crítica

Bel-Ami – Guy de Maupassant

Bel-Ami foi uma grata surpresa de 2022 para mim. Desde o ano passado, quando li alguns contos de Guy de Maupassant, fiquei interessada em ler um romance do escritor, para ver como ele desenvolveria personagens e enredos. Seus contos são muito bons, com muitos temas que me são caros abordados. Dessa forma, em uma narrativa mais longa ele poderia elaborar melhor esses assuntos e mostrar suas críticas contundentes à sociedade francesa, que na verdade, representa todas as sociedades e seus personagens, o ser humano em geral.

Guy de Maupassant era filho de um casal de amigos de Gustave Flaubert, um dos maiores nomes da literatura francesa. Este foi o padrinho do jovem Guy, dando-lhe aulas de escrita e composição de personagens, levando-o às grandes rodas de escritores célebres do realismo e do naturalismo. A vida em Paris era cheia de encontros e desencontros, flertes, festas, reuniões em cafés e os salões da capital francesa são famosos até hoje por causa de seus grandes bailes de gala em homenagem às grandes personalidades da época. Assim, o escritor participou com empenho de toda essa vida boêmia e, contraiu sífilis.

Dentre suas proezas como homem, está a participação vigorosa na Guerra da França contra a Prússia, onde as tropas francesas foram derrotadas e o país invadido pelos inimigos, gerando assim um dos temas recorrentes na obra de Guy de Maupassant. No final de sua vida, sofreu muito em decorrência da sífilis. Seus últimos seis meses de vida foram de forma vegetativa, pois teve uma paralisia e não pode mais continuar suas atividades. Pouco antes do agravamento de seu estado de saúde, o escritor tentou o suicídio, mas não obteve êxito. Faleceu aos 42 anos de idade e deixou uma vasta obra entre contos, novelas, romances, ensaios e crônicas.

Bel-Ami é um romance sobre os relacionamentos humanos. Conhecemos aqui o protagonista Georges, que é um homem totalmente sem escrúpulos. Saído do interior da França, filho de camponeses simples e analfabetos, teve a oportunidade de viajar ao exterior e cursar uma faculdade. Porém, a vida em Paris não é fácil para ninguém e assim, Georges precisava de contatos para conseguir um bom emprego e trabalhar em sua área de formação. Antes de encontrar as pessoas certas, ele vivia em uma situação acachapante de pobreza, não tendo dinheiro às vezes para almoçar ou jantar. Assim como a maioria das pessoas que vivem com um salário obsceno, Georges se endividava com facilidade e fugia dos credores a todo momento. Estava sempre à beira do despejo e da possiblidade de ter de voltar à casa dos pais para ter onde morar e o que comer.

Mas, a sorte lhe sorriu. Saindo do trabalho em um dia comum, divagando sobre a possibilidade de jantar naquele dia e deixar de almoçar no próximo, encontrou um colega de faculdade que lhe convidou para jantar em sua casa no dia seguinte e ainda lhe emprestou um dinheiro para o traje – que na Paris do século XIX era mais importante que o lugar onde a pessoa mora ou o que come – garantindo-lhe assim uma possibilidade de ascensão social e um bom emprego. Georges fica muito empolgado com esse convite e com as oportunidades que vai ter e assim, o seu caráter dúbio começa a aparecer para o leitor.

Não demora muito para que o nosso protagonista comece a trabalhar no jornal onde o seu colega Forestier é um dos redatores e agora chefe de Georges. A dinâmica por trás desse folhetim é muito parecida com o que conhecemos aqui por “cabides de emprego”. Os repórteres saiam para coletar dados, porém, passavam o dia em um café e chamavam ao seu encontro uma pessoa comum, que representasse a população que lhe foi encomendada e assim, obtinham de uma única fonte as respostas para as suas questões superficiais. Recebiam por hora de trabalho – que na verdade não foram cumpridas – e ainda tinham o adicional de transporte para a realização da entrevista. Georges aprendeu rapidinho como as coisas funcionavam e começou a ficar conhecido por suas “reportagens”.

Os donos do jornal passavam o dia “em reunião”, quando na verdade estavam jogando pôquer, dormindo ou falando mal das pessoas. As informações privilegiadas vinham de suas amizades selecionadas e influentes, regadas à champanhe, caviar, foie gras e, a simpatia de suas esposas que sabiam receber muito bem essas pessoas. Os artigos de maior sucesso vinham de uma única fonte: Madeleine Forestier. Esta, esposa de Forestier, uma mulher sofisticada, muito bem relacionada, conhecia as pessoas certas e escrevia muito bem. Como não era prudente uma mulher ser jornalista, cronista, ensaísta, escritora, naquele tempo, o marido assinava os textos e recebia os louros. Mas, na verdade, todos sabiam quem escrevia aqueles artigos tão fascinantes.

Georges é descrito como um homem bastante atraente e assim, ao começar a frequentar os jantares da alta sociedade parisiense, chama a atenção das mulheres. Percebendo isso, usa essa habilidade de sedução que tem para tornar-se amante de algumas delas, conseguindo privilégios, informações preciosas, dinheiro e até mesmo casamentos convenientes. O casamento neste livro não passa de um negócio. As pessoas se casam por conveniência e não por amor. Tanto os homens quanto as mulheres. Eles procuram pessoas inteligentes, sagazes, capazes de ampliar as redes de influências e o capital do casal. Por isso, a maior parte dos personagens é infeliz. Possuem muito dinheiro, casas suntuosas, frequentam a alta sociedade, oferecem jantares e festas pomposas, mas falta-lhes afeto, amor, um lar feliz.

Desde muito cedo as crianças e jovens são persuadidas a escolherem bons partidos, pessoas que vão somar no capital e não procurarem alguém que lhes seja caro ou amado. Os jogos de interesses estão presentes o tempo todo e Georges é um grande representante dessas pessoas que não medem esforços para subir na vida, mesmo que seja às custas da dor, do sofrimento e da humilhação de outras pessoas. Guy de Maupassant retrata essas situações com muita perfeição. Ao ler as cenas das picaretagens e patifarias cometidas pelo protagonista, sentimos nojo, raiva e desejamos que algo de ruim lhe aconteça, mas, trata-se de uma obra realista e por isso nada de mau acontece a Georges, muito ao contrário: ele sempre se dá bem.

As personagens do autor são muito bem construídas e condizentes com a época do romance. Infelizmente, percebemos esses comportamentos e sentimentos que são muito humanos em pessoas da atualidade. Em Bel-Ami, lemos a inveja, a ganância, o ciúme, a cobiça, tudo isso de forma magistralmente descrita e em muitas situações, conseguimos desenhar as cenas em nossa cabeça ou compreender exatamente o que o personagem está sentindo. As cenas humilhantes das mulheres que Georges seduz e depois descarta como se fossem lixo são muito dolorosas e ficamos mesmo com muita raiva dele. A visita que ele e a esposa fazem aos seus pais no interior da França também são acachapantes: os dois camponeses simples nem reconhecem o filho na estação, mostrando o desprezo que ele sente pelos pais. Entretanto, quando sua esposa começa a se sentir mal na presença deles, Georges resolve se fazer de ofendido e passa a participar das brincadeiras e piadas sujas do pai, com o único intuito de agredir gratuitamente a mulher.

Pode-se pensar que Georges é um homem misógino e provavelmente é sim. Suas atitudes deixam claro o seu desprezo pelas pessoas em geral, principalmente pelas mulheres, que para ele são apenas degraus na escalada social. Ele também sente muita inveja dos colegas que se destacam por seu trabalho ou inteligência; sente raiva daqueles que se dão bem da mesma forma que ele, como se apenas Georges pudesse fazer o que faz. Está sempre de olho naquilo que é dos outros, nada para ele é bom o bastante, sempre quer o que os outros têm. Através do enredo, pode-se concluir que Georges é incapaz de amar alguém, que ele não tem sentimentos de afeto ou de qualquer bem-querer. Ele só pensa em dinheiro e em ascensão social. Custe o que custar.

O título do romance vem do original em francês, que significa “bom amigo”. O protagonista recebe esse apelido da filhinha de uma de suas amantes, que passa os dias sentada no sofá, como se fosse um bibelô e o picareta Georges, com a intenção de conquistar a mãe, resolve brincar um pouco com a criança, levando-a a um estado de êxtase. Grata por essa atenção, ela pede para chama-lo de Bel-Ami. Georges aceita o título rapidamente e passa a ser um Bel-Ami para todas aquelas que lhe interessam e que têm algo a lhe oferecer, ou seja, dinheiro.

Há uma forte crítica social nesse romance realista, com muitos traços naturalistas de Guy de Maupassant. Certamente, o próprio escritor vivenciou situações parecidas nos grandes bailes, jantares e cafés de Paris. Provavelmente conheceu alguns Georges – quem nunca? – que lhe inspiraram esse romance. O autor é conhecido por sua capacidade de desenvolver nos seus personagens características humanas, sentimentos universais e despertar no leitor as reflexões sobre os costumes de uma sociedade doente, que deixa de lado a bondade, o afeto, a empatia e o respeito para seguirem os passos da hipocrisia, da falsidade e das mentiras. O final desse romance, onde um grande mentecápto se dá bem e consegue o que tanto quer, nos mostra que na vida, nem sempre a justiça é feita. Que muitas vezes, as pessoas sofrem e precisam lidar com isso. Não terão um anjo salvador ou uma reparação por suas dores. Às vezes, pessoas que não são merecedoras de êxito conseguem se dar bem e o que elas terão de castigo, talvez seja a falta de paz de suas consciências.

Não temos aqui uma ode ao malfeito, ao erro e nem acreditamos que “os fins justificam os meios”. Mas, temos uma boa reflexão sobre a vida, sobre as escolhas que fazemos e uma conscientização de que o mundo não é perfeito, de que a vida não é justa e que não nos resta alternativas a não ser aceitar e tentar mudar o que se pode mudar. Ao menos procurar não ser como Georges e evitar cair em armadilhas de pessoas como ele. Não há nada de inverossímil nesse romance e é exatamente isso que o torna assustador e impactante. Recomendo muito a leitura desse livro para vocês.

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