crítica

Banguê – José Lins do Rego

Foi uma enorme coincidência eu estar lendo esse livro e me deparar com um meme da novela Pantanal, exibida na Rede Globo no momento, satirizando uma das personagens da trama, a Guta, “uma moça que cita Simone de Beauvoir, mas deixa a sua louça suja para a sua mãe lavar”. Essa sátira dialoga diretamente com o enredo de Banguê (Global, 2021), do escritor paraibano José Lins do Rego. Apesar de escrito há quase noventa anos atrás, o autor nos mostra de forma crítica e severa as consequências de nossa inércia, de nossa imperícia diante da vida.

As nossas maiores frustrações ao ingressarmos no mercado de trabalho são as de ordem prática, moral, ideológica e ética. Geralmente, saímos da faculdade com uma porção de teorias que funcionam lindamente no papel, mas quando tentamos coloca-las em prática, percebemos que as coisas não se encaixam de forma tão perfeita quanto na nossa imaginação. Saímos da universidade com a mente fervilhando de ideias, de projetos, de ambições, mas, em geral, demoramos demais a conseguir conciliar a teoria e a prática e ainda balancear tudo isso com a nossa essência, com os nossos ideais, com o objetivo de não nos trairmos.

Sempre existiu e sempre vai existir uma quebra de paradigmas entre as gerações. Nós não somos como os nossos pais e nossos filhos não serão como nós: as ideias mudam, as situações também e é necessário abrirmos as portas para as novidades porque é através delas que nos transformamos e crescemos no sentido do progresso e do desenvolvimento econômico e intelectual. Entretanto, já dizia minha mãe que para ser um bom líder é preciso saber fazer as coisas. Caso contrário, não saberemos delegar tarefas e nem agir quando necessário ou até mesmo gerir uma casa, uma empresa ou a nossa própria vida. A cada leitura que faço que aborda essa quebra entre as gerações, fica mais claro para mim a importância de sermos seres humanos funcionais: que saibamos fazer o básico da vida, cuidar de nós mesmos e de nossa casa, de nossas finanças. Porque depender dos outros para tudo é sempre um tiro no pé.

Banguê é a continuação da história de Carlinhos, ou Carlos de Melo, protagonista do Ciclo da cana-de-açúcar, série de cinco volumes que conta a trajetória dos engenhos no Nordeste Brasileiro. Nesta parte da história, Carlos voltou da faculdade, representando toda uma geração de pessoas como a Guta da contemporaneidade: a primeira geração de uma família rica que teve a oportunidade de estudar e se formar em um curso de graduação. Surpreendendo um total de zero pessoas, ele cursou a faculdade de Direito. Naquele tempo ser advogado era uma coisa muito importante e também o sonho de muitos fazendeiros ricos, que se fizeram através da mão-de-obra escrava, algo que é muito representado nessa série do José Lins.

Porém, assim como a Guta, Carlos optou em voltar para o Engenho Santa Rosa, no lugar de permanecer na cidade e trabalhar como advogado, promotor ou qualquer outra coisa relacionada à sua área de estudos. Chegando ao engenho do avô, seus olhos de criança dos volumes anteriores da série já haviam se apagado e dessa forma, ele começou a perceber o local com um olhar mais crítico. Ao mesmo tempo em que percebia a degradação do local, a fragilidade e a decadência de seu avô, a rusticidade da casa, a simplicidade daquela vida e a exploração da mão-de-obra, ele não se sentia incomodado ou até mesmo impelido a mudar as coisas.

Simplesmente se aproveitava dos privilégios conquistados através da escravidão, vivendo uma vida confortável e vazia. Passava as tardes deitado na rede, criticando o avô, ou então seduzindo as empregadas da fazenda e as esposas dos outros. Quando não tinha muito o que fazer nesse sentido, lia os jornais para mostrar-se importante ou alguns romances de Eça de Queiroz, procurando romantizar a vida de seu avô. Durante esse tempo perdido, engravidou uma ex-escrava, teve um caso com uma prima que se hospedou na fazenda e não se preocupou em aprender o ofício de gerir um engenho do porte do Santa Rosa.

Com a morte do avô, herdou o engenho e uma caderneta de poupança bem farta que o velho lhe deixou. O patrimônio logo foi dilapidado. A sua imperícia, sua falta de tato, sua preguiça e principalmente suas escolhas de vida o fizeram perder em poucos anos as terras que lhe foram dadas. Infelizmente este é o retrato de muitas gerações que herdaram terras ou negócios bem-sucedidos dos pais: não aprenderam a gerir ou não se empenharam em tentar aplicar suas ideologias ali de forma eficiente, deixando assim que outras pessoas tomassem a liderança e terminassem com a posse dos negócios.

No caso de Banguê seria uma forma de justiça às avessas. Quando Carlos assumiu o engenho, quem fazia o negócio andar e entendia de todas as produções do local era o moleque Marreira –  moleques eram os empregados negros da fazenda, que eram tratados dessa forma preconceituosa. Assim, Carlos deixou tudo em suas mãos, relaxando e gozando de seus privilégios de “Senhor de Engenho”. Para ele o mais importante era ser dono das coisas: das terras, das pessoas, das árvores, dos bois, das canas, do algodão… Porém, Marreira foi mais esperto e começou a cultivar alguns gêneros em sua porção de terras dentro do engenho e vender para terceiros. Com isso, construiu casa, comprou gado e plantou cana, dando um baile em Carlos de Melo.

Ao se dar conta do progresso de Marreira, resolveu a situação à sua maneira obtusa: expulsando-o com sua família do Santa Rosa. O feitor tentou conciliar a situação, porém sem êxito. A arrogância e a presunção de Carlos não tinham limite e a única forma que conhecia de resolver os problemas era colocando as pessoas no tronco – sim, a escravidão já tinha terminado, mas ainda assim ele castigava os empregados que não o respeitavam. Dessa forma, ele conseguiu tirar da fazenda o empregado que fazia as terras prosperarem e ganhou um desafeto.

Logo as usinas açucareiras começaram a surgir na região. Marreira logo se aliou aos usineiros, comprou um engenho falido e prosperou a olhos vistos. Ao passo em que o Santa Rosa se degradava a cada dia. Mesmo com o prestígio econômico e financeiro de Marreira, os demais empregados não lhe tinham respeito por racismo. Esse é um dos temas mais abordados no romance de José Lins e afirmo que de forma bastante incômoda. Infelizmente, acredito que tenha mais verossimilhança nisso do que gostaria de pensar. A exploração da mão-de-obra e os conchavos políticos, as propinas também estão muito presentes no livro. Mais uma vez, percebemos a construção do Brasil em cima do genocídio das pessoas, da troca de favores, do coronelismo e das tocaias.

O mais chocante de tudo isso é que mesmo depois de noventa anos ainda continuamos praticando as mesmas coisas. O racismo agora é crime, mas continua sendo praticado de forma velada. Se não fosse criminalizado, seria praticado de forma escancarada como no romance de José Lins. Tinha até uma música jocosa para os negros que ascendiam socialmente e economicamente. Eles não eram respeitados por seus iguais como chefes ou senhores de engenho. Outra questão muito polêmica que o autor nos apresenta no livro é o conceito de “Casa grande e senzala” como se fosse algo normal e comum a exploração sexual dos senhores de engenho às negras que trabalhavam nas fazendas. É preciso que fique claro que o Brasil não é um país cordial e que existe e sempre existiu preconceito e racismo aqui. Quando Carlos vê o seu filho mestiço, que claro, ele não assumiu, ele faz comentários muito ruins sobre o filho e a mãe dele, colocando-os como inferiores e afirmando sempre que o menino precisava de jeito, e de uma criação branca.

A exploração da mão-de-obra continua sendo praticada todos os dias no país. Claro que de formas diferentes, mas existe em números alarmantes. Nem precisamos ir muito longe para constatar isso: atualmente, o salário mínimo no Brasil é de R$1212,00. Não é necessário dizer que a população que recebe essa renda mensal vive em situação de miséria. A politicagem segue firme e forte e as tocaias também. Recentemente, como já dito aqui, foram executados no Vale do Javari o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Philips, por estarem incomodando a pesca ilegal na Amazônia.

Observando o salário mínimo, as denúncias de racismo que são feitas todos os dias, a Guta da novela Pantanal, a execução dos defensores da floresta e as prisões constantes de ex-ministros, percebemos que livros como Banguê e todos os outros romances regionalistas brasileiros são fundamentais para entendermos um pouco do Brasil e de como esse país foi construído sobre o sangue de muita gente, sobre a exploração dos nativos e a escravidão de povos subtraídos de suas terras e de seus continentes. Precisamos nos conscientizar de muitas coisas que aprendemos a normalizar e também, precisamos nos incomodar todos os dias com as práticas de racismo, com as execuções e tocaias que acontecem aqui. Precisamos mudar, sair da nossa inércia. Como disse o grande Dráuzio Varela em sua última palestra que assisti: “levantar às cinco horas para correr exige muita disciplina e esforço; senão, ficamos deitados. Essa inércia é inerente ao ser humano. A zona de conforto é muito atraente”.  

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