crítica

As ondas – Virgínia Woolf

Falar sobre Virgínia Woolf é ao mesmo tempo um grande prazer, pois ela é uma das minhas escritoras prediletas da vida, mas ao mesmo tempo é um desafio enorme. Isso porque cada uma de suas obras é única e geralmente, experimentais, em uma tentativa de transcendência ou de se fazer entender. Segundo a crítica, As ondas (Autêntica, 2021) é o romance mais desafiador da escritora pelo fato de ser narrado por seis vozes diferentes, que se interpõem umas sobre as outras e não há um narrador para nos guiar e nos dizer quem está falando o que. Também não temos os travessões, indicadores do discurso direto, sendo então esse livro um fluxo de várias consciências que formam uma história, acompanhando os seis protagonistas mais Percival – o elo entre eles, que se estende da infância à velhice desses personagens.

À princípio, pode-se pensar que é difícil ler algo como As ondas, entretanto, é importante revermos os nossos conceitos sobre dificuldades. Não vou mentir dizendo que é simples a leitura desse romance; não, é uma leitura desafiadora, porém, extremamente recompensadora no final. É importante pensar que a leitura de um livro consiste em abrir o volume e começar a decodificação dos códigos linguísticos que nos contarão uma história. E assim, voltamos para os conceitos linguísticos de Saussure (tão estudado na faculdade de Letras) que é a questão do significante (elemento tangível, perceptível e material do signo) e do significado (conceito, abstração do signo). E essa é a base simples de As ondas: Virgínia tenta dar novos significados abstratos aos pensamentos dos personagens, deixando-os cada vez mais multifacetados e chegando ao ponto de questionar se eles são únicos ou múltiplos.

A ideia desse romance surgiu quando a autora observou um conjunto de mariposas em volta da luz e começou a pensar sobre dois pontos: a brevidade da vida e a luta daquele inseto por ela. Na época, Virgínia refletia também sobre a maternidade e para ela, o grupo de mariposas lhe dava uma ideia do instinto materno, natural, implacável. Dessas reflexões, ela chegou à conclusão de que a morte é inexorável e assim, iniciou uma série de questionamentos sobre o porquê viver. Porque sentimos tanto medo da morte e fugimos dela sempre que se aproxima de nós? Virgínia sempre teve a mente inquieta e tinha um desejo intrínseco de se comunicar ao ponto de se aproximar profundamente do íntimo de seu leitor, fazendo com que ele sinta as dores de seus personagens, vivenciando com eles as experiências que ela narra em seus romances.

Por isso decidiu criar essa estrutura tão complexa em As ondas: através dos pensamentos dos seis personagens, se sobrepondo uns aos outros, ela compõe uma imagem. Dessa forma, o leitor não deve desistir da leitura no primeiro capítulo porque no final, uma imagem completa vai se formar para ele. O livro é dividido em nove episódios (capítulos), cada um deles começa com um interlúdio – composição instrumental que tem como função separar as partes musicais; no rádio, é um trecho musical que marca o início e o fim dos comerciais apresentados nos intervalos de um programa – seguido de solilóquios dos personagens contando sua trajetória de vida. Os interlúdios são compostos por descrições muito bonitas da natureza selvagem, do mar, do movimento das ondas, do céu e das aves marinhas. É importante que o leitor se atente a essas descrições porque no nono interlúdio a imagem completa irá ganhar forma e ficará nítido que a autora descreveu ali a passagem de 24 horas na praia, algo que se remete muito à Segunda Parte de outra obra da escritora, Ao farol.

 Já os solilóquios, vão contar as vicissitudes das sete vidas representadas no romance: Bernard, Jinny, Louis, Neville, Rhoda, Susan e Percival. No primeiro episódio, eles são crianças e é difícil saber quem está contando cada acontecimento e também como eles se conheceram. A partir do segundo episódio, as situações vão se esclarecendo, quando esses personagens estão na adolescência, entrando na juventude. As agruras da vida começam a ganhar forma mais concreta, tais como a falta de oportunidades de alguns dos amigos em frequentar a universidade, a personalidade deles também começa a se apresentar com mais força e os conflitos ficam maiores. Ao longo dos demais episódios, acompanhamos os ressentimentos que eles guardam uns dos outros, as experiências que cada um deles terá e vemos os contornos sobre a morte de Percival, acontecimento que vai afetar todos eles, cada um à sua maneira.

Ao longo dessa história, onde acompanhamos os personagens desde a infância até a velhice, Virgínia trata sobre temas universais e atemporais, tais como o envelhecimento, principalmente no episódio 7, através da personagem Susan, que questiona a presença das rugas, da flacidez do corpo, da falta de atrativos em uma pessoa velha. Pensa também sobre aqueles que se foram e que ela sobreviveu a eles para contar a história de todos. Outro tema que permeia o romance é a questão da identidade, sempre voltando para a questão de que somos únicos, porém somos complexos e assim podemos ser todos. Ao mesmo tempo, a autora mostra de forma sutil, mas muito bem elaborada, que nós somos um resultado das nossas interações, tanto com as pessoas como com o meio onde vivemos. É lindo ver a Virgínia desenvolvendo esse tema ao longo da prosa.

Uma característica muito forte desse romance é o mosaico que ele forma. Assim, os próprios personagens dizem algo e depois eles retiram o que disseram antes, ou melhor, mudam de opinião, assim como qualquer ser mutante, aberto às possibilidades e ao aprendizado. Essa mutabilidade da vida também é retratada o tempo todo no livro, nos levando à reflexão de que a nossa única certeza é a mudança em fluxo contínuo que se renova: a vida ou “as ondas”. Todo esse romance foi elaborado para ser circular ou para reproduzir o movimento das ondas na praia. Por isso, ele é carregado de metáforas, de impressões intercortadas dos personagens que só farão sentido no final e também ele se propõe unir a prosa, a poesia e o teatro em um único texto. Quando lemos essa obra em voz alta, essa característica única dele se revela com clareza. As falas sobrepostas nos remetem ao gênero dramático; as descrições da natureza através dos interlúdios fazem as vezes tanto da poesia, como também das rubricas teatrais e por fim, tudo isso é feito em prosa.

A concepção desse romance é muito ambiciosa e talvez, somente uma pessoa tão corajosa e visionária como Virgínia poderia tê-la escrito. Em As ondas, encontramos traços dos romances e textos anteriores da escritora. Como já mencionado antes, os interlúdios fazem um forte diálogo com a obra Ao farol, onde há traços autobiográficos da autora. Quando ela questiona a identidade dos personagens, ela desenvolve mais um pouco o que já havia feito em Orlando, porém, de uma outra maneira, nos levando a refletir sobre a nossa permanência na Terra e sobre as nossas ações impactando nos outros. A valorização da vida e o ritmo das vozes, é um diálogo com Mrs. Dallowey, inclusive a ambientação de As ondas, lembra muito esses lugares descritos em seu romance anterior.

O trabalho de Virgínia Woolf neste romance foi fenomenal. Ela construiu várias imagens dentro de um todo, compondo não apenas a passagem de um dia na praia, que começa no primeiro episódio e termina no nono, como também, ao longo dessa passagem das horas, ela mostra tanto a brevidade da vida, como a sua importância, através da quantidade de coisas que fazemos e que vivemos ao longo dos anos e que não observamos de forma mais atenta. Enquanto o dia passa, os personagens amadurecem. A partir dessa chave de leitura e do último trecho de As ondas, Virgínia nos prova que sua obra inteira sempre foi e sempre será uma luta da vida contra a morte:

Que inimigo vemos agora avançando em nossa direção, pergunto a ti, em quem monto agora, enquanto permanecemos aqui, pateando esse trecho de calçada? É a morte. A morte é o inimigo. É a morte em direção à qual cavalgo com a lança em riste e os cabelos esvoaçando para trás, como os de um jovem, como os de Percival, quando galopava na Índia. Esporeio o meu cavalo. Em direção a ti me lançarei, invicto e inabalável, oh, Morte!

As ondas quebravam na praia” (WOOLF, 2021, pág. 232)

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