crítica

Agnes Grey

O que dizer sobre uma mulher vitoriana que teve coragem de escrever sobre a vida mentirosa dos ingleses da época? Denunciar em forma de romance costumes e hábitos nocivos e perversos que estavam ocultos atrás dos muros e grades de mansões nobres onde pequenos tiranos eram criados para perpetuarem atitudes nada cristãs?

O primeiro romance de Anne Brontë, Agnes Grey (Martin Claret,2014), originalmente publicado em 1847, conta a história de uma jovem, filha de um clérigo, que busca a sua independência econômica, trabalhando como preceptora de crianças mais abastadas. Ao se lançar nessa jornada, Agnes nutre um otimismo muito grande e está bastante empolgada com a possibilidade de ensinar outras pessoas e difundir seu conhecimento. Porém, o que ela encontra são decepções e uma carga pesada de realidade.

A função de uma preceptora pode ser comparada atualmente com a junção de uma professora e uma babá. Deixando claro neste caso, que essa pessoa vai ensinar disciplinas escolares (matemática, linguagem, história, geografia, arte, etc.) e não valores éticos e morais – apesar de estes fazerem parte da convivência entre as crianças e a preceptora, sendo função desta reafirmar os valores já aprendidos com os pais. Hoje trabalhamos esses pontos nas escolas como temas transversais, incluídos nas disciplinas da área de humanas.

O problema maior neste caso é quando as crianças não têm essa noção de certo e errado. Elas fazem coisas hediondas e ainda assim são aplaudidas pelos adultos da família, levando-as a acreditar estarem se comportando dentro do esperado. Quando uma pessoa de fora chega com outros valores, há um choque muito grande. Principalmente, quando essa pessoa está ali para servir à uma família que coloca limites de ações corretivas aos filhos, não percebendo ou não se importando mesmo com o comportamento destes diante dos outros.

São cenários deste tipo que Agnes encontra nas casas onde vai trabalhar. Os pais veem os filhos como seres bondosos e perfeitos. Não há nenhuma necessidade de correção em relação a seus comportamentos. O que eles precisam é que os filhos aprendam um pouco de álgebra, escrita, artes, música para seguirem seus caminhos ao longo da vida com um pouco mais de conhecimento. Mas, como ensinar essas coisas para crianças indisciplinadas? E quando a preceptora é vista como uma simples empregada e não um ser humano? E a sua competência é medida através do comportamento das crianças e não avaliado por um adulto presente e justo? O que esperar de uma sociedade baseada em valores supérfluos e fúteis?

Anne Brontë não teve receio em mostrar essa sociedade em seu livro, que tem um quê de autobiográfico. A autora também trabalhou como preceptora em algumas casas e, provavelmente, vivenciou experiências parecidas. O que a sociedade inglesa da época considerou uma traição, uma quebra de confiança em expor aquilo que queriam esconder. Essa coragem da escritora acabou colocando-a no ostracismo por muitos anos, o que vem sendo corrigido atualmente.

Uma das características principais dessa obra é a sua atemporalidade. Infelizmente, ainda hoje vemos casos muito parecidos com o que viveu Agnes Grey. A profissão de preceptora praticamente não existe mais. Entretanto, a educação das crianças continua sendo terceirizada nas escolas e em alguns casos com as babás. Todas essas pessoas que cuidam das crianças continuam sofrendo uma enorme despersonalização e sendo responsabilizadas por tudo o que pode dar errado em relação às crianças.

É comum lermos nos jornais sobre agressões e violência contra professores em salas de aula. Por um momento, pensamos ser esse um comportamento novo, consequência da nossa sociedade contemporânea individualista e capitalista. Porém, quando lemos Agnes Grey, percebemos que essa atitude de desprezo e menosprezo aos educadores é bem antigo. É triste perceber que a humanidade pouco evoluiu em relação à valores sociais e culturais. Melhoramos até certo ponto, mas quem já esteve dentro de uma sala de aulas, ou convive diariamente com crianças extremamente mimadas, sabe que pouco mudou.

Na era vitoriana a ausência dos pais poderia ser justificada pelos casamentos infelizes, realizados por interesse financeiro ou social, que eram totalmente vazios de sentido. Essa infelicidade refletia diretamente nos filhos, principalmente quando havia violência dentro de casa. Pessoas que não se sentem bem consigo mesmas, não são capazes de educar ou estar presentes para o outro. Porém, na nossa sociedade atual, apesar de ainda encontrarmos esse tipo de casamento, eles são menos comuns. E a nossa ausência se justifica pelo excesso de trabalho e de individualismo. Assim, muitas famílias, por culpa ou por falta de noção mesmo, colocam seus filhos como centro da casa, exigindo de terceiros uma paciência extrema e uma tolerância infinita com os erros e falhas das crianças.

A grande questão que Anne abordou em Agnes Grey e que ainda precisamos pensar muito é em quem se transformarão essas crianças que não possuem uma noção de caráter ou de certo e errado. Como elas lidarão com as frustrações e dificuldades da vida adulta? Até que ponto somos responsáveis pelos erros dos nossos filhos? E pelos acertos? Como educar?

De toda essa reflexão, uma certeza temos: todas as empregadas domésticas, babás, professoras e afins são pessoas e devem ser tratadas com respeito e consideração. É inaceitável, em qualquer época, tratar as pessoas como coisas ou despersonalizá-las completamente como é abordado no livro. Parafraseando Humberto Gessinger, a nossa sociedade, que se acha moderna demais continua sendo a mesma que vivia nas cavernas.

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