literatura

Análise de Úrsula de Maria Firmina dos Reis

Maria Firmina dos Reis nasceu no Maranhão em 1822 e foi uma intelectual e escritora negra, pertencente à Escola Literária do Romantismo, além de trabalhar também como professora primária. Aos 22 anos foi aprovada em primeiro lugar no concurso público estadual para Mestra Régia, sendo a primeira mulher a ocupar um cargo de docente no Estado do Maranhão. Ao se aposentar em 1881, fundou a primeira escola mista (que aceitava meninas também) gratuita do país. Deixou uma extensa obra, dentre romances, contos, poesias e crônicas. Viveu até os 95 anos, lutando por dar voz às pessoas negras e libertá-las dos grilhões da escravidão.

Maria Firmina dos Reis foi a primeira escritora brasileira e também a primeira a dar protagonismo para pessoas negras, quebrando a hegemonia dominante no país, que se baseava em tradições patriarcais e discriminatórias. Além de ser a primeira escritora brasileira, foi a primeira pessoa negra a publicar um romance no Brasil. O peso de Úrsula é gigantesco, tornando-se uma leitura obrigatória a todos os brasileiros que se importam com a nossa história e que desejam conhecer mais sobre a nossa literatura.

Amparando o seu texto em dois pilares, temos como história principal do enredo um triângulo amoroso entre Úrsula, Tancredo e Fernando, com todas as características do Romantismo: amor exacerbado, tragédias, descrição farta de ambientes e lugares bucólicos e um traço gótico. Por outro lado, temos Mãe Suzana, Túlio e Antero, negros que trabalham na fazenda de Úrsula e que contam ao leitor através de seus diálogos e lembranças como foram suas vidas antes de serem sequestrados da África para as Américas. A autora aborda a travessia do Atlântico sob uma outra perspectiva, deixando claro ao leitor que essas pessoas tinham uma vida, tradições, cultura, família, poder econômico e liberdade.

Ao colocar o negro como sujeito de suas ações e de seu discurso, a autora se afasta do “Cânone Literário Brasileiro” e passa a ser uma escritora marginal. Isso significa que muitos de nós não a estudamos na escola como a primeira mulher e pessoa negra a publicar um romance no Brasil e também não sendo lida como escritora importante do Romantismo Brasileiro por causa das convenções impostas por esse cânone que desconsidera escritores que rompem com as regras do homem branco, heterossexual e privilegiado que ditou as regras da literatura por muitos séculos.

Os primeiros escravizados chegaram no Brasil no século XVI e estima-se que mais de quatro milhões de pessoas negras foram vítimas da escravidão no país. Grande parte da nossa desigualdade social e das nossas mazelas como país têm origem na escravidão, que durou três séculos. Infelizmente o Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravatura, fato que se concretizou com a Lei Áurea assinada em 1888. Existe uma ideia estapafúrdia que acompanha a escravidão de que os brancos são superiores aos negros moral e fisicamente falando e esses conceitos extremamente preconceituosos são rechaçados por Maria Firmina dos Reis em Úrsula.

Através do personagem Túlio, um negro alforriado, a autora debate a abolição com seus discursos inflamados, em uma tentativa de convencer o homem branco de que ele não é inferior por ser negro. Já a Mãe Suzana, relata a travessia do Atlântico, marcada por dor e sofrimento, mostrando as chagas da escravidão de forma contundente.

Maria Firmina dos Reis utiliza a polifonia para dar voz aos seus personagens, principalmente os escravizados e as mulheres, em um momento onde não haviam liberdades individuais para todos de forma justa. Úrsula é também um romance tese que defende a ideia do abolicionismo, baseado nos três pilares da independência norte-americana: liberdade, paz e a busca pela felicidade. Para a autora, todos os indivíduos têm esses conceitos como um direito fundamental, como base da existência. O final do romance é ultrarromântico, onde todos se dão mal, mostrando uma forte característica do Romantismo, que acreditava em uma vida após a morte e na punição da vida terrena, como se fosse uma espécie de purgatório. A felicidade suprema seria alcançada em um plano transcendental, muito superior à Terra.

O final do romance também problematiza a questão do casamento como final feliz, mostrando ao leitor que as demandas de uma vida a dois vão muito além do amor incondicional, que existem outros problemas de ordem prática e que precisam ser vivenciados e resolvidos pelos casais. A escritora rompe com todos esses conceitos vigentes naquela época, elevando a sua história a um nível reflexivo e analítico, questionando se seria realmente possível viver uma história de amor em um mundo onde existia escravidão, onde o casamento abria portas para outro tipo de servidão e de humilhação para a maioria das mulheres.

O romance aborda temas diversos tais como a subserviência de Túlio paradoxalmente com a postura adotada por Mãe Suzana ao se posicionar de forma humanística e não aceitar a posição do negro naquela sociedade tacanha e obtusa. Há também uma discussão de gênero através da protagonista e de sua mãe, que vivem sozinhas em sua propriedade, contextualizando a realidade de muitas famílias brasileiras formadas apenas por mulheres e as dificuldades advindas dessa posição incômoda. Úrsula vai se casar para ajudar sua mãe, entretanto, não sabe ao certo se é isso mesmo que deseja e se será realmente feliz no casamento, que é apresentado como algo acachapante, uma ideia de não ter para onde fugir. Há uma subtração dos direitos fundamentais dos indivíduos por uma sociedade patriarcal dominante.

Pode-se considerar que Úrsula é um romance histórico datado, devido a uma escrita rebuscada em segunda pessoa do plural (algo pouco usual), demostrando um esforço da escritora em manter o seu texto dentro de uma linguagem erudita, provando o seu domínio dessa linguagem. No início da edição, ela deixa um recado ao leitor, afirmando ser o seu livro humilde:

Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume” (REIS, 2021, pg. 49).

Pode parecer uma certa ironia da autora, porém, entendemos esse prefácio como prova da sua capacidade intelectual e sua modéstia em acreditar que o seu livro não é tão bom quanto o de seus contemporâneos. Ideia um tanto tosca, pois, Úrsula dialoga muito mais com o grande mestre do romantismo europeu Goethe, com o seu magnífico Os sofrimentos do jovem Werther do que o grande José de Alencar, tido como o nosso principal representante do Romantismo Brasileiro.

Úrsula possui qualidade estética e exige tempo do leitor. Não é um romance para ser devorado e lido em uma sentada. É preciso esforço, paciência, dicionário e releituras para conseguir extrair desse obra-prima tudo o que ela tem a nos oferecer . Recomendo a leitura para quem tem paciência para voltar ao Romantismo e tentar compreender o pensamento daquela época e seu contexto histórico. Este é um romance que precisa ser mais conhecido, difundido e estudado nas escolas e faculdades brasileiras. Algo que até alguns anos atrás não acontecia, mas que atualmente está mudando. Maria Firmina dos Reis deixou um grande legado para o Brasil e esperamos que sua obra seja totalmente regatada por estudiosos, fazendo justiça póstuma a uma de nossas maiores vozes das Letras Brasileiras.

Fonte: Projeto Trilhas de Vozes Negras (TAG, 2021).


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