crítica

Aprender a falar com as plantas – Marta Orriols

O livro enviado pela TAG Curadoria de outubro de 2021 foi o romance de estreia da catalã Marta Orriols. Ambientado na Barcelona moderna e contemporânea, o livro conta a história de Paula, uma mulher na faixa dos 40 anos, que acabou de perder o marido e está aprendendo a se conhecer melhor a partir do luto. A autora aproveita essa premissa para tratar de temas muito comuns a nós, sobreviventes do século XXI, tais como maternidade, trabalho, casamento, amizades e perdas.

A protagonista dessa história é marcada por alguns infortúnios, a começar pela morte da mãe, quando Paula tinha oito anos. Por ser filha única, seu pai se viu sozinho com a responsabilidade de superar o luto e cuidar da criança da melhor forma possível. Entretanto, não foi feliz em sua empreitada: seu relacionamento com a filha se perdeu ao longo dos dias. A garota precisou amadurecer forçadamente, pois percebia o sofrimento do pai e o silêncio que ele guardava com medo de machucá-la. Assim foi inevitável comparar a sua vida com a das colegas, fazendo com que se sentisse sozinha e desamparada, diferente de todos.

Quando se é criança, percebe-se muitas coisas, mas o ânimo para mudá-las é frágil demais” (ORRIOLS, 2021, pg. 155)

Já na fase adulta, Paula se formou em medicina e conseguiu um bom emprego em um hospital de Barcelona, que se transformou em sua segunda casa. Ela é médica neonatologista, trabalha em uma UTI e lida com a dor e a morte o tempo todo. É uma excelente profissional, convive bem com seus colegas de trabalho, mas não aprofunda suas relações, não tem amigos além de Lígia, uma colega de faculdade que se tornou alguém em quem ela poderia confiar e de quem poderia se aproximar. Entretanto, Lígia constituiu família, casou-se e teve filhos, tornando-se, na opinião de Paula, uma pessoa clichê e chata.

É dessa forma que a nossa protagonista classifica as pessoas: mães e esposas, independente de trabalharem fora ou não, de terem uma vida ou não, são chatas, só falam sobre os filhos e sobre suas vidas “perfeitas”. Paula não suporta crianças, ironicamente, trabalha com bebês, mas nunca quis ser mãe. Para ela, uma vida perfeita é movida pelo trabalho e pelo consumo: uma boa casa em uma localização privilegiada; um carro potente; almoços e jantares em restaurantes de alta gastronomia; viagens luxuosas; roupas sofisticadas e bonitas; vinhos refinados todas as noites, acompanhados de conversas triviais ou sobre trabalho e muita diversão.

Quando já está estabilizada profissionalmente, na faixa dos 30 anos, conhece Mauro, um homem interessante, sócio de uma editora e aficionado por plantas. Eles saem algumas vezes e resolvem morar juntos. Paula é avessa às tradições e supõe que Mauro também. Assim, não fazem uma cerimônia de casamento, contrariando a família do companheiro e também não têm filhos, decisão unilateral da mulher que constatou sem conversar com Mauro, que ele também não desejava ser pai. Assim, ela herdou os amigos do marido, que diferente dela, tinha um círculo de pessoas ao seu redor. Porém, como já era esperado, quando o sócio e melhor amigo de Mauro se casou e constituiu família, ele se tornou chato para Paula.

Dez anos depois, o casamento já não era o mesmo. A paixão do começo esfriou e os dois trabalhavam cada vez mais e se viam cada vez menos. Mauro, um homem reflexivo, que amava os livros, estava sempre inquieto e por isso conversava com as plantas para se autocompreender. Enquanto Paula não tinha esses interesses: era uma pessoa pragmática e objetiva, detestava tudo à sua volta, não formava laços com outras pessoas, criticava os amigos como se a sua opção de vida fosse superior a todas as outras, não tinha um relacionamento com o pai, o via apenas em ocasiões festivas e nutria por ele um certo desprezo. Seus relacionamentos eram sempre superficiais e a sua única motivação na vida era o trabalho.

Um belo dia, Mauro a convida para almoçar e durante esse encontro, comunica que sairá de casa, pois conheceu outra pessoa. Aquilo aniquila nossa protagonista e o pior é que, algumas horas depois, ela é informada sobre um acidente fatal com o marido. Dessa forma, Paula é obrigada a conviver com suas escolhas e com sua solidão. Ela passa por um momento de enfrentamento do luto e da dor de perceber que suas certezas se foram de repente e que a vida lhe pregou uma peça daquelas, onde a única opção é um reencontro consigo mesma.

A trama segue em uma crescente, com um texto fluido, intenso, alternando a narrativa em primeira pessoa e o fluxo de pensamentos de Paula. A partir de um conceito proustiano, a protagonista vê as plantas e se lembra dos momentos de intimidade que vivenciou com o marido na casa deles, constatando assim que o que fica na memória são os momentos triviais e cotidianos vivenciados pelas pessoas que se amam. Paula compartilha com o leitor essas lembranças muito caras para ela, tais como um filme na TV, o noticiário nosso de cada dia, o amor de Mauro pelas plantas, os manuscritos que ele levava para casa, um azeite passado ao outro na hora do jantar e tantos outros momentos que constroem uma relação familiar.

Há um contraponto nessa história com alguns personagens que não seguem o fluxo da vida contemporânea. Quim, um homem que Paula conhece um tempo depois da morte do marido, deixou a vida cinzenta dos escritórios para viver em um bosque e trabalhar como marceneiro. Ele é uma pessoa cheia de vida, alegre e de uma leveza contagiante. As residentes do hospital também fazem esse paradoxo com a vida de trabalho exacerbado dos protagonistas. Elas estão chegando da faculdade, cheias de vida, de sonhos, penteadas como as mulheres inspiradoras de Greys Anatomy e se rebelam com plantões inesperados, que atrapalham seus momentos de fruição, a reunião de família do Natal e a festa de ano novo.

O livro de Orriols nos mostra claramente as escolhas da vida contemporânea, o estilo de vida que adotamos e suas consequências. A abordagem da autora é consistente, levando o leitor à identificação com algumas passagens da história e consequentemente à reflexão. A literatura tem sempre o poder de nos esfregar na cara os nossos defeitos e onde podemos melhorar. Além de nos levar muitas vezes à compreensão de nós mesmos e dos outros, observando que existem diversos pontos de vista diferentes dos nossos. Dessa forma, a literatura transforma e humaniza. Recomendo esse livro a todos os leitores que gostam de pensar e de observar a vida. A escrita de Orriols é fluida e o livro é devorado em poucas horas, permanecendo com o leitor por muito tempo depois. Essa edição foi lançada recentemente pela Editora Dublinense e vale conferir. https://amzn.to/3LQX3Oz

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