crítica

As horas nuas – Lygia Fagundes Telles

Último romance da escritora brasileira, narrado através de três vozes distintas, unindo o discurso direto, indireto e o fluxo de consciência, nos apresenta a história de Rosa, ou Rosona, uma mulher na faixa dos cinquenta anos, que está enfrentando algumas questões muito humanas, como o envelhecimento, o luto, a depressão e o fim de sua carreira de atriz no teatro. A primeira voz a que temos acesso é a da própria Rosa, em uma sessão de terapia com sua analista Ananta. Neste primeiro momento, acessamos flashes de sua vida, alguns acontecimentos esparsos e depois, à medida em que entram as vozes de Rahul – o gato mais querido da literatura – e da terapeuta, a história de Rosa ganha corpo e nós entendemos o que está acontecendo com ela e os problemas que ela tenta enfrentar através da bebida.

Rosa foi uma mulher interessante, uma atriz bastante conceituada ao longo de sua carreira, ganhou muito dinheiro e foi casada com Gregório por décadas. O casal teve uma filha, Cordélia e levaram uma vida bastante comum nos lares do mundo inteiro: cada um tinha os seus próprios interesses e sem perceberem, eles iam se tornando cada vez mais individualistas e egoístas, fazendo com que o casamento aos poucos se esfacelasse. As relações afetivas que no começo do relacionamento eram tão fortes, foram se quebrando ao longo do tempo e tudo isso refletiu diretamente na vida e no comportamento de Cordélia, que era muito apegada ao pai e seguiu a carreira profissional da mãe.

Tema muito comum nas obras de Lygia, as relações familiares e a maternidade são fartamente abordadas nesta obra de forma sensacional, onde muitas vezes o leitor se vê refletindo sobre a sua própria vida familiar e seus relacionamentos interpessoais. Rosa é uma personagem cheia de camadas, muito complexa, que tem inúmeros defeitos, porém, teve também uma vida bastante difícil marcada pelo abandono. O pai, saiu de casa quando ela ainda era criança e o seu primeiro amor faleceu cedo, de forma abrupta. Apesar de ter uma boa relação com a mãe, sentia-se sozinha e encontrou refúgio nos braços de Gregório a quem se apegou com facilidade. Rosa era muito jovem quando o conheceu e se casaram. Além disso, ela é uma pessoa que precisa da aprovação constante dos outros para se sentir segura e seguir em frente.

Sendo assim, a aparência física e a beleza sempre foram uma grande questão para Rosa, tanto que quando lhe aparecem os primeiros cabelos brancos, sinais do envelhecimento, ela teve muita dificuldade em lidar com isso e toda essa carência e necessidade de autoafirmação a levaram a um caso extraconjugal com o seu assessor de carreira. Apesar de todas essas atitudes um tanto progressistas da protagonista, ela é bastante contraditória: não aceita a liberdade sexual de sua filha Cordélia e tem pensamentos antifeministas e conservadores. É uma mulher elitista e isso fica muito claro ao leitor devido à sua relação com uma das poucas pessoas que permaneceram em sua vida, a empregada Dionísia. Rosa tem sempre uma necessidade de mostrar aos outros que tem muito dinheiro e despreza os costumes e as idiossincrasias das pessoas mais simples, que não tiveram as mesmas oportunidades e os mesmos acessos que ela.

As ausências em sua via continuaram a persegui-la: Gregório faleceu antes de Rosa e pouco depois, quando suas crises de alcoolismo se tornaram frequentes e mais vexatórias, Diogo, o amante também a deixou. Cordélia sempre foi uma grande lacuna, uma ausência na vida da protagonista. Essa falta de ralação entre mãe e filha aconteceu por muitos motivos que também são bastante comuns na vida das pessoas e fáceis de reconhecer: prioridade ao trabalho, crises pessoais que nunca passam, falta de tempo para criar um vínculo com os filhos e o egoísmo, o individualismo dessa geração que pensa em produtividade e dinheiro, mas não nos laços interpessoais que precisam ser construídos e alimentados ao longo do tempo. Esse é o principal motivo da grande solidão de Rosa, que Lygia brilhantemente comparou aos quadros do pintor Edward Hopper, que tem como tema principal de suas obras, a solidão das pessoas.

Na página 165, temos uma passagem bastante proustiana, que mostra um retrato da sociedade através dos olhos elitistas e saudosistas de Rosa e que ilustra bem a sua personalidade e sua solidão:

A praça. Tantas vezes vim aqui com aquele pai fujão, era um lugar tranquilo, alguns casais de namorados. Algumas pajens fazendo tricô e vendo as crianças correndo nas alamedas de pedregulhos e areia branca. Então papai chamou o fotógrafo da máquina no tripé, nós dois posando de mãos dadas na pequena ponte em arco. Grandes chorões choravam o pranto verde-claro sobre o lago verde, um ou outro ramo mais longo boiando na água, O nome não é chorão, é salgueiro, me ensinou meu pai arrancando uma folhinha que me entregou como se fosse uma esmeralda, guardei a folha, guardei o retrato. Sumiu tudo, ele na frente.

Mas é esta aquela antiga praça? Há dezenas de barraquinhas e tabuleiros com vendedores miseráveis vendendo suas miseráveis quinquilharias, mendigos em cachos e os passantes. Se houvesse ao menos um banco vazio mas a espessa vaga da miséria transbordou e ocupou os espaços, a praça ocupada. A cidade ocupada. Mas de onde veio toda essa gente? Onde essa miséria se escondia antes? Eram gramados tão bem cuidados como os gramados dos parques londrinos e desceu um dos Cavaleiros do Apocalipse, o mais descarnado e encardido. Sigo meio encolhida pela alameda suja, os últimos cabeludos fazedores de pulseirinhas e brincos fazendo brincos e pulseirinhas. Desdobrados nos panos pretos, o mostruário das peças prontas bordejando a relva empoeirada. Os tabuleiros de amendoim e doces coloridos, fico olhando os tijolinhos de doce de coco. Goiabada. Mas há alguém que se interesse além da mosca obumbrada voejando as maçãs? Maçãs cristalizadas, tão vermelha a anilina em calda de açúcar que escorreu e ficou. Deve haver alguém que compre e coma com tamanho prazer porque senão esse comércio ao sabor do vento…, mas não vai chover, hein?! Pelo amor de Deus, hoje não” (TELLES, 2021, pág. 165/ 166)

As reflexões de Rosa, que mostram a sua frustração com a vida e além disso, sua alienação, nos levam a nossa segunda narradora que é Ananta, a psicóloga. Marcada pela ordem e pelas regras, a personagem se apresenta como alguém um tanto institucionalizada. Entretanto, ao longo da prosa, vamos percebendo algumas nuances de sua personalidade que destoam dessa aparência certinha que Ananta apresenta. Também solitária e infeliz, a mulher ocupa o seu tempo livre em ajudas humanitárias a mulheres vítimas de violência. Em contraponto à Rosa, Ananta é feminista engajada e luta pela igualdade de gêneros. Ao se apresentar à sociedade, mostra-se metódica, refinada e com total domínio de sua profissão. Ao passo em que na vida pessoal, ela é frágil, guarda consigo muitos conflitos internos e angústias. Em muitos momentos, chega a confundir a realidade com suas fantasias, levando o leitor à uma área nebulosa da mente humana, que mistura os sonhos com a vida real.

E nada melhor que essa confusão entre o real e o imaginário, para falarmos sobre o nosso terceiro narrador, que é Rahul, um gato sarcástico, anarquista e ateu, mas que será a voz de todos aqueles personagens dos quais não conseguimos acessar as mentes. Rahul chegou à casa de Rosa após ser encontrado por ela no caminho do teatro para o seu apartamento. Foi adotado, cuidado e assim como Cordélia, se apegou muito a Gregório. Estava sempre perto do dono, observando suas ações e principalmente seus sentimentos. Quando Gregório morre, aparentemente de infarto, somente Rahul tem certeza de que ele se suicidou e assim, compartilha com o leitor as agruras da vida de seu dono nos meses que antecederam sua partida.

Pouco antes desse trágico acontecimento, Gregório foi preso e torturado pela polícia, durante a ditadura militar. Um tempo depois, foi solto e apareceu em casa de repente, como se nada tivesse acontecido. Apesar dos apelos de Rosa para que ele se abrisse e contasse a ela o que aconteceu, o marido decidiu guardar aquela dor para si mesmo, porém, nunca mais foi a mesma pessoa. É como se seu espírito tivesse se desprendido do corpo e se tornado etéreo, impedindo o homem de manter um vínculo com a vida, a família e a realidade. Não suportando mais as angústias que trouxe da prisão, ele decidiu colocar um fim em sua vida.

A partir desse acontecimento, Rahul discute através de reflexões profundas, o direito do indivíduo de tirar sua própria vida, consequentemente, discute também as várias religiões existentes no Brasil e seu posicionamento diante do fim da vida. Ele vai falar também sobre os animais e suas tentativas de se matar, humanizando-os. E vai um pouco além desses temas, trazendo ao leitor outros personagens que habitam a sua mente e segundo ele, os ambientes do prédio onde vive com Rosa. Ao longo de sua narrativa, muitos espíritos aparecem para ele e suas histórias são contadas ao leitor, com diversas reflexões propostas por esse gato que é ao mesmo tempo sagaz e sensível ao nos mostrar as pessoas, vivas ou mortas. Há trechos da narrativa do Rahul que são emocionantes, principalmente em sua relação com Rosa, Gregório e Dionísia, pessoas que ele tenta defender e cuidar sempre que possível.

Lygia foi muito feliz colocando a voz de um gato como narrador, que apesar do traço fantástico, traz ao enredo uma dose de bom humor em meio a uma trama tão triste e tão carregada de temas pesados e importantes. Rahul pode ser lido como uma voz coletiva, que serve para criticar a sociedade e apontar as falhas humanas que provocam a dor, a infelicidade e a frustração do cotidiano. A autora também nos traz referências musicais interessantes e muita mitologia. A referência às Bacantes de Eurípedes é bem notória a partir das descrições da vida libertina de Cordélia.

Em relação ao tema principal, que é o luto ou a ausência de uma pessoa, os desdobramentos que a escritora mais trabalha e desenvolve, são a continuidade da vida após a morte de alguém, ou seja, ninguém é insubstituível. A partir do momento em que uma pessoa morre ou some, o lugar dela é ocupado por outros e um tempo depois, é como se ela não tivesse existido para o coletivo. É claro que os seus entes queridos guardam sua memória com carinho, mas para o mundo, ela simplesmente acabou e a vida segue. O tempo e as rotinas não param para que ninguém guarde o seu luto ou se recupere da ausência de alguém especial.

Essa é mais uma obra de Lygia Fagundes Telles que tem um final aberto. A autora não nos dá as respostas que estamos buscando desde o primeiro capítulo. Cabe ao leitor inferir sobre as pistas que são postas ao longo dos dezoito capítulos narrados alternadamente por Rosa, Ananta, Rahul e Renato Medrado, um novo personagem que aparece no final, e tirar as suas próprias conclusões sobre esses personagens tão marcantes e tão próximos da nossa realidade. Podemos ler esse romance como um episódio, um recorte da vida de vários indivíduos que compartilharam o mesmo tempo e o mesmo espaço, ou talvez, as mesmas horas nuas.

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