter tido gonorreia em algum momento de sua vida e a idiota (só dizendo assim mesmo) da Catherine diz que gostaria de ter pego a doença também para viver os mesmos sofrimentos que o seu amado Frederick. Só por esse trecho, percebe-se o quanto há uma disparidade enorme entre os gêneros aqui.

O narrador vai se modificando ao longo da prosa. Ele começa distanciado e posteriormente, através dos sofrimentos e vivências da guerra, ele passa a ressignificá-la, buscando assim prazeres físicos. Daí vem o que consideramos futilidades e que muitos de nós leitores não compreendemos em um primeiro momento ou em uma leitura apressada: as descrições constantes dos jantares, das comidas e bebidas e, em um dos momentos mais marcantes da história, onde há uma batalha acontecendo e os soldados devem se resguardar, eles resolvem comer uma macarronada com queijo. Essa busca pelos prazeres físicos é na verdade uma busca por um sentido da vida, que neste momento, para eles não faz sentido nenhum.

A discussão sobre religião nas obras de Hemingway é sempre feita de modo ambivalente, talvez devido à sua educação. Ele defende a religiosidade prática, ou seja, o indivíduo deve praticar mais a religião que pregá-la. Está sempre através de alguns personagens contestando ou ironizando a existência de Deus. Não é um costume do escritor abordar temas transcendentais e sim fatos históricos, utilizando-se de uma licença poética para transgredi-los e coloca-los em sua obra da forma que achar conveniente. Hemingway trabalha com cenas bem escritas, memórias pessoais e muitas pesquisas, inclusive de termos técnicos e muito específicos para serem de conhecimento de um escritor. Fazendo um recorte da época, ele usa e abusa dos diálogos como uma forma de trazer ao leitor uma vivência mais prática dos fatos, recurso muito utilizado pelos modernistas de seu tempo.

Há em sua obra uma grande coerência interna que faz um belo contraponto com sua vida pessoal, que é totalmente turbulenta. O escritor guardava consigo duas regras fundamentais para o seu processo de escrita: deve sempre falar a verdade e guardar para si suas palavras que não podem ser ditas. Por isso seus textos são tão cheios de subjetivismo, de ambivalências e de não-ditos. Assim, a tradução de seus romances pode ser comprometida. Parecem fáceis de fazer, mas na hora percebe-se a grande dificuldade oculta nessa missão. No Brasil temos apenas uma tradução para essa obra que foi feita por Monteiro Lobato. De acordo com os críticos, o tradutor carregou no lirismo, perdendo assim a secura do texto original de Hemingway. Ainda assim é um bom livro que precisa de atenção para ser lido de verdade.

Mesmo com todas as observações negativas feitas aqui sobre esse clássico norte-americano, não posso deixar de reconhecer a genialidade do escritor e a sua habilidade narrativa para contar histórias incômodas. Ele fala sobre temas universais e atemporais, afinal, existem muitas guerras acontecendo agora pelo mundo a fora. Porém, Hemingway não é um escritor para todos os gostos. Não é um livro recomendado a todos os públicos, mas àqueles que gostam de boa literatura e que têm paciência para criar os nexos dentro dos tantos não-ditos pelo escritor.

2 thoughts on “Adeus às armas – Ernest Hemingway”

    1. Tatiane, obrigada por esse elogio tão lindo! Fico extremamente feliz em saber que gostou do meu conteúdo. Espero continuar fazendo jus à sua opinião que é tão importante para mim.

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