Uma das HQs mais comentadas do ano, Balada para Sophie (Pipoca e Nanquim, 2022) foi escrita pelo quadrinista português Felipe Melo e ilustrada por Juan Cavia. É uma história simples, até um pouco clichê, mas que nos faz pensar sobre muitos aspectos da vida e sobre a anulação de uma pessoa em prol de outras coisas, que nem sempre se revelam tão boas quanto parecem. Julien Dubois é um pianista famoso, que depois de encerrar sua carreira, resolveu viver de forma isolada e reclusa em sua mansão na França, com o objetivo de reviver suas memórias tristes e enfrentar a sua solidão e o fim de sua vida. Em um certo momento, aparece uma jornalista bastante obstinada a entrevista-lo e sua trajetória nos é revelada.
A carreira desse pianista começou um pouco antes da invasão da Alemanha à França durante a Segunda Guerra Mundial e já começou de forma errada: Julien não tinha vocação para o piano, nem tanto interesse, porém esse sempre foi o sonho de sua mãe e esta não poupou esforços para transformar o filho em um grande músico. Para tanto, ela forçou o filho a ensaiar durante horas, desde quando ele era bem pequeno e esses ensaios foram ficando cada vez mais intensos, roubando tanto a infância quanto a juventude de Julian. Próximo a data de um concerto importante, a mãe do músico contratou um professor que se transformou em um verdadeiro carrasco para Julian, comprometendo toda a sua vida adulta.
Entretanto, no dia do concerto, apareceu um rapaz mais talentoso que Julian. Este era o filho do zelador do reformatório de música e treinava no piano enquanto o pai limpava o local. Sua vitória no concurso era inevitável, mas claro, a mãe de Julian deu um jeito do filho vencer a prova. Nesta época, o protagonista já tinha idade suficiente para compreender as coisas e ele sabia o tempo todo que algo muito errado havia acontecido ali. E essa decisão desonesta de sua mãe, além das atitudes que ela ainda viria a tomar nos próximos anos transformariam a vida de Julian em um verdadeiro inferno. Não precisamos nos aprofundar mais no enredo para saber que além de toda a exploração pela qual o protagonista vai passar, ele também vai conviver com um terrível remorso por não ter tido a coragem de lutar por si mesmo, pelo amor de sua vida e por justiça para o seu grande adversário, que na verdade, era uma das pessoas que ele mais admirava na vida.
O primeiro ponto a ser destacado nessa história e que nos faz repensar um pouco as nossas ações e escolhas é a forma como a mãe do protagonista o educou. Ela se mostra o tempo todo uma pessoa egoísta, que faz qualquer coisa para alcançar o sucesso, mesmo que para tanto ela tenha que prejudicar o próprio filho. Julian sempre foi para a mãe uma fonte de investimento e claro, foi com a venda do filho ao showbusiness que ela conseguiu ter dinheiro e poder, após se aliar aos alemães durante a Segunda Guerra Mundial e posteriormente sofrer as consequências disso. Mas mesmo conseguindo o que queria, dinheiro e fama, qual foi o preço disso? Ela não era uma pessoa feliz e nem uma mulher realizada. Passou a vida inteira se vendendo aos outros para ter coisas, quando a sua essência e as abstrações da vida, que na verdade são as que nos sustentam como seres humanos ficaram em segundo plano, ou mesmo se tornaram inexistentes para ela e consequentemente para o filho.
Humilhações, degradações, surras, essa foi a vida que a mãe do músico escolheu para si. E assim nos perguntamos: mas porque Julian não fez nada para tirá-la dessa situação? Ele tentou ser livre após descobrir que sua mãe apoiava os nazistas, o que para ele foi a gota d’água e assim resolveu mudar de vida e abandonar tudo o que o afligia e escravizava. Saiu de casa, enfrentou a vida, passou por maus momentos até descobrir que poderia ajudar Françoise Sanson, o filho do zelador. Em um outro concerto importante, Françoise se passou por judeu com o objetivo de solidarizar-se com a causa deles e terminou a disputa em um campo de concentração. Julian decidiu voltar para casa, certo de que, com as relações que sua mãe mantinha com os alemães, ele poderia evitar que Françoise sofresse muito ou morresse nos campos nazistas.
Temos aqui um contraponto entre os dois pianistas: enquanto um que teve tudo na vida é completamente infeliz, o outro, que nunca teve nada material, tem um dom nato para a música. Julian precisou de técnicas, treinamento intenso e uma vida inteira de esforços para conseguir a fama e o sucesso, ao passo em que Françoise, em poucas horas que tinha disponíveis para tocar em um piano que não era seu, sem nenhum tipo de incentivo ou de esforços externos, tocava de forma sublime, criava composições marcantes e levava a plateia ao delírio. É claro que Julian sempre teve sentimentos conflitantes em relação a Françoise: ele era tudo o que o protagonista gostaria de ser e de ter. Porém a vida não é simples, longe disso, ela é complexa e nos provoca o tempo todo. Recebemos mais nãos que sins ao longo de nossa existência e saber lidar com eles é o que vai determinar os nossos sucessos e insucessos.
Julian se vendeu para o produtor musical. Assinou um contrato que destruiu a sua vida. Assim como Elvis Presley, Freddy Mercury, Elton John e tantos outros músicos e artistas famosos que conhecemos, ele teve de se submeter às determinações de seu contrato, foi humilhado, se tornou um viciado em drogas e álcool, deixou de ser ele mesmo e assumiu uma nova identidade, vestia máscaras o tempo inteiro para conseguir subir nos palcos e apresentar os seus programas de TV. Essas máscaras estavam sempre acompanhadas de entorpecentes e assim, Julian Dubois não existia mais. Ele se reencontrou consigo mesmo após viver um grande amor, que é Sophie, aquela que dá nome ao quadrinho. Para ela, ele compôs uma balada, sua única composição verdadeira, que mostra a sua essência e seu eu interior.
Julian foi explorado pela mídia, por seu produtor, por sua gravadora até o seu limite. Quando ele não tinha mais nada a oferecer, estava velho, doente, feio, foi descartado como um bagaço. E isso não é algo inexistente na vida real, infelizmente. É fácil saber que alguns artistas que tiveram seu auge durante a juventude, hoje, na velhice, estão abandonados, sozinhos, em casas de repouso ou desamparados pela aposentadoria. É complicado pensar sobre o assunto da fama, porque ela geralmente é muito passageira e permanece durante a nossa juventude. Depois disso, outras pessoas mais interessantes, mais bonitas, mais dispostas a ceder e a entregar tudo o que têm de si ao showbusiness aparecem e assim, os veteranos são descartados como se não fossem nada, apenas um trapo velho que não serve para mais nada. Até quando vamos nos submeter a esse tipo de degradação? Afinal, o que é chegar lá?
O conceito de sucesso é muito abstrato e para cada indivíduo significa algo diferente. Porém, é quase um consenso que quando uma pessoa tem um talento artístico, ela precisa explorá-lo até o limite. Ela só será reconhecida e respeitada se for famosa, se apresentar todos os dias, viajar o mundo mostrando o seu show, ganhar rios de dinheiro e o melhor: ser completamente infeliz. Porque sentimos necessidade de sugar o outro até o bagaço? Porque a arte está relacionada à fama? Será que um pianista comum, talentoso, mas que toca na orquestra da sua cidade ou é apenas um professor de música não merece respeito? Acho que é urgente revermos os nossos conceitos de sucesso e de fama. Precisamos pensar que é inadmissível que histórias como as de Freddy Mercury, Elvis Presley, Michael Jackson e tantos outros se repitam na velocidade da luz.
Françoise está nessa história para nos chamar a atenção para isso. Ele tentou transgredir, mostrar solidariedade aos que estavam em desvantagem, nunca valorizou o showbusiness, abominava tudo o que se relacionava com a fama. Tocava por amor à música e isso lhe bastava. Julian queria ter a mesma coragem de Françoise, por isso sentia inveja dele em alguns momentos. Já na velhice, contando as suas memórias, ele diz uma coisa que me marcou bastante: “as pessoas deviam viver como se tivessem câncer. Só assim fariam o que querem e não o que lhes dizem para fazer”. Portanto, é preciso pensarmos muito sobre como vivemos e o que escolhemos todos os dias. Afinal, o nosso futuro depende do nosso hoje!
Balada para Sophie é um quadrinho que faz críticas sociais contundentes, principalmente à anulação da pessoa humana em prol da fama e do sucesso, que como já explicado antes é um conceito bastante subjetivo. Entretanto, lendo os diálogos, acompanhando a trajetória do protagonista e observando as ilustrações, fica bem evidente que existe uma mensagem sendo passada ao leitor como uma espécie de aviso para valorizarmos a vida que temos e fazermos mais aquilo que gostamos, que nos traz felicidade e não vivendo em busca de algo que nem sabemos bem o que é. Pode-se fazer um paralelo entre o quadrinho e os ensaios do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han em sua Sociedade do Cansaço. O tema também é bastante desenvolvido por Dostoievski em muitas de suas obras, em especial no livro O idiota. Dessa forma, compreende-se que o tema escolhido por Felipe Melo e Juan Cavia é bastante universal e atemporal, precisando sempre ser lembrado para não cairmos na cilada do Mito de Sísifo desenvolvido por Camus. Recomendo muito a leitura e as reflexões propostas por essa dupla de quadrinistas que chamaram a atenção da crítica com razão.