opinião

Clarice na cabeceira – Crônicas

Falar sobre Clarice é sempre um desafio muito grande, tão grande ela foi e tão grande ela é para mim. Sua forma de contar histórias, utilizando a alma, explorando os limites e as facetas humanas é muito bonita e ao mesmo tempo intensa, é como se ela estivesse dentro da minha cabeça e me desnudasse para o mundo. Clarice nunca teve pretensões de ser perfeita, certinha e engessada – muito ao contrário, era livre, errada e sempre errante. Mas possuía um desejo de viver, de conhecer o mundo, de desbravar tudo e todos que era admirável.

O meu primeiro contato com sua obra foi na escola, através da crônica Banhos de mar. Não vou ousar repeti-la, dizendo “oh, isso é tão eu”, quando conheceu Katherine Mansfield, mas posso me aproximar disso. Naquela época, gostava muito de ler crônicas nos jornais e nos livros didáticos. Estava bastante engajada nas minhas “descobertas do mundo” e os textos de não-ficção me eram muito caros. Achei a crônica singela e ao mesmo tempo muito significativa: o tom memorialístico sem a melancolia costumeira, junto a uma descrição de um lugar subjetivamente belo e de lembranças cativantes. Essa é a palavra certa: cativar! Clarice tem o dom de cativar.

Após Banhos de mar, li muitas memórias de muitas pessoas, mas ainda trago com carinho o cenário de mar que ela descreve nessa crônica. Assim como guardo no coração os poemas de Mário Quintana, que talvez seja o único poeta que realmente me tocou até hoje. Todos esses textos que ajudaram a me formar como leitora foram lidos na escola e Clarice é uma figurinha carimbada nos livros didáticos: afinal, como escreveu Clarice! Desde crônicas, contos, romances, cartas e livros infantis até alguns poemas esparsos. É uma verdadeira honra ter essa mulher como conterrânea, saber ser esta uma brasileira de alma carioca.

Mas em Clarice contém muitas mulheres, mulheres reais, do dia a dia. Mulheres possíveis, que sentem raiva, medo, angústia, frustrações, desejo, inveja e melancolia. Clarice pulsa a vida, escreve a vida e escreve cada uma de nós com os nossos anseios e idiossincrasias tão comuns na alma da mulher. Clarice me dá coragem, ela me inspira e me lembra todos os dias que se ela não era perfeita, quem sou eu para tentar ser? Que não há nada de errado em não caber dentro de caixinhas, em não seguir as regras da sociedade, em não ter um corpo perfeito. O certo é sermos únicas dentro das nossas certezas e do nosso mundinho; nosso único compromisso é com a gente mesmo e com o nosso código de ética interno que vai nos ditar os limites que podemos ultrapassar ou não.

Quando a vida fica difícil demais, ler Clarice é como um bálsamo, é como se eu conseguisse perceber que existem outras mulheres como eu, que passam pelas mesmas vicissitudes e que seguem com o seu nariz empinado, como a Joana de Perto do Coração Selvagem, questionando sempre “ser feliz serve para quê mesmo”? E em caso de não achar respostas, talvez GH com toda a sua reflexão sobre classes e desigualdades possa ajudar um pouco mais. Ler Clarice é nos reabastecer do combustível da vida, é lembrar que até mesmo Caetano Veloso ficou tímido ao seu lado, tão grande ela foi. É lembrar que muitas vezes precisamos gritar para que outros Mineirinhos não morram impunemente na nossa presença, diante da nossa inação.

Ler Clarice é lembrar que ela também foi mãe e encontrou os seus desafios. Não compreendeu por completo seus filhos, onde um desejava tudo e o outro nada. Até descobrir que o motivo da desilusão do mais velho vinha de uma câmara de pneus que ela lhe negou em um certo momento da infância. Ler Clarice é compartilhar de todo um amor por uma figura pública junto com Ferreira Goulart, Marília Pêra, Maria Ribeiro e Marina Lima e sentir-se próxima dessas pessoas tão distantes de nós, mas que compartilham conosco uma admiração sem tamanho por uma mulher de voz grossa, que nunca passava incólume devido ao sotaque carregado de rrrr.

Diogo Mainardi fez um texto espetacular sobre A hora da estrela e a crônica Por detrás da devoção, abordando o tema a espinhoso sobre as empregadas domésticas e seu apagamento e a relação patrão/ empregado, assunto bastante comum na obra de Clarice. E também um enredo que a afasta do leitor do século XXI. Mas essas relações foram muito complexas e muito comuns na época em que Clarice viveu no Brasil. Na verdade, as relações humanas são complexas, difíceis, não-lineares e assim, as relações que envolvem algum tipo de poder são ainda mais ambíguas. Essa vida real também faz parte tanto da literatura ficcional quanto da não-ficcional de Clarice e é lindo ver uma pessoa de verdade por trás de textos tão potentes, com suas fragilidades e defeitos.

É por isso que amo tanto ler Clarice! Não há em sua obra uma exigência de perfeição, nem estética, nem moral. Ela é o que é: ambivalente como todos nós. Nas palavras de Joaquim Ferreira dos Santos, “Clarice é sempre a palavra inesperada, aquela que não serve para espelhar uma coisa, uma cena de rua, essas aproximações que o cronista gosta de ter com o cotidiano. Clarice jamais seria cotidiana. Há sempre um milagre acontecendo”.

Lygia Fagundes Telles nos presenteia também com suas histórias junto a Clarice. Conta-nos sobre sua viagem à Colômbia com a escritora, onde foram participar de uma conferência literária. No meio do evento, incentivada por Clarice, resolveram sair da sala onde alguém muito enfadonho palestrava alegremente, para passear pelas ruas e fazer compras. Depois, uma pausa em um barzinho para “tolerar” o restante do evento com um brinde incrível à “ausência de novidades”, regado a champanhe e vinho tinto. De volta à sala de conferências, as duas tapearam os colegas com muitas balas de hortelã, disfarçando o cheiro de álcool de seu hálito. Ou seja, pessoas reais, vivenciando situações reais, como todos nós.

Armando Nogueira, seu colega do jornal, foi homenageado com uma crônica sobre futebol. Clarice foi uma grande torcedora do Botafogo, mesmo sem entender patavinas de futebol. Apenas torcia, como a maioria das mulheres daquela época. Sobrava para os filhos impacientes lhe explicarem as regras do impedimento, do pênalti, das faltas…. Porém, o amor ao time do coração continua inalterado e pulsante.

Clarice foi uma pessoa capaz de escrever um texto de quase uma hora de leitura falando sobre a cidade de Brasília, descrevendo suas características únicas e as contextualizando com acontecimentos da vida, do cotidiano e até mesmo com roupas, trajes de gala, meios de transporte e tantos outros objetos e pessoas. Achei tão inspirador esse seu texto que um dia pretendo tentar fazer um sobre o Rio de Janeiro. Ler Clarice é isso, é encontrar inspiração para dizer o que se pensa, para ser o que se é e principalmente, para se compreender melhor.

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