crítica

Aventuras de Huckleberry Finn – Mark Twain

Conhecida como a obra-prima do autor, Aventuras de Huckleberry Finn (Zahar, 2019) é uma autobiografia do personagem, onde ele vai contar as suas proezas após o fim de suas aventuras com o amigo Tom Sawyer. A narrativa começa com Huck – como é chamado ao longo da prosa – vivendo na casa da Srta. Watson, por quem foi adotado após os acontecimentos do romance anterior. Logo no início, ele deixa claro para o leitor que não gosta muito da ideia de “sivilização”.

Huck está se referindo à vida com a Srta. Watson, onde ele precisa seguir regras, rezar todos os dias, utilizar os talheres, dizer onde vai e quando volta, vestir-se com roupas limpas e mantê-las assim e estudar. No entanto, ele é um tanto avesso a todos esses costumes, nos quais ele não vê muito sentido. Não demora muito para que ele acabe indo embora, mas essa fuga acontece devido à volta de seu pai à cidade. Huck tem medo do pai, que é um homem violento, que bebe sem parar e bate no filho sem motivos. A volta do pai de Huck está relacionada ao fato do filho ter ganho uma boa soma em dinheiro e, o pai como seu único parente consanguíneo deseja colocar as mãos nesse dinheiro para comprar bebidas.

Neste ponto já estamos familiarizados com o enredo, com a linguagem e com a malandragem de Huck. Ele é um menino esperto e consegue facilmente passar uma lábia nas pessoas. Ao saber da volta do pai, ele faz um acordo com o juiz e lhe passa todo o seu dinheiro. Dessa forma ele impede que o pai o roube. Mas, ainda assim ele terá de enfrentar os tribunais para decidir quem terá a sua guarda: o pai biológico ou a Srta. Watson. Sem paciência para esperar e com medo de ser dado ao pai, ele simula sua própria morte e foge na canoa do pai, descendo o Rio Mississipi, rumo ao extremo sul.

No início da viagem, ele encontra o escravo Jim, que “pertencia” à Srta. Watson e os dois resolvem seguir viagem juntos. O encontro de Huck e Jim e a relação que eles vão travar ao longo dessa travessia constituem as polêmicas relacionadas a essa obra. Ao longo do texto encontramos palavras ofensivas relacionadas aos negros, “nigger”, que foi traduzida para o português como “preto”, com o objetivo de manter o vocabulário da época. Assim Huck e os outros personagens vão se referir aos escravos e negros sempre dessa maneira.

As polêmicas não param por aí. A partir da amizade que nasce entre Huck e Jim, muitas questões serão levantadas, principalmente aquelas que tratam sobre a religião e a escravidão. As pessoas brancas da época, que em sua maioria eram protestantes (WASPS – brancos, anglo-saxões, protestantes), defendiam a escravidão e os negros como “propriedades privadas” das famílias e fazendas. Então, a fuga de Jim significava que uma “propriedade privada” estava fugindo por aí e que Huck era conivente com isso.

Na época, o choque foi por causa da decisão que ele toma de seguir junto a um escravo fugitivo e não entrega-lo a uma pessoa “que nunca lhe fez mal, que é boa” ao passo que hoje, o problema é a forma como os demais personagens se referem às pessoas negras e a descrição da escravidão, que muitas vezes era defendida na voz de alguns personagens. Mas, infelizmente, não podemos apagar a nossa história e fingir que nada disso aconteceu. Assim como não faria sentido traduzir um romance do século XIX com termos antirracistas utilizados no século XXI.

Mas, o livro não se trata apenas dessas questões. Aprendemos muitas coisas referentes às crendices populares estadunidenses, algumas passagens da cultura afro-americana, um pouco sobre o contexto histórico da época e também nos divertimos com as peripécias de Huck Finn. Ele e Jim enfrentarão muitos problemas ao longo do caminho e para escapar das ciladas, Huck mente, inventa histórias, ludibria as pessoas e depois para e reflete sobre o que fez, sentindo medo do inferno.

Outro ponto alto da obra é a análise feita pelo autor sobre a sociedade sulista e suas contradições. Huck preza muito a liberdade. Para ele é isso o que faz sentido. Dessa forma, não compreende como pessoas que de alta estirpe, que frequentam a Igreja e são consideradas tão dignas entram em guerra com outras famílias por motivos banais ou até mesmo possuam escravos, que são pessoas, mas consideradas posse dos outros. Dentro desse contexto, Huck não se sente bem e por isso foge em busca de sua liberdade e felicidade. Jim, ao contrário dessas pessoas, é retratado com muita dignidade, como uma pessoa boa, justa, honesta, que é capaz de arriscar a própria vida pelos outros.

A relação de amizade que nasce entre Jim e Huck também é bem construída, cativante e comovente. Torcemos o tempo todo para que os dois escapem ilesos das armadilhas do destino e das pessoas más que cruzam o caminho dos dois. Também desejamos intensamente que Jim consiga a sua tão sonhada liberdade e nos afligimos com os perigos enfrentados por essa dupla tão singular.

A oralidade utilizada por Twain é outro ponto alto da narrativa. Ele conseguiu dar o tom certo a cada grupo de personagens, trazendo um contexto real de fala e de uso da linguagem para o texto escrito. Esse recurso foi amplamente estudado por profissionais e tradutores, buscando compreender e explorar melhor essa faceta do escritor. O livro no geral mostra uma competência textual e narrativa muito grandes do autor. Ele acerta tanto na forma como no conteúdo e principalmente, se mostra competente em utilizar os vários recursos da linguagem e do conhecimento.

Aventuras de Huckleberry Finn não é um livro que vai agradar a todas as pessoas. É um clássico norte-americano, que se passa no final do século XIX, narrado por uma criança, com uma linguagem totalmente oral, desprezando as regras da língua padrão. É um romance de aventura com muitas reflexões importantes sobre a vida, nossas escolhas, preconceito, violência, solidão e amizade. Considero um bom livro para ser trabalhado nas escolas com os alunos do Ensino Fundamental 2 e Médio.

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