Um dia eu quis muito ser jornalista. Eu queria ser jornalista para ser um pouquinho como a Xinran, uma mulher que vivenciou os horrores da China Comunista, que teve uma infância difícil, passou por muitas situações acachapantes, mas mesmo depois de tantos dessabores, ainda encontrou forças para ajudar seus pares e dar voz a outras mulheres. Xinran as escutou e transmitiu as suas vozes para o mundo, ajudando muitas outras pessoas a se reconhecerem nos depoimentos e relatos de suas ouvintes no rádio.
Meu maior objetivo, como ser humano, como professora, como crítica literária e em qualquer situação da minha vida é fazer com que as pessoas olhem para o mundo de uma forma diferente, mais crítica e mais analítica. Acredito que se a educação vigorar em uma nação, ela tem menos chances de ser dominada pelas ditaduras e pela ignorância. Se refletirmos bem, essas coisas acontecem através das populações de baixa ou nenhuma escolaridade, que são dominadas e insufladas ao ódio contra o mundo, onde os seus marionetistas apenas orientam, ao passo em que continuam tendo segurança, estabilidade e comida na mesa, enquanto os seus fantoches fazem a “revolução”. E hoje, lendo o livro da Xinran, me lembrei desse antigo desejo e das minhas motivações.
Diferente do Brasil, a China tem um histórico bastante peculiar de regimes ditatoriais de esquerda. Em outubro de 1949, foi proclamada a República Popular da China, liderada por Mao Tsé-tung que tentou implementar o socialismo chinês de acordo com as bases soviéticas. Seu governo inicialmente foi marcado pela reforma agrária, pelo aumento da produção industrial e agrícola e pela ocupação do Tibete, até que no final da década de 1950, ele resolveu ampliar a produção do país para números muito ambiciosos, provocando uma recessão na China e prejudicando a população, que ficou sem alimentos. A solução encontrada por Mao foi enviar os milhões de chineses que viviam nas cidades para o campo.
Após romper relações com a URSS e vencer a batalha contra a Índia, em 1966, Mao criou um projeto que afetou diretamente o povo chinês, principalmente as classes mais eruditas e os intelectuais, além daqueles que um dia foram grandes proprietários de terras, que foi a Revolução Cultural Proletária. Esse projeto consistia em uma “reeducação” da população chinesa, com o objetivo de impedir o pensamento crítico e analítico, forçar as pessoas a enxergarem o comunismo como a única forma possível de vida decente e mostrar aos antigos latifundiários o quanto eles prejudicaram os camponeses, que passaram a ser vistos como pessoas nobres, sábias e valorosas.
Muitas pessoas foram torturadas durante esse período, mortas e milhares de famílias foram separadas ao longo das décadas em que esta Revolução Cultural vigorou no país. Como já vimos antes, um regime autoritário se caracteriza pela supressão dos direitos individuais do cidadão, pela censura, pela coação através da força física e psicológica e pela reclusão política de indivíduos que pensam de forma diferente do governante. Assim como tantos outros ditadores, Mao Tsé-tung também esperava que os chineses o reverenciassem e fizessem juramentos em seu nome, o que aconteceu diversas vezes. Assim como na URSS, houveram campos de concentração na China. Pessoas foram condenadas à trabalhos forçados, mulheres foram ridicularizadas e humilhadas em praça pública por portarem ou falarem sobre objetos de outros países ou outras culturas, casamentos foram arranjados, famílias foram desfeitas, pessoas foram presas sem provas e mais uma vez, o homem se aproveitou da situação e de sua posição de poder para se vingar de seus desafetos.
Utilizando-se do jornalismo literário, Xinran contou a história de muitas mulheres chinesas. Jovens, velhas, mulheres de meia-idade, ricas, pobres…. Elas se sentiam seguras em lhe contar sobre suas mazelas e infortúnios, enxergando em Xinran o humanismo e a delicadeza de alguém que sabe ouvir com respeito e que consegue dar voz a todas de forma justa, descomplicada e reflexiva. Tudo começou com a reabertura da China em 1983, sob o governo de Deng Xiao Ping, que permitiu aos jornalistas fazerem mudanças na forma como apresentavam as notícias. Daí nasceu o Palavras na brisa noturna (achei lindo esse nome), programa apresentado pela autora, que tinha o objetivo de discutir as questões cotidianas, comuns a todos e as aflições do dia-a-dia. Com o sucesso desse formato, Xinran abriu os microfones da rádio, nos últimos dez minutos de programa, para falar sobre a questão da mulher e contar suas histórias. Dessa investigação, surgiu esse livro maravilhoso e doloroso, chamado As boas mulheres da China (Cia das Letras, 2002).
Neste livro, conhecemos a história de tantas dores, de tantas injustiças, que é difícil classifica-las de uma forma honesta. Considerando a situação da mulher na Era Mao, Xinran diz o seguinte:
“Quando o corpo amadurecia, a menina se tornava vítima de ataques indecentes ou estupro – meninas como Hongxue, cuja única experiência de prazer sensual veio de uma mosca; Hua’er, violentada pela Revolução; a mulher na secretária eletrônica, dada em casamento pelo Partido; ou Shilin, que jamais saberá que cresceu. Os perpetradores foram seus professores, amigos, até seus pais e irmãos, que perderam o controle dos instintos animais e agiram de maneira mais feia e egoísta que um homem pode agir. As esperanças das meninas foram destruídas, e sua capacidade de sentir o prazer de fazer amor foi danificada para sempre. Se pudéssemos ter acesso aos pensamentos delas, passaríamos dez ou vinte anos ouvindo o mesmo tipo de história” – (XINRAN, 2002, pág. 213).
Vamos conhecer algumas dessas mulheres, que merecem toda a nossa admiração e respeito!
O primeiro relato já é um soco no estômago. Acompanhamos a história de Hongxue, uma garota de 17 anos que está no hospital. Ela nunca teve um lar saudável. Sua família é bastante disfuncional e ela é abusada pelo pai desde que entrou na puberdade. Sua mãe, por motivos fúteis e individuais, disse-lhe que este seria o seu sacrifício, que ela teria de suportar os abusos pelo bem comum. Dessa forma, Hongxue começou a provocar problemas de saúde em si mesma para estar sempre internada no hospital, acreditando que estar doente é melhor que viver em sua casa. Como nunca se sentiu amada por ninguém, ela se encanta por uma mosca que pousou em seu ombro no hospital e lhe fez uma carícia. Este passa a ser o seu animal de estimação.
A história da “Catadora de Lixo” também me fascinou. Uma mulher anônima, que passa despercebida por todos, por ser invisível. É assim que a sociedade enxerga as pessoas que catam lixo, que limpam os lugares, que garantem a limpeza das ruas e dos ambientes. Em contraponto com a invisibilidade, essa mulher é muito culta, professora de idiomas e tem um passado de muita dor e muito sofrimento. É também mãe, mãe de um homem rico, que se desvinculou totalmente dela e não tem ciência de onde ela vive e do que faz. É um relato que emociona e nos faz pensar sobre o que há sob as aparências de todas as pessoas que vemos passando pelas ruas das grandes cidades todos os dias.
Porém, chegar aos relatos das “Mães que viveram um terremoto” é acachapante. Eu nunca li nada que me deixasse tão reflexiva quanto as dores dessas três mulheres que compartilharam suas histórias com a Xinran. Nós não temos ideia do que é vivenciar uma coisa dessas e por isso, vou deixar que elas mesmas nos contem:
“Gritei como uma louca, mas ninguém me ouviu. De todo lado vinha o som de paredes desmoronando e de móveis quebrando. Fiquei ali, com a perna ensanguentada, olhando para o buraco enorme que tinha sido a outra metade da minha casa. O meu marido e as minhas lindas crianças tinham desaparecido diante dos meus olhos. Eu sentia vontade de chorar, mas não tinha lágrimas. Simplesmente não queria continuar vivendo” (XINRAN, 2002, pág. 80)
Tia Chen, autora desse relato perdeu toda a sua família no terremoto de 1976 que houve na cidade de Tangshan. A Sra. Yang também perdeu sua filha nesse mesmo desastre:
“Ficamos ali, examinando a cena à nossa frente: prédios desmoronados, canos de água estourados, buracos enormes no chão, cadáveres por todo lado, estendidos no chão, pendurados em vigas de telhados e pendendo para fora de casas. Estava se erguendo uma nuvem de poeira e fumaça. Não havia sol nem luar, ninguém sabia que horas eram. Começávamos a nos perguntar se ainda estávamos na terra dos vivos” (XINRAN, 2002, pág. 84).
Mas, a pior das histórias sobre a tragédia de Tangshan foi contada por Ding. Ela perdeu toda a sua família em consequência do terremoto. Após dois dias buscando a sua filha que ainda estava desaparecida: “ela estava puxando a calça para baixo, com um sorriso idiota no rosto, e tinha as pernas e as virilhas todas ensanguentadas. Foi aí que lembrei das palavras daqueles dois homens. Tinham se aproveitado da catástrofe para se aproveitar de Xiao Ying? Eu não ousava acreditar nisso. E a minha filha, uma garota cheia de vida e alegria, tinha perdido a razão” (XINRAN, 2002, pág. 93).
Essas três mulheres e muitas outras sobreviventes do terremoto fundaram uma ONG onde cuidam de crianças que perderam seus pais, oferecendo a elas todo o amor que não puderam continuar a dar a seus filhos biológicos.
“O tempo as trouxe para o presente, mas a cada minuto, a cada segundo que passou, elas lutaram com as cenas que a morte lhes deixou; e a cada dia e a cada noite arcam com o fardo das lembranças dolorosas de terem perdido os filhos. Não é uma dor que a vontade de um ser humano possa eliminar: o menor objeto doméstico – uma agulha com linha, um par de pauzinhos numa tigela – pode remetê-las aos rostos sorridentes e às vozes das almas mortas (…). Elas não enclausuraram a sua generosidade materna nas lembranças dos próprios filhos, não mergulharam em lágrimas e sofrimento, à espera de piedade. Com a grandeza das mães, formaram novas famílias para crianças que perderam os pais. Para mim, aquelas mulheres eram a prova da força inimaginável das chinesas” (XINRAN, 2002, pág. 95/96).
Xinran não poderia escrever esse livro sem mencionar as mulheres que participaram do partido comunista e como foi essa experiência para elas. Sua própria mãe se filiou ao partido, como uma forma de rebeldia contra seu pai, que foi um importante proprietário de terras em Nanquim e, com o domínio do partido comunista na China, teve de entregar seu patrimônio ao governo, foi preso, sobreviveu às torturas e tornou-se um homem sábio e respeitado por ser resiliente.
Porém, seus filhos não o compreendiam dessa forma. Anticapitalistas e apaixonados pela ideia do comunismo, se filiaram ao partido e sofreram as consequências por serem filhos de um homem capitalista e considerado inimigo do regime. Assim também aconteceu com uma ouvinte do Palavras na brisa noturna. Em seu relato emocionante, ela contou que aos 16 anos, por ideologia, se filiou ao partido comunista. Porém, era uma moça culta, livre, que estudou em escolas de modelo ocidental e foi obrigada pelo partido a se casar com um oficial mais velho, como se esta fosse a sua missão na luta comunista. Foi apartada de seus filhos, porque precisava acompanhar o marido em suas muitas viagens, que foram imprescindíveis para o seu sucesso profissional e posteriormente, perdeu o seu posto como mãe, pois seus filhos nunca a viram como tal. Por seu marido não a respeitar, os filhos também não se sentiam na obrigação de ter respeito ou carinho por ela, tratando-a com desprezo e desdém.
“Minha casa é uma mera vitrina de objetos domésticos: não existe comunicação de verdade na família, não há sorrisos nem risos. Quando estamos só nós, tudo que se ouve são ruídos da existência animal: comer, beber e ir ao banheiro. Somente quando temos visita é que há um sopro de humanidade. Nesta família, não tenho direitos de esposa e nem posição de mãe. Meu marido diz que sou como um pedaço de pano cinza desbotado, que não presta para fazer uma calça, cobrir a cama ou mesmo ser usado como pano de prato. Só sirvo para limpar lama dos sapatos. Para ele, minha única função é servir de prova da sua ‘simplicidade, diligencia e caráter correto’ para que possa passar a um cargo mais alto” (XINRAN, 2002, pág. 121).
Ao ler este relato, nos perguntamos “porque ela não se separou”? E a resposta não é simples. Em primeiro lugar, porque tinha medo do marido, que era um homem vingativo e mau. Segundo por causa das tradições e de tudo o que ela acreditava:
“Na época as mulheres obedeciam a três submissões e a quatro virtudes: submissão ao pai, em seguida ao marido e, depois da morte deste, ao filho. As virtudes eram fidelidade, encanto físico, decoro na fala e nos atos, e diligência no trabalho doméstico” (XINRAN, 2002, pág. 123).
A vida das mulheres chinesas nunca foi fácil. Elas sempre foram relegadas ao desprezo, a servir ao homem e a se calar. Na época da poligamia, as esposas mais jovens, as últimas esposas sofriam muito. Qualquer desvio das virtudes ou das submissões e até mesmo um cumprimento errado, servia como motivo para espancamento, jejum, punições como ficar ajoelhada sobre a tábua de lavar roupas, dentre outros absurdos como estes. Na versão romantizada das esposas jovens, que vemos no cinema e em alguns livros, elas são belas, atraentes e muito mimadas pelo marido. Mas, é tudo enganação. Só mesmo quem vivenciou essas experiências é capaz de afirmar o fardo que foi ser a última esposa de um homem.
Hua’er teve a sua infância roubada pela Revolução. Pertencente a uma família japonesa, feliz e bastante normal, foram abordados pelos soldados do partido e acusados de espionagem. Com o intuito de tirar o seu pai da cadeia, a irmã mais velha de Hua’er participou de “estudos” do regime, para a sua “reeducação”. A jovem Hua’er tinha ideais favoráveis à Revolução e quando abordada pelos soldados vermelhos e convidada a participar dos estudos, ela aos 11 anos aceitou o convite. Chegando lá, eles a doparam e disseram que “é nos lugares mais obscuros do corpo de uma pessoa que se encontram as raízes anticomunistas” e que por isso precisavam ver. Não preciso continuar contando as violências pelas quais ela passou, mas o fato é que sua irmã engravidou em uma dessas “sessões de reeducação”. Sua mãe, no auge do desespero por ver uma filha grávida e a outra criança violentada, tirou a própria vida, deixando os filhos e o marido enlouquecidos e eternamente infelizes.
Shilin era filha de um casal de proprietários de terra e adeptos ao campesinato (grupo de camponeses que viviam da agricultura). Por isso, seus pais foram expulsos da China e enviados ao Twain. Entretanto, no dia da partida, ela e sua tia não estavam em casa e tiveram de fugir para não serem apanhadas e presas pelo regime. Porém, após refazerem suas vidas e formarem uma nova família, estes também foram presos porque Shilin não se parecia com o pai adotivo e rechaçou as investidas de um colega da escola que desejava ficar com ela. Após muitos anos separados, sua tia a reencontrou em um campo de trabalhos forçados, totalmente apática e mentalmente perturbada. O relatório do médico dizia o seguinte:
“Segundo o relatório, o torso de Shilin tinha marcas de mordidas, parte de um mamilo fora arrancada e os lábios vaginais estavam dilacerados. O colo e o revestimento do útero estavam gravemente danificados, e os médicos encontraram um galho quebrado dentro dele. Não foram capazes de determinar quanto tempo ela tivera aquele galho alojado no útero” – (XINRAN, 2002, pág. 176)
Um tempo depois, a tia e o padrasto de Shilin encontraram o adolescente que os prendeu e os acusou formalmente de conspirações contra o regime. Ele afirmou que não tinha provas concretas contra a família, mas, para poder se vingar, forjaram as provas e os prenderam. A família prometeu denunciar essa conduta às autoridades, porém, as mulheres da aldeia onde viviam esses homens, ex-soldados vermelhos, suplicaram para que eles não denunciassem, pois, dessa forma, não teriam como se sustentarem sem os homens em casa. A tia de Shilin resolveu quebrar a corrente de ódio e de vingança aqui, deixando essas contas a serem pagas através da justiça divina.
Há um lugar distante e muito pobre na China que é conhecido como Colina dos Gritos. Xinran foi até lá conhecer as mulheres que vivem nessa aldeia. O choque foi imenso, pois, elas vivem de forma feudal, levam a sério todas as regras antigas de submissão da mulher. Trabalham desde o amanhecer até o pôr-do-sol, incansavelmente. Servem ao marido dia após dia, sem receber um afago sequer. Engravidam de um filho após o outro e só se alimentam adequadamente quando conseguem parir um filho homem, ocasião em que ganham uma gemada. Nos outros dias, elas comem as sobras do marido. Muitas dessas mulheres são compartilhadas entre irmãos e são “usadas” por eles quando lhes convém. Para os homens dessa aldeia, a função das mulheres se limita a serem usadas e parir, nada mais que isso.
Xinran lhes perguntou se são felizes e elas responderam que sim. Elas se sentem felizes porque não conhecem outro estilo de vida, não sabem nada sobre a existência fora da aldeia. Se um dia tiverem oportunidade de sair da Colina dos Gritos, talvez se sintam infelizes ou até mesmo nem consigam viver de outra forma. Quando Xinran estava sofrendo as agressões de seus colegas de escola por ser filha e neta de homens considerados anticomunistas, sua salvação veio de um professor que lhe abriu o seu esconderijo de livros e lhe disse o seguinte:
“Por mais revolucionárias que sejam, as pessoas não podem viver sem livros. Sem livros não compreenderíamos o mundo; sem livros não poderíamos nos desenvolver; sem livros, a natureza não pode servir a humanidade” – (XINRAN, 2002, pág. 189)
Por isso, continuo afirmando que sem a educação, sem os estudos e os livros, fatos como os citados acima podem acontecer novamente. Estamos em um momento de guerras pelo mundo a fora, onde a qualquer momento pode surgir uma terceira guerra mundial. Por isso, precisamos pensar em como queremos viver e quem queremos ser. A bestialidade do ser humano não tem limites e a cada dia que passa, eu me assusto mais com relatos como estes de As boas mulheres da China. Porém, por mais dolorosos que eles sejam, eu quero saber sobre o que aconteceu de ruim antes para que talvez, de alguma forma muito pequena, eu possa evitar que aconteça novamente. Essa é a grande importância da história e do jornalismo sério que é feito todos os dias.