crítica

Cara Paz – Lisa Ginzburg

Ao nos depararmos com esse título pouco comum, e quase nunca utilizado por nós brasileiros, a primeira pergunta que nos fazemos é sobre o que se trata esse romance de capa tão inspiradora e tão bonita? Ele fala sobre muitos temas que nos são caros, tais como o deslocamento, a sororidade, a resiliência e as famílias modernas desfeitas. A partir de um núcleo principal composto por duas irmãs, Mad e Nina, acompanhamos a história de mulheres adultas, que vivem em diáspora e que precisam lidar com todas as ausências marcadas pela infância, que ainda reverberam em suas vidas, escolhas e relacionamentos do presente.

A história começa com um diálogo entre as irmãs, onde Nina pede conselhos à Mad porque deseja se separar do marido. A partir dessa conversa, a narradora protagonista nos conta sua trajetória e os motivos que a levaram a desaconselhar a irmã sobre a separação. Logo ficamos sabendo que os pais das duas irmãs se separaram quando elas ainda eram crianças e que sua mãe saiu de casa. Glória é uma mulher argentina, que se mudou para a Itália a fim de maiores oportunidades de trabalho e prosperidade. Porém, como disse a própria autora em uma mesa do FliAraxá, a vida na América Latina, os hábitos e o estilo de vida são muito diversos dos costumes europeus e dessa forma, a estrangeira não se adaptou tão bem como gostaria ali.

O casamento que no início foi próspero, cheio de momentos felizes, se desmoronou assim que vieram as filhas – afinal, os tempos de namoro são bem diferentes de um casamento, da convivência diária e com isso, surgem as assincrasias de cada um, as qualidades aparecem, ao passo em que os defeitos do casal parecem saltar aos olhos a cada segundo. Assim, Glória e Seba não funcionaram bem como casal e a família se desintegrou. A princípio, a mulher voltou para a Argentina e o marido, inconformado com a separação, entrou na justiça pleiteando a guarda das filhas. Ao vencer o processo, por ser italiano, pertencer a uma família tradicional da Europa e ter recursos econômicos, Seba não se sentiu apto a criar sozinho as filhas e assim, contratou uma babá francesa para cuidar das crianças, em um lugar comprado exclusivamente para funcionar como casa dei bambini, um espaço neutro, onde tanto ele quanto Glória poderiam visitar as filhas com regularidade e se eximirem das responsabilidades com a educação das crianças.

O tempo foi passando e a personalidade de cada uma das meninas foi se definindo. Sendo Mad a mais velha, ela passou a se responsabilizar por Nina, que lhe parecia mais frágil, além de ser também muito mais expansiva que a irmã. Mad foi se tornando mais prudente e daí vem o título Cara Paz, que em italiano é “Carapace”, que significa o casco da tartaruga, que se esconde e se protege debaixo daquela casca, que pode ser também a sua casa e que lhe traz a paz, a “Cara Pace”, formando assim um jogo linguístico que resume todo o significado desse romance. Mad na verdade é essa tartaruga, que busca abrigo, um lugar seguro, paz de espírito e uma vida comum, normal.

A protagonista narradora casou-se cedo, encontrando no marido esse porto seguro e construindo a sua família tradicional como não teve na infância. Ao contrário de seus pais, dedicou a sua existência aos outros, procurando sempre agradar os filhos, o marido e a irmã. Leva uma vida confortável, gosta de ser uma flaneuse, de conhecer a cidade, de vagar pelas ruas e observar o movimento, as pessoas e a forma como a vida acontece. Se questiona sempre se as pessoas que vê pelas calçadas sofrem como ela na infância, se suas vidas também são marcadas pela ausência ou se suas famílias são normais, se são felizes ou tristes, dentre outras questões existenciais. Mad aprecia o básico e simples, ama Paris, herança de sua preceptora francesa, assim como as caminhadas e a disciplina que lhes foi ensinada por Mylène e que tanto ela quanto Nina levaram para a vida adulta.

As diferenças entre as irmãs vão sendo apresentadas ao longo da prosa, porém, o mais importante é a amizade, o amor e a confiança que existe entre as duas. Algumas semelhanças também prevalecem, tais como o fato de terem se mudado da Itália na primeira oportunidade que tiveram – Mad mudou-se para a França para cursar a Universidade e Nina foi para os Estados Unidos quando se casou. As duas se adaptaram bem aos países onde vivem, mas, Mad sente um desejo intrínseco de voltar à Itália, para visitar, rever os lugares queridos e se sentir em casa. Quando Nina a procura para falar sobre sua separação, a irmã mais velha propõe que se encontrem em Roma para conversar. Nina não entende bem essa sugestão e assim o romance se esmera em nos contar as motivações de Mad, sendo esta a única parte da prosa que se relaciona a um sentimento da própria autora, que viveu em diáspora por grande parte de sua vida e sente saudades de Roma.

Outro ponto importante do enredo e que precisa ser observado pelo leitor é que temos uma narradora protagonista em primeira pessoa e assim, tudo o que sabemos é a sua visão dos fatos, ou seja, temos uma narradora parcial. Por isso, enxergamos a irmã, os pais e Mylène através da sua ótica, que é subjetiva. A partir da metade do livro, Mad passa a enxergar a mãe como uma mulher exemplar, admirável e que só possui qualidades. Essa visão provavelmente deturpada da narradora se deve ao fato do abandono ter partido da mãe e não do pai. É bastante comum que filhos de pais separados idealizem a figura ausente como alguém sem defeitos, justamente pela falta de convivência, de conflitos e do dia a dia compartilhado que provoca as brigas e as desavenças familiares. Quando um dos lados é ausência, para a criança e até mesmo para o adulto que não teve essa vivência, essa figura se torna cada vez mais idealizada e perfeita.

Pode-se dizer, a partir da fala da própria autora que Cara Paz é um livro que tem como tema principal os deslocamentos em geral. Ele começa com o deslocamento da família que se desmorona, que para de funcionar e parte para o deslocamento diaspórico, que são as personagens saindo de seu país e buscando a Cara Paz em outros lugares. Essa situação muito bem colocada por Lisa dialoga com a sua própria história de deslocamentos, sendo a escritora judia, neta da maravilhosa Natalia Ginzburg e filha do historiador Carlo Ginzburg, pessoas que como sabemos, vivenciaram na pele as consequências do antissemitismo e passaram grande parte de suas vidas migrando e fugindo da loucura alheia. A própria Lisa Ginzburg viveu na França e no Brasil, voltando para a Itália recentemente. Portanto, a autora é uma autoridade em diáspora e no sentimento de estrangeirismo discutido em seu romance.

Durante o mês de julho de 2023, Lisa Ginzburg está lançando o seu livro no Brasil e esteve na 11ª edição do FliAraxá, um festival literário que acontece todos os anos na cidade mineira, onde a autora falou sobre Cara Paz e também sobre a sua admiração por Clarice Lispector, que ela considera uma fonte inesgotável de inspiração para a escrita e também do maravilhoso Jorge Amado, que através de seu romance Dona Flor e seus dois maridos a instigou a viajar para o Brasil e a conhecer a capital baiana Salvador, lugar onde morou por um tempo. Lisa falou também sobre sororidade, o tema principal de sua mesa no evento. Ela afirmou que o romance tem este como um dos seus temas centrais, até porque, o termo sororidade, utilizado no Brasil como uma forma de irmandade, de empatia e de companheirismo, principalmente entre as mulheres, vem do italiano sorelle, que significa irmãs, mostrando toda a pertinência desse tema com o romance que conta a história de duas irmãs de sangue, mas que vivenciam essa relação de forma empática e pautada pelo companheirismo constante, mesmo estando as duas a uma enorme distância física, que não impede o triunfo do amor fraterno.

Cara paz é um romance muito bem escrito, delicado e profundo ao mesmo tempo. Apresenta para o leitor uma história contemporânea, que dialoga muito bem com a vida de tantos leitores que convivem com o desmonte de suas famílias e com os deslocamentos que a vida nos obriga a fazer com mais frequência do que gostaríamos. A grande metáfora está na figura de Mad, carregando a sua casa deslocada nas costas, sua família desfeita e depois de muito caminhar, assim como as tartarugas, encontra a sua cara paz.

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