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Autobiografia: o mundo de ontem – Stefan Zweig

Conheci Stefan Zweig em 2021, quando vi a Paloma Lima e a Érika Neves elogiando sua obra. Comecei lendo algumas de suas novelas, das quais gostei demais. Posteriormente, li sua primeira obra de não-ficção, a biografia de Maria Antonieta, leitura que o consagrou como um dos meus escritores favoritos. Mas eu sabia que de todos os seus livros, o que mais me chamava a atenção e provavelmente aquele que eu mais gostaria, é o Autobiografia: o mundo de ontem, que foi uma das minhas últimas leituras de 2022 e também uma das melhores.

Essa introdução serve para que eu possa tentar resumir a história de um homem que foi tão grande, que escrevia magistralmente bem, que foi um cidadão europeu do mundo, livre e quando não pode mais ser essa pessoa, saiu de cena mantendo a sua dignidade, em suas palavras “talvez se compreenda agora que eu a tenha julgado feliz de não ter de continuar vivendo entre tais seres humanos”. Zweig se refere neste trecho à sua mãe, que faleceu logo no início da invasão da Áustria pelas tropas nazistas, que destruíram a paz das pessoas e as obrigaram a ter como inimigos os seus vizinhos, parentes, colegas de trabalho e amigos íntimos.

Entretanto a vida desse grande artista não se resume às guerras – ele viveu intensamente desde muito jovem. Suas memórias têm início em sua adolescência, quando a Europa fervilhava com a possibilidade de maiores deslocamentos, com a difusão da cultura, da arte, da literatura, com o surgimento dos famosos cafés europeus, onde as pessoas se reuniam para discutir assuntos ligados ao espírito e à arte. Figuras como Freud, Reiner Maria Rilke, Mozart, Schubert, Thomas Mann, Herman Hesse, James Joyce e tantas outras estavam circulando pela Europa, criando suas obras, estudando e produzindo o que hoje conhecemos como cânone das artes. Lendo os seus relatos, o leitor consegue alcançar esse esplendor da cultura e se sentir introduzido nesses lugares descritos com tanto carinho pelo autor.

Zweig conta um pouco da trajetória de sua família, explica ao leitor como funcionava a aristocracia austríaca, quais eram os seus costumes, fala também um pouco sobre a cultura judaica e sobre a importância dos estudos e dos títulos para as tradições de sua família. Uma das primeiras frases dessa autobiografia diz o seguinte: “fui festejado e desprezado, livre e subjugado, rico e pobre. Minha vida foi invadida por todos os cavalos do Apocalipse, revolução e fome, inflação e terror, epidemias e emigração” e só por aí, já se tem uma noção do que vamos encontrar nessas páginas de história do mundo que se une à história pessoal de um homem.

O título dessas memórias é explicado logo nos primeiros capítulos, onde o autor fala sobre o que ele chama de “mundo de ontem”, que seria o estilo de vida do século XIX, onde as pessoas seguiam as regras, tinham muita segurança, sabiam exatamente quanto ganhariam, o que gastariam, quando se aposentariam e como seria suas vidas até o fim. Essa vida pautada na segurança impedia muitas vezes que os indivíduos se arriscassem a fazer algo diferente, voltado para suas aptidões ou para seus desejos. Tudo era baseado em regras rígidas de comportamento, que começavam nas vestimentas e terminavam no comportamento exigido a todos. No “mundo de ontem”, não se dizia o que se pensava, não se casava por amor, um homem tinha de demonstrar a sua masculinidade e as mulheres, um recato fora do normal. Mas Zweig não se encaixava muito bem nessas regras e por isso, as subverteu lindamente.

Por incrível que pareça, Zweig não curtia muito estudar. Explico: ele não gostava dos métodos adotados pelas escolas da Áustria, um método engessado, rígido demais e que não explorava o pensamento crítico. Os estudantes deveriam apenas memorizar as aulas, fazer uma prova e estava tudo certo. Aqueles que não conseguiam, geralmente apanhavam, passando por uma grande humilhação na frente dos colegas, justamente com o objetivo de servirem de exemplo aos outros. Para o escritor essas aulas eram muito maçantes, ele não se sentia motivado a continuar os estudos e principalmente achava muito desconfortável as roupas que tinha de usar: ternos, colarinho engomado, gravatas, coletes, suspensórios, sapatos apertados e brilhando de tão polidos, além da tradicional pasta, que demonstrava responsabilidade.

Esse conjunto de tradições é muito importante para a sua história, assim como para a história da própria Áustria e do que aconteceu depois, quando estouraram as guerras. Toda essa rigidez e esses costumes seculares pesaram muito para que algumas pessoas apoiassem o regime nazista, na esperança de que esses dias de ordem voltassem. Observem que tudo estava em seu lugar: ninguém saia muito fora da curva. Aqueles que optavam em viver de outro modo, eram muito criticados e geralmente não tinham credibilidade. A pasta por exemplo, que Zweig odiava usar e assim, ele e seus amigos próximos da escola trocaram por uma bolsa de alça transversal durante o Ensino Médio, representa essa seriedade que era esperada pela sociedade austríaca dos jovens. Um rapaz, adolescente, no “mundo de ontem”, deveria aparentar responsabilidade, precisava se vestir de acordo, deixar a barba crescer para parecer mais velho e assim mais respeitável. Caso contrário, ele não seria levado a sério e não conseguiria um bom emprego e nem mesmo cursar uma boa universidade.

Zweig e seus amigos passaram a se dedicar à poesia e à análise crítica da literatura mundial. Viviam na biblioteca e nas livrarias, buscando tudo o que tinha de mais novo para descobrir, liam de forma voraz, analisavam os textos de seus contemporâneos e assim não demorou muito para que o escritor começasse a contribuir com resenhas críticas para os jornais do país. Aos 21 anos já havia publicado alguns poemas e contos em revistas literárias e não demorou para que um volume reunindo os seus textos fosse lançado por uma editora. Maior de idade, independente e livre, Zweig começou a viajar pela Europa, apaixonando-se por Paris, conhecendo os outros países de seu continente, explorando tudo o que podia, seja de cultura, de arte, de conhecimento.

O escritor demonstra desde a mais tenra infância uma sensibilidade muito grande pelas artes, um forte apreço pela literatura por todas as manifestações culturais e um amor imenso pela liberdade. E assim viveu a sua juventude, confraternizando com pessoas de seu meio, como H. G. Wells, James Joyce, Salvador Dalí e tantos outros, que foram seus contemporâneos e amigos próximos. Morou por muito tempo em Paris, em Londres, mas seu lar era mesmo a Áustria, onde ele tinha a sua casa de campo, cheia de coleções de obras de arte e de volumes raros de livros clássicos, primeiras edições, manuscritos, etc. Zweig foi um grande colecionador de objetos importantes para a humanidade, ele se via como um guardião dessas preciosidades, que em sua opinião não poderiam nunca se perder.

Com o ensejo da Primeira Guerra Mundial, as coisas começaram a mudar. Viajar pela Europa e até mesmo para fora do continente passou a ser impossível. O autor estava na Bélgica quando a guerra foi anunciada e ele custou para acreditar que a Alemanha seria capaz de invadir uma nação irmã, um país vizinho, que em sua opinião prezavam pelos mesmos interesses. Foi difícil retornar à Áustria, pois as estradas estavam fechadas e as ferrovias voltadas para o transporte dos artefatos bélicos. Os anos de guerra foram muito pesados para Zweig. Ele não se conformava com os desdobramentos que a guerra estava trazendo e principalmente com a impossibilidade de deslocamento e com o fato de ter de ver seus amigos de outras nações europeias como inimigos.

Ao final da Primeira Guerra, vieram as consequências: destruição por todos os lados, miséria, fome, desordem, caos. E claro, uma inflação sem precedentes, transtornando a vida organizada do “mundo de ontem”. As páginas em que o escritor conta sobre o período inflacionário antes na Áustria e posteriormente na Alemanha são de uma riqueza histórica fora do normal. Aqui podemos perceber o cidadão comum tendo de enfrentar situações apocalípticas: quem patrocinou a guerra, perdeu todo o seu investimento; os ricos ficaram pobres; empresários perderam suas empresas; agricultores, que detinham os alimentos, cobravam por eles o que queriam; estrangeiros saíam de todos os cantos do mundo para explorar os países que perderam a guerra e estavam endividados e com a inflação altíssima. O número de desabrigados e de pessoas endividadas na Áustria e na Alemanha também cresceu de forma vertiginosa. E tudo isso contribuiu de forma contundente para o crescimento e fortalecimento do nazismo, alguns anos depois.

Zweig em suas viagens após a Primeira Guerra Mundial percebia que algo havia mudado. As pessoas não se tratavam mais com tanta gentileza, havia um clima de hostilidade entre os países europeus, como se fosse uma ressaca da guerra e de todos os conflitos, mortes, perdas e ofensas feitas mutuamente. Assim o escritor começou a ir mais longe, explorando as Américas, a Ásia e a África em suas viagens pelo mundo. No final da década de 1930, Zweig percebeu algo estranho em sua vizinhança. Amigos não o cumprimentavam na rua, ele não era mais convidado para os cafés, pessoas deixaram de frequentar sua casa. Ouvindo rumores aqui e ali, ele percebeu que algo muito ruim estava chegando e não demorou para que policiais aparecessem em sua casa para procurar artefatos terroristas. É claro que nada encontraram, mas para o autor estava na hora de deixar o seu país querido.

Abandonando todo o seu acervo de artes e de preciosidades, e sua bela casa de campo, lugar de tantas memórias e tão caro ao escritor, ele se exilou em Londres, onde resolveu pesquisar sobre Maria Stuart e escrever mais uma biografia. Os anos na Inglaterra trouxeram a Zweig uma certa melancolia, além de muita revolta por tudo o que estava acontecendo na Áustria. O episódio da morte de sua mãe, quando Hitler por pura maldade proibiu os judeus de sentarem em bancos públicos e o impedimento de seu primo de mais de 60 anos de idade em acompanhar os últimos minutos de sua mãe porquê de acordo como as leis nazistas, uma mulher abaixo dos 40 anos não poderia permanecer no mesmo ambiente que um judeu, pois “o primeiro pensamento de um judeu seria praticar violação racial com ela” e a enfermeira encarregada era uma mulher jovem, levaram-no ao desespero e à certeza de que o mundo não seria mais o mesmo.

O golpe final, que levou o escritor a redigir o seu último texto, este que acabamos de resenhar, veio da sua expatriação. Perder o passaporte, ter de suplicar à embaixada da Inglaterra um visto de refugiado e não pertencer a lugar nenhum foi decisivo para a resolução de Zweig em tirar a própria vida. Ele relata no final de sua autobiografia que o tratamento que ele recebia em Londres quando visitante estrangeiro era um; ao passo em que quando se tornou um refugiado, os próprios funcionários do hotel onde ele morava passaram a trata-lo com indiferença e relegar os serviços que ele solicitava. Infelizmente isso diz muito sobre o ser humano em geral, seja ele europeu, asiático, brasileiro, alemão ou de qualquer outra nacionalidade. Ainda temos muito a evoluir como pessoas.

Sua justificativa é muito triste, mas serve para nós pessoas do futuro, para quem ele escreveu esse texto, deixando como relato as suas vivências, experiências e impressões sobre algo que desejamos nunca ter de viver para saber como é. Às vezes basta ler o trecho a seguir para termos certeza de que guerras não nos trazem nada de bom:

Como fora diferente naqueles dias de 1914 na Áustria, mas também como eu estava diferente do jovem inexperiente de então, como agora me pesavam as lembranças! Eu sabia o que significava a guerra, e ao olhar para as lojas cheias e reluzentes, tive uma visão veemente das lojas de 1918, saqueadas e vazias, como se olhando com olhos escancarados. Vi, como num sono de vigília, as longas filas de mulheres magras diante das lojas de alimentos, as mães enlutadas, os feridos, os aleijados, todos os imensos horrores de outrora voltaram como fantasmas na luz resplandecente do meio-dia. Pensei nos nossos velhos soldados, exaustos e esfarrapados como haviam vindo do campo, meu coração palpitante sentiu toda a guerra passada na que começava agora e ainda escondia todos os seus horrores aos olhares. E eu sabia: mais uma vez, o passado terminara, tudo o que fora realizado estava aniquilado – a Europa, nossa pátria, pela qual havíamos vivido, estava destruída por muito tempo, além da nossa própria vida. Algo novo começava, um novo tempo, mas quantos infernos e purgatórios teriam de ser atravessados até se chegar a ele”. (ZWEIG, 2021, pág. 384/385)

Esse é um livro belo, porém triste. Sofrido, mas com passagens de vida, de sentimento e de alegria. É um livro inspirador e que nos ensina sobre as pessoas, sobre a vida e nos faz pensar como queremos viver, se realmente desejamos repetir o passado e passar por todas as atrocidades que já sabemos que aconteceram nas duas grandes guerras mundiais. É uma obra para releituras e Zweig fica com o leitor após a última página talvez para sempre. A vontade que temos ao ler o fim de sua vida, a sua desolação é de entrar nas páginas e lhe abraçar, tentar lhe consolar por tanta dor, infligida a outro ser humano por monstros, pessoas execráveis que nunca deveriam ter habitado a Terra. Porém, cada um de nós tem a sua história, a sua trajetória e que ela possa nos servir como inspiração para um mundo melhor, afinal,

Toda sombra é, em última análise, também filha da luz. E só quem conheceu a claridade e trevas, guerra e paz, ascensão e decadência viveu de fato

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