Certamente, muitos de nós, em algum momento de nossas vidas, quando o trabalho está maçante, ou quando temos deveres demais a cumprir, problemas demais a resolver, já desejamos ser ricos, famosos, não ter mais que trabalhar e poder viver à toa, jogando videogame, olhando para o mar. Porém, bastam quinze dias de férias, fazendo essas coisas (tirando a questão do dinheiro, claro), para desistirmos desse plano e sentirmos vontade de voltar para a nossa rotina de trabalho, afinal, ninguém consegue viver sem fazer nenhuma das chatices do dia a dia. Por isso, todas as vezes que tiver esse desejo perverso, lembre-se de Matthew Perry, sim aquele ator famoso dos Estados Unidos, que interpretou o Chandler Bing em Friends: ele tem essa vida – milionário, famoso, não precisa mais trabalhar e passa os seus dias jogando videogame com vista para o mar. O grande problema é que ele é tão infeliz e tão solitário, que estaria disposto a trocar de lugar comigo ou com você, para ter um lar, uma esposa, filhos, mas, principalmente, para se livrar daquilo que ele chama de “aquela coisa terrível”, que é a dependência química.
No final do ano passado o ator Matthew Perry publicou a sua autobiografia, chamada Amigos, amores e aquela coisa terrível (Crítica, 2022). Nesse livro temos um relato honesto, sincero e visceral sobre a sua trajetória e o seu vício em drogas e álcool, que quase o levou à morte. Os capítulos são intercalados por memórias antigas, seguindo a cronologia temporal e por interlúdios, onde ele conta alguns dos episódios mais terríveis que vivenciou por causa do uso excessivo de álcool e remédios à base de opióides – grande problema dos Estados Unidos em relação a vícios. Já no prólogo, ficamos sabendo da coisa mais terrível de todas que aconteceu com o ator e que o fez abandonar de vez o uso de medicamentos e logo no primeiro capítulo, contando a história de seus pais, ele indica um trauma de infância que provavelmente foi um dos gatilhos para o vazio de sentido que sempre vivenciou e que o levou ao uso de drogas e álcool.
Os pais de Matthew se casaram muito jovens e de forma bastante irrefletida. Não demorou muito para que tivessem um filho e com a chegada turbulenta deste, o casamento não se sustentou. Aos dois meses de vida, Matthew sentia muitas cólicas e não parava de chorar. Assim o pediatra local lhe prescreveu um remédio à base de barbitúricos, algo que é cientificamente comprovado, pode ter sido o gatilho para os seus vícios na fase adulta. Outro ponto que o marcou de forma absurda foi a separação de seus pais e o retorno de sua mãe junto com ele para o Canadá. O sentimento de abandono nunca o deixou. Para visitar o pai, Matthew era enviado desacompanhado de Ontário para Los Angeles em voos internacionais, aos cinco anos. Eu me lembro que essa prática (hoje impensável para qualquer um de nós) era bastante comum até meados de 1980. Porém, aqueles que achavam tão prática a opção de mandar uma criança desacompanhada de um país a outro, não poderiam mensurar o que esta sentia:
“Passar por aquele voo sozinho foi uma das muitas coisas que me causaram a sensação de abandono que me acompanharia por toda a vida… Eles não teriam me abandonado se eu fosse suficiente, certo? Não é assim que as coisas funcionam? As outras crianças estavam com os pais. Eu só tinha uma placa com um nome e uma revista” (PERRY, 2022, pág. 29)
É impressionante quantas vezes ao longo das mais de 200 páginas dessa autobiografia, ele menciona esse trauma. Por isso, a questão da nossa responsabilidade sobre os outros, no sentido de que tudo o que fazemos, por mais simples que seja, tem um impacto na vida das pessoas está presente nesse texto para pensarmos sobre. Cada uma dessas pessoas vai responder a esses impactos de um jeito diferente. No caso de Matthew, muitas atitudes corriqueiras de seus pais o transformaram em um indivíduo frágil, carente e consequentemente em um viciado. Não, ele não os culpa por isso. Ele compreende que fizeram o que tinham que fazer naquele momento e até mesmo o que era recomendado pelas autoridades. E é aí que entra a reflexão sobre os nossos atos: ações impulsivas, extremistas ou motivadas pelo desespero, geralmente não trazem boas consequências.
Por outro lado, o ator também dá aos pais todo o crédito pelas coisas boas que ele vivenciou. A peça de teatro que apresentou na escola e que serviu para impulsionar o seu desejo de ser ator, além do fato de mais tarde compreender que o pai e a mãe juntos não dariam certo de forma alguma. Além disso, se seu pai não tivesse ido para Los Angeles tentar a carreira de ator, é provável que Matthew também não tivesse se interessado pela profissão. Com a maturidade, ele foi capaz de perceber que sempre foi amado pelos pais e que geralmente, crianças adotadas ou filhas de pais separados sentem mesmo esse vazio e essa eterna sensação de abandono que ele sempre sentiu.
O grande problema é que Matthew não é como as outras pessoas, que passam por situações acachapantes e as superam através de terapias ou com o passar do tempo e com o próprio amadurecimento. Ele é um dependente químico e alcóolatra. Assim que bebeu pela primeira vez, aos 14 anos, teve uma epifania e não apenas isso, bebeu muito mais que seus amigos e não passou mal como eles. Esse é o primeiro sinal de alerta para uma pessoa que sofre com o vício em álcool: eles geralmente são muito resistentes e encontram ali um lugar seguro, sentem-se bem com o efeito do álcool, diferente daqueles que não são doentes, que assim que se sentem embriagados, procuram parar porque perdem a capacidade de discernimento e os reflexos. Com o alcóolatra acontece o oposto: ele se sente feliz e divertido. Com o tempo, sem a ajuda do álcool eles não conseguem mais conviver com as pessoas e nem mesmo cumprir as tarefas banais do dia a dia.
Matthew se tornou ator aos 16 anos. Conseguiu alguns papéis simples, para um profissional iniciante e estava indo bem. Ganhou dinheiro, saiu da casa de seu pai, tinha amigos e se sentia bem com eles e até mesmo com as garotas, depois de superar a sua timidez e o seu nervosismo diante das mulheres. Porém, guardava um segredo: bebia escondido (na verdade, ele achava que ninguém percebia, assim como todos os dependentes químicos). Aos 23 anos, ele estava sem dinheiro e sem trabalho quando começaram os testes para Friends. Logo de cara, o ator se identificou muito com o personagem que viria a interpretar nos próximos dez anos: Chandler Bing. Porém, ele estava escalado para uma série de ficção científica e provavelmente não poderia participar dos testes para a sitcom. Entretanto, algumas coisas na vida da gente parecem predestinadas. Já dizia o ditado que “o que é do homem o bicho não come” e claro, a série futurística que segurava Matthew foi cancelada e, sendo o último ator escalado para Friends, ele imortalizou o complexo Chandler.
Com o sucesso de Friends, as responsabilidades começaram a chegar. Os atores recebiam uma verdadeira fortuna por cada episódio, ficaram muito famosos, estampando as capas das principais revistas norte-americanas, ficaram conhecidos no mundo todo. Além disso, choviam convites para estrelar produções cinematográficas caras, ao lado de atores consagrados e toda essa pressão foi demais para Matthew. Na verdade, ele acreditava que a fama, o sucesso e o dinheiro preencheriam o vazio de sentido e o sentimento de abandono que sempre o acompanhara. Entretanto, dinheiro nenhum no mundo compra a paz de espírito de uma pessoa. Preocupado com a sua carreira e com as grandes responsabilidades que surgiam, ele começou a usar medicamentos à base de opióides, o vicodim. Assim começou a sua derrocada.
Os fatos que se seguiram são terríveis e o tempo todo o leitor questiona como ele sobreviveu a tantos horrores. Este é um tema muito polêmico principalmente porque ele é cercado por muitos tabus e por muitas desinformações. Infelizmente, para algumas pessoas, a dependência química ainda é vista como uma espécie de vadiagem. Essas pessoas acreditam que qualquer indivíduo é capaz de parar de beber ou de usar drogas somente com a sua força de vontade. Elas não entendem que isso é uma doença e que para desintoxicar um viciado em drogas, os médicos utilizam outras drogas no lugar daquelas, gerando assim um ciclo vicioso. É importante lembrar que sim, Matthew foi uma pessoa muito privilegiada financeiramente falando. Ele alcançou coisas que para muitos de nós são inalcançáveis. Porém, ele nunca foi uma pessoa feliz. Ele nem sequer conseguiu curtir, comemorar, aproveitar e vivenciar coisas importantíssimas da sua própria vida. Em um trecho do livro ele diz:
“Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos – com vista para a cidade toda! Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana – venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado” (PERRY, 2022, pág. 15)
Desta forma, antes de julgar uma pessoa, tente se colocar no lugar dela. Nunca devemos fazer pouco do sofrimento dos outros, afinal, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, como diz Caetano. Cada um de nós carrega os seus fardos, aqueles que são do nosso tamanho e posso dizer que, conviver a vida inteira com uma doença em que é preciso combate-la todos os dias, é um fardo e tanto. Até mesmo todos os privilégios de raça e classe que ele tem não foram suficientes para libertá-lo desse mal. Amigos, amores e aquela coisa terrível foi um livro que me gerou uma empatia enorme por Matthew Perry e me fez compreender melhor o seu personagem em Friends, que era um dos meus menos preferidos. Terminei essa leitura com um desejo enorme de que Matthew consiga encontrar o amor verdadeiro e que possa ser pai, como tanto deseja. E que ele tenha paz de espírito, se mantenha limpo e sóbrio por muitos anos, levando consigo as tantas cicatrizes de uma vida louca, mas que de certa forma, foi vivida e vencida.