crítica

As pequenas virtudes – Natalia Ginzburg

Natalia Ginzburg foi uma escritora, jornalista e ensaísta italiana, de origem judia, que viveu o auge do fascismo italiano, liderado por Mussolini. Contextualizando a situação da escritora, o regime fascista tinha como ideologia a radicalização conservadora de extrema direita, envolvendo o racismo, a xenofobia e a perseguição às famílias de ideais políticos contrários ao regime. O governo se valia do cenário de insegurança pós-Primeira Guerra Mundial para se firmar no poder, usando de violência física a fim de inibir qualquer tipo de manifestação supostamente socialista ou contrária aos seus ideais de direita. O regime é marcado por uma posição extremamente nacionalista, pelo autoritarismo, pela obediência cega aos comandos do chefe de estado, pelo desprezo à democracia, culto à personalidade, corporativismo, militarização da sociedade, criação de inimigos internos, crença na superioridade racial, mobilização das massas e pelo uso da violência como forma de alcançar seus objetivos.

Com o intuito de impulsionar o povo italiano a apoiar o governo, suas lideranças criaram um mito de resgate ao passado romano, buscando a força do povo italiano e objetivando a conquista de novas terras. O nome do partido e o seu principal símbolo vêm da mitologia romana, onde fascio significa feixe, associando esse símbolo à ideia de união do povo, o que garantiria a sua vitória em uma possível disputa contra outras nações. A situação da Itália nas décadas de 1910/ 1920, era bastante delicada tanto na esfera social, quanto econômica e política. A indústria entrou em crise após a Primeira Guerra e os soldados que voltavam para casa não conseguiam empregos; as disparidades sociais também estavam agravadas: o norte, mais rico e o sul mais pobre estavam cada vez mais longe de uma consolidação econômica que os aproximasse. Havia ainda um conflito territorial, onde a Itália saiu perdendo após apoiar belicamente os vencedores. Portanto, a crise econômica aliada ao sentimento de frustração da população somada à crise política, onde o parlamento não era capaz de representar os interesses desta, formou um cenário propício para o empoderamento desse grupo radical, liderado por Mussolini à tomada do poder.

Além disso, grupos com ideais socialistas estavam ganhando força na Itália, grupo esse do qual fazia parte a autora Natalia Ginzburg. Representados principalmente pelos sindicatos e pelos movimentos trabalhistas, havia um certo receio de que essas lideranças conquistassem espaço na política e que o socialismo ganhasse força no país. Parte da população, tomada por uma grande ansiedade e por um medo atroz da Itália se transformar em um país como a Rússia, apoiaram veementemente Mussolini e o partido fascista acreditando estarem assim protegidos do comunismo. Assim como todos os regimes totalitários, o fascismo italiano também começou devagar, até que, em um certo momento, as liberdades de expressão, de manifestação e de filiação à partidos socialistas se tornaram proibidas. Inspirado pelos ideias nazistas, as pessoas de origem judia passaram a ser perseguidas e qualquer um que estivesse atrapalhando os planos do Governo, seria sumariamente perseguido e considerado insurgente.

A obra de Natalia Ginzburg, toda ela, está voltada para esses conflitos sofridos por sua família. O primeiro marido da autora, Leone Ginzburg morreu em uma prisão alemã em 1944, após ser preso pelas tropas nazistas por ser judeu. Neste livro de ensaios autobiográficos, a escritora narra muitas de suas experiências de fugas no meio da noite com os seus filhos pequenos, os horrores pelos quais passou, a fome, a miséria, a perda de tudo e de todos os entes queridos por um governo totalitário, pautado na desumanidade, na anulação do outro e na violência extrema. Com muita sensibilidade, Ginzburg nos traz aqui uma verdadeira lição de vida, de sobrevivência, de resiliência e de resistência.

Os textos apesar de muito líricos, são intensos, tratam sobre temas universais, muito sérios e mostram como cada pessoa se transforma de acordo com as suas vivências, principalmente aquelas provenientes de um sofrimento muito grande, de um despojamento de suas esperanças e desejos mais caros. Sobreviver a uma perseguição constante, em meio à neve, ao frio, à fome e se ver à mercê da bondade dos outros, da compaixão alheia, transforma qualquer indivíduo em alguém diferente. E nesse caso, cada um levará para a sua nova vida o que lhe couber: além de muita dor, pode-se levar as pequenas virtudes ou uma revolta imensa que consumirá para sempre a sua existência. É sobre isso que vamos conversar nas sinopses dos ensaios que mais gostei desse livro, apesar de quase todos eles terem sido marcados com uma estrelinha de favoritos. Entretanto, os que selecionei aqui para discussão são, na minha opinião, os mais importantes e os mais tocantes.

Em Elogio e lamento da Inglaterra, a autora fala um pouco sobre o sentimento de melancolia dos ingleses, de como o estilo de vida deles é totalmente diverso dos italianos. Passeando pelas ruas de Londres, pelos cafés, ela produz sátiras bem-humoradas, além de reflexões muito pertinentes sobre o povo londrino, como por exemplo, a sua eficiência em resolver problemas de ordem prática. E isso os faz tão pragmáticos, que até mesmo as suas árvores são plantadas de forma organizada e planejada, deixando-as mais tristes, apesar de belas. Os ônibus vermelhos servem, na opinião da autora, para darem vida a uma cidade cinza, nublada e triste. A arrogância predominante de seu povo os impede de se espantar diante do diferente e consequentemente de se surpreender. E assim, apesar de serem muito inteligentes, essa sabedoria não é vista nas ruas. Ao adentrar em um dos seus elegantes cafés, ela faz a seguinte reflexão:

Muitas vezes me perguntei qual seria o motivo de tanto desolamento nos cafés ingleses. Talvez derive do desolamento das relações sociais. Qualquer lugar onde os ingleses se reúnem para conversar transborda de melancolia. De fato, não há nada mais triste no mundo do que uma conversa inglesa, sempre concentrada em não beirar nada de essencial, detendo-se sempre na superfície. Para não ofender o próximo violando sua intimidade, que é sagrada, a conversa inglesa zumbe em torno de assuntos de extremo tédio para todos, contanto que não apresentem perigo”. (GINZBURG, 1962, pág. 36/37)

Em O filho do homem, a autora conduz o leitor a um dos episódios mais acachapantes da vida de uma pessoa: a perseguição. Aqui, o foco dela é nas tentativas de capturas do exército fascista, unido aos nazistas, dos judeus e seus descendentes. Mas suas descrições cirúrgicas e precisas são universais no sentido de caber como uma luva nas situações que muitos de nós também já passamos em relação a perseguições por xenofobia, antissemitismo, preconceitos de gênero, raça e classe. Ou também por outros tipos de situações às quais somos submetidos ao medo constante, à sensação intermitente de insegurança:

Para alguns a guerra só começou com a guerra, com as casas desmoronadas e os alemães, mas para outros ela começou antes, desde os primeiros anos do fascismo, e por isso a sensação de insegurança e de permanente perigo é ainda maior. O perigo, a sensação de precisar se esconder, a sensação de precisar deixar o calor da cama e das casas, começou, para tantos de nós, há muitos anos. Insinuou-se nas diversões juvenis, nos acompanhou nos bancos de escola e nos ensinou a ver inimigos em todo lado. Assim foi para muitos de nós, na Itália e em outros lugares, e se acreditava que um dia poderíamos caminhar em paz pelas ruas de nossas cidades; mas hoje, quando talvez possamos caminhar em paz, hoje nos damos conta de que não nos curamos daquele mal. Assim somos constrangidos a buscar sempre novas forças, sempre uma nova dureza para contrapor a qualquer realidade. Somos impelidos a buscar uma serenidade interior que não nasce dos tapetes e dos vasos de flor” (GINZBURG, 1962, pág. 65)

No ensaio As relações humanas, Ginzburg dá um show de escrita e de sensibilidade ao relatar o crescimento e a transformação de uma pessoa através de suas experiências e de suas relações com o outro. Ela parte da infância, mostrando como as atitudes dos pais afetam as crianças de diversas formas. Depois, passa para a adolescência e a sua constante busca por aceitação, que culmina em momentos de enfrentamento e descontentamento que terminam por ser descontados nos próprios pais. Na fase adulta, vem o crescimento, a descoberta do mundo e do que realmente tem valor na vida. Claro que a guerra e seus horrores permeiam esse texto, mas os sentimentos narrados ao longo da prosa são universais e atemporais. Me identifiquei com diversos pontos que ela levantou aqui, assim como percebi melhor os sentimentos da minha filha adolescente, que vivencia muitas das experiências colocadas pela autora. Por isso, esse foi um dos meus textos favoritos da coletânea e uma das coisas mais bonitas que já li na vida.

Entretanto o amigo que deixamos de frequentar sofre por nossa causa; assim como sofrera o primeiro da classe, quando deixamos de frequentá-lo. Sabemos disso, mas não temos remorso; aliás, sentimos uma espécie de prazer surdo, porque, se alguém sofre por nossa causa, é sinal de que temos em nossas mãos o poder de fazer sofrer: nós, que por tanto tempo nos achamos fracos e insignificantes. (…) não temos nem a suspeita de que aquele nosso amigo também seja o próximo; nem pensamos que o próximo sejam os nossos pais: o próximo são os pobres” (GINZBURG, 1962, pág. 101)

Sobre a chegada da maternidade, ela diz:

Filhos nascem, e cresce em nós o medo da pobreza; aliás, medos infinitos crescem em nós, de qualquer perigo possível ou sofrimento que possa atingir nossos filhos em sua carne mortal” (GINZBURG, 1962, pág. 103)

Sobre o crescimento através da dor, ela conclui:

Somos adultos porque temos nos ombros a presença muda das pessoas mortas, a quem pedimos um juízo sobre o nosso comportamento atual, a quem pedimos perdão pelas ofensas passadas; gostaríamos de arrancar do nosso passado tantas palavras cruéis que dissemos, tantos gestos cruéis que fizemos, quando ainda temíamos a morte, mas não sabíamos, não tínhamos entendido como é irreparável e sem remédio, a morte: somos adultos por todas as respostas mudas, pelo perdão calado dos mortos que trazemos dentro de nós. Somos adultos por aquele breve momento que um dia nos coube viver, quando olhamos como se fosse pela última vez todas as coisas da terra e renunciamos a possuí-las as restituímos à vontade de Deus; e de repente as coisas da terra nos parecem em seu lugar preciso sob o céu, e assim também os seres humanos, e nós somos suspensos a olhar do único ponto exato que nos foi dado: seres humanos, coisas e memórias, tudo se pareceu em seu exato lugar sob o céu” (GINZBURG, 1962, pág. 107/108)

Concluindo As relações humanas, ela diz:

As relações humanas devem ser descobertas e reinventadas todos os dias. Devemos sempre nos lembrar de que toda espécie de encontro com o próximo é uma ação humana e, sendo assim, implica necessariamente mal ou bem, verdade ou mentira, caridade ou pecado” (GINZBURG, 1962, pág. 109)

As pequenas virtudes, texto que dá nome a essa coletânea, fala sobre a educação dos filhos a partir dessas que a autora considera “grandes virtudes”:

No que diz respeito à educação dos filhos, penso que se deva ensinar a eles não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor de verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber” (GINZBURG, 1962, pág. 110)

A partir desse argumento, a autora desenvolve um raciocínio fascinante sobre o que ela considera um modo respeitoso de se viver e de evitar as grandes tragédias do mundo. É importante lembrar o contexto em que ela viveu para chegar a tais conclusões. Para nós, pessoas que desconhecem o sofrimento visceral, suas falas podem parecer estúpidas, mas Ginzburg perdeu tudo o que tinha: parentes, amigos, filhos, casa, pátria; por isso, tem um lugar de fala totalmente diferente do nosso e seus argumentos são muito válidos e bonitos, quando bem interpretados, servindo bem para qualquer circunstância.

Sobre o acúmulo de dinheiro, um dos grandes males da humanidade e uma das razões principais de conflitos, ela diz:

Recordamos que, em nossa infância, ganhamos de presente um mealheiro igual; mas esquecemos que, no tempo de nossa infância, o dinheiro e o gosto de conservá-lo eram algo menos horrível e sujo que hoje: porque quanto mais o tempo passa, mais o dinheiro é sujo. Então o mealheiro é o nosso primeiro erro: instalamos em nosso sistema educativo uma pequena virtude” (GINZBURG, 1962, pág. 113)

Para a autora, esse apego ao dinheiro apenas crescerá e por isso o indivíduo terá muita dificuldade em lidar com as frustrações daquilo que se pode comprar, ou seja, a cada objeto comprado, outro desejo surgirá e assim, junto a isso, vem a ganância. Ginzburg considera que o maior desafio do educador é “adivinhar os tempos”, pois se as ações não acontecerem no tempo certo, se tornarão ineficazes.

Outro ponto importante que ela aborda neste ensaio é sobre o sistema de recompensas, utilizados por nós pais com muita frequência. Inclusive indicados por profissionais ligados à área da psicologia e da pedagogia. Contrariando todas as expectativas, Ginzburg é contra esse sistema e explica o porquê:

É um erro menor – mas é um erro – oferecer dinheiro aos filhos em troca de pequenos serviços domésticos, de pequenas tarefas. É um erro porque nós não somos empregados dos nossos filhos; o dinheiro familiar é tanto deles quanto nosso: aqueles pequenos serviços, aquelas pequenas tarefas não deveriam ter nenhuma recompensa, mas ser uma colaboração voluntária na vida familiar. (…) Porque a vida raramente terá prêmios e punições: no mais das vezes os sacrifícios não têm nenhum prêmio, e frequentemente as más ações não são punidas, mas, ao contrário, lautamente recompensadas com sucesso e dinheiro” (GINZBURG, 1962, pág. 119)

Para finalizar esse texto tão rico em nos ensinar um pouco sobre a vida e sobre a nossa ocidentalidade, que muitas vezes nos faz ridículos, ela fala sobre a vocação, tanto de pais quanto de filhos. Para a ensaísta é cruel quando os genitores não conseguem seguir a sua própria carreira profissional e dessa forma, resolve transmiti-la aos filhos, como se fosse uma obrigação de autorrealização, tornando-se um fardo para o outro. De acordo com as sus experiências e observações, o mais importante é permitir que os filhos escolham seu próprio caminho, enquanto os pais os guiam, ajudando nos seus fracassos e apoiando seus recomeços.

Uma vocação é a única saúde e riqueza verdadeiras do homem. (…) Esta talvez seja a única oportunidade real que temos de ajuda-los [aos filhos] em alguma medida na busca de uma vocação: termos nós mesmos uma vocação, conhece-la, amá-la e servi-la com paixão, porque o amor à vida gera amor à vida” (GINZBURG, 1962, pág. 122/123)

Dessa forma, fica claro que para educar um indivíduo, antes de sermos pais, devemos ser uma pessoa, com uma vida própria, uma carreira, uma vocação, hobbies, gostos e tudo o mais que compõe um ser humano. Sem essas características, torna-se impossível sermos bons educadores e bons pais, pois estaríamos incompletos e as relações não seriam fortes o bastante para sustentar-se.

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