crítica

As vinhas da ira – John Steinbeck

Grande clássico da Literatura Norte-Americana, um dos romances mais bonitos e impactantes que já li e um daqueles que considero um livro que todos deveriam ler um dia, As vinhas da ira (Record, 2022) é uma narrativa que conta a saga da família Joad em migração do estado de Oklahoma para a Califórnia, em busca de oportunidades de trabalho e de uma vida melhor.

O romance se propõe através dessa família, contar a histórias de muitas pessoas que foram fortemente afetadas por dois fatores históricos que transformaram as suas vidas em uma eterna peregrinação pelos Estados Unidos, sendo que onde sempre viveram não era mais possível ganhar o pão. O primeiro fator é de ordem socioeconômica, a famosa Grande Depressão norte-americana – também conhecida como crise de 1929, trata-se de uma forte recessão, que provocou a queda do liberalismo econômico e consequentemente, a superprodução e a especulação financeira. Essa crise econômica só terminou com a Segunda Guerra Mundial.

O segundo fator, de ordem socioambiental, foi um fenômeno provocado pelo homem, através de práticas inadequadas de manejo do solo, chamado Dust Bowl. Esse episódio climático se consistiu em uma tempestade de areia que atingiu a região das Planícies Altas dos Estados Unidos e durou quase dez anos. Uma das consequências desse acontecimento foi um período de oito anos de seca, com nuvens de pó que encobriam o sol, fazendo com que os dias parecessem noite. Dessa forma, estados como Oklahoma foram drasticamente afetados, com suas terras tornando-se improdutivas.

Muitas famílias, no romance de John Steinbeck representadas pelos Joad, viviam na região desde sempre e cultivavam as terras em um sistema conhecido como “meeiro”, que nada mais é que o agricultor pobre, que não possui terras, cultiva gêneros alimentícios ou criação de animais em terras de seus patrões, dividindo com eles os lucros de suas colheitas ou da carne de suas criações. Com os problemas advindos da Grande Depressão e logo depois o início do Dust Bowl, tanto os proprietários de terra quanto os agricultores, ficaram sem condições de tirar o seu sustento da terra e assim, aqueles que tinham dinheiro, resolveram seu problema investindo em máquinas agrícolas, dispensando assim os trabalhadores ou mesmo demolindo as casas e destruindo os campos a fim de construir ali novos empreendimentos, que não precisassem da agricultura para sobreviver.

Dessa forma, os agricultores perderam o seu ganha-pão e sua moradia de uma vez só. Com uma enorme população de desabrigados e desempregados, alguns empresários bem-sucedidos da região da Califórnia, que não fora atingida pelo Dust Bowl, se uniram, formando acordos que beneficiavam os grandes conglomerados agrícolas e pretendiam explorar a mão-de-obra dessas pessoas humildes que estavam em petição de miséria. Assim, esses proprietários de terras mandaram imprimir folders convidando as pessoas para trabalhar nas fazendas da Califórnia. Prometiam mundos e fundos e faziam com que famílias inteiras vendessem tudo o que tinham para peregrinar até as suas fazendas em busca de trabalho.

Muitos oportunistas surgiam diante dessas desgraças. A começar por aqueles que trabalhavam com compra e venda de veículos. Mesmo vendo a dificuldade das famílias em comprar o básico para comer, eles exploravam os trabalhadores, vendendo a eles carros sucateados a um preço exorbitante e, quando alguém queria vender o seu automóvel, eles compravam pelo menor preço possível, a fim de lucrar de forma desonesta em cima da dor dos outros. Assim a família Joad, nosso microcosmo de um problema universal, adquiriu um caminhão velho, juntou todas as suas poucas coisas e em um número de 13 pessoas, seguiu viagem rumo à Califórnia.

Não é preciso dizer que nem toda a família vai chegar ao Oeste. Diante de tantos perrengues e de tantos obstáculos, muitos se perderão pelo caminho. A jornada da família é árdua, sendo esta uma metáfora da vida, da nossa caminhada. Os problemas vão surgindo, eles vão resolvendo aos poucos, da forma que conseguem. Aparecem muitas pessoas para desmotiva-los, mas eles seguem em frente. A personalidade de cada um deles começa a sobressair diante dos problemas e essas idiossincrasias são fundamentais para a definição do destino dos personagens. Conseguimos mensurar a dor dessa família através da escrita de John Steinbeck – em alguns trechos do livro, é possível sentir fome. Além disso, também conseguimos enxergar nos treze personagens um pouco de nós mesmos e das pessoas que convivem conosco diariamente: perseverança, fé, sonhos, egoísmo, empatia, generosidade, angústia e culpa acompanham essa família até a Califórnia.

Duas personagens se destacam nessa jornada. A primeira delas é a Sra. Joad, em minha opinião, uma das protagonistas mais bem construídas da literatura. Nas primeiras páginas do romance o narrador a descreve assim:

Seu rosto cheio não era flácido, e sim firme, conquanto brando. Os olhos cor de avelã sugeriam os muitos dramas que devem ter presenciado e pareciam ter atingido a dor e o sofrimento, escalando, degrau após degrau, até alcançarem uma serenidade e uma compreensão sobre-humanas. Ela parecia cônscia do papel importante de baluarte da família que desempenhava, parecia saber da importância da posição que ocupava e que ninguém lhe poderia jamais disputar. E, visto que o velho Tom e as crianças não conheciam doença ou medo desde que a mãe não os sentisse, ela acabava por não conhecer qualquer hesitação. E quando algo de alegre, prazenteiro, lhes acontecia, eles primeiro olhavam para ela, a fim de ver se ela estava alegre; a mãe estava acostumada a tirar alegria até das coisas menos alegres. Melhor que a alegria era a calma que ela demonstrava. Sabia permanecer imperturbável. E dessa sua posição ao mesmo tempo grande e humilde ela extraía serenidade e uma calma superior. Da sua posição de médica de almas, hauriu segurança, tranquilidade e domínio de gestos; de sua posição de árbitro, tornou-se distante e fria como uma deusa. Parecia saber que dependia dela o edifício de sua família; que, se ela se mostrasse perturbada ou tomada pelo desespero, todo esse edifício desmoronaria ao menor sopro de ventos adversos”. (STEINBECK, 2022, pág. 90)

A segunda personagem que quero destacar aqui é Rosa de Sharon, a filha mais velha da família Joad. Jovem, recém-casada e grávida, é a responsável pelos devaneios e sonhos de prosperidade e de uma vida melhor. Sua juventude reverbera no restante da família de formas diferentes, fazendo com que a Sra. Joad tente mostrar à filha que as expectativas dela são altas demais e que não existe futuro sem o coletivo, sem que um ajude o outro. Os delírios de Rosa de Sharon são ao mesmo tempo tristes, pois o leitor sabe bem, assim como a Sra. Joad que nada daquilo vai se realizar; porém, ao mesmo tempo, são também um sopro de vida, de esperança para a família seguir em frente. Ela é a causa dos desdobramentos finais do romance, para o bem e para o mal e talvez, a personagem que mais se transforma como ser humano nessa jornada.

A cena mais impactante e que certamente guardarei para sempre na minha memória está no capítulo 20 desse romance. A família Joad chega a um acampamento de migrantes esfomeados e sem trabalho há semanas. Essa é a primeira parada deles já na Califórnia e por isso, crendo que encontrarão trabalho já nas próximas horas, a Sra. Joad resolve fazer o restante da sua carne de porco em um guisadinho. Sua intenção é a melhor possível, ela quer agradar e alimentar bem sua família, após dias de tristeza e desespero pelas estradas. Entretanto, as pessoas do acampamento não comem carne há dias e assim, logo que o cheiro se espalha no ar, as inúmeras crianças se aproximam para comer também. Após servir todos os membros de sua família, menos a si própria, a Sra. Joad deixa o restante do guisadinho para as crianças dividirem. Além de ser uma cena completamente triste, pouco depois disso, uma mulher do acampamento vai até a tenda dos Joad reclamar com a matriarca sobre sua atitude “arrogante e antipática” – “onde já se viu fazer guisadinho? E ainda dar para os meus filhos? Aqui não é lugar para isso”. Enfim, a miséria, a fome e a dor são tão profundas que as pessoas vão perdendo a sua humanidade.

A narrativa do livro é feita através de um narrador onisciente, com capítulos intercalados de enredo e contextualização histórica, baseada em pesquisas feitas pelo autor. Steinbeck utiliza tanto o discurso indireto livre, quanto os diálogos tradicionais para contar sua história, porém, a maior parte do livro é realmente feita em terceira pessoa. Não digo que essa é uma leitura fluida, pois a trama é densa e em muitos momentos, a narrativa se torna mais lenta até mesmo para dar ao leitor uma dimensão do que é essa travessia tão difícil. Entretanto, a linguagem é simples, com presença constante da oralidade, marcando o dialeto de Oklahoma.

As vinhas da ira foi uma releitura para mim e certamente relerei mais vezes esse romance. É uma obra inesgotável e a cada vez que a revisitamos, percebemos novas nuances e detalhes que passaram despercebidos na leitura anterior. O romance é fruto de uma reportagem que John Steinbeck fez durante os anos do Dust Bowl e, após o seu artigo ser publicado, ele reuniu suas pesquisas e anotações, transformando-as em um livro de ficção, porém, muito realista – o autor questionou muitas pessoas sobre a verossimilhança de sua obra com a realidade. Afinal, seu objetivo era contar a história dessas pessoas que foram abandonadas pelo Estado no momento em que mais precisavam de ajuda.

A história do romance de Steinbeck me lembrou muito a trajetória de Itamar Vieira Júnior com o seu icônico Torto Arado. Assim como o autor norte-americano, ele também reuniu suas anotações sobre os quilombos e a população de trabalhadores rurais na Bahia para compor a sua obra-prima. Os romances se parecem até certo ponto, têm bastante aspectos em comum. Então, se você gostou de Torto Arado, é provável que goste também de As vinhas da ira. De qualquer maneira, recomendo fortemente os dois romances para vocês. São dolorosos, mas necessários.

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