vida de leitor

Clube Leia Latinos e cinco livros incríveis que li por lá

Em alguns posts anteriores, já contei para vocês que um dos meus maiores reencontros com a literatura se deu em meados de 2000, quando eu morava em Belo Horizonte e trabalhava em Betim, passando assim grande parte do meu dia no transporte público. Nessa época, minha irmã me emprestou o seu exemplar de O caçador de pipas do escritor afegão Khaled Hosseini e ele provocou em mim uma certa epifania: deixei de ver o Afeganistão como um país terrorista, destruído pelas guerras, onde só existia pobreza e dor e passei a vê-lo através dos olhos de seus habitantes, que enfrentaram tantos problemas, aflições e injustiças, ao passo em que guardam em si a memória dos dias felizes, dos belos gramados verdes em frente as suas casas, de suas antigas propriedades, trabalhos, a vida que lhes foi roubada.

A partir dessa leitura, onde senti pela primeira vez que em me lembro, empatia por um povo lendo um livro, passei a buscar mais obras parecidas com as do Khaled Hosseini, que me apresentassem outros países, através do olhar das pessoas que vivem neles, onde eu possa conhecer os lugares sem os filtros ou os estereótipos hollywoodianos. Através dessa busca constante, cheguei ao Clube Leia Latinos, com organização e curadoria da Jéssica Mattos, que tem como objetivo ler um livro da América Latina por mês, de países diferentes, escritos por vozes diferentes, buscando sempre a diversidade, o conhecimento e a melhor compreensão do pensamento pós-colonial dos nossos vizinhos.

Faço parte desse grupo há dois anos e ali fiz amizades, cresci bastante como indivíduo, aprendi muito sobre a América Latina (ainda tenho muito a aprender) e não apenas isso: existe um eco muito forte em nós brasileiros da cultura latino-americana. Afinal, apesar de falarmos língua portuguesa, sermos um país continental e termos as nossas próprias idiossincrasias, somos também um povo latino-americano. Nestes dois anos, lemos tanto livros clássicos, como também contemporâneos – algo que me ajuda muito a ler mais escritores (as) vivos (as), pois ultimamente, tenho preferido ler os clássicos, principalmente os modernistas que tanto me chamam a atenção.

Diversificar as nossas leituras nos traz muito conhecimento de mundo e nos transforma como seres humanos, nos torna mais críticos, analíticos e principalmente pessoas melhores. As discussões no grupo são sempre muito produtivas, pois, nem todos têm o mesmo gosto literário e essas diferenças nos levam ao crescimento e nos ajudam a enxergar os livros de uma maneira diferente. Afinal, cada leitor lê o mesmo livro de forma diferente dos outros. As nossas leituras carregam o nosso conhecimento de mundo, nossa bagagem cultural e todos os livros que lemos antes. O mais legal no Clube Leia Latinos é que lemos livros totalmente fora do hype da internet e obras sobre as quais eu nunca tinha ouvido falar. Além disso, as editoras pequenas são presença constante no Clube, diversificando mais ainda as nossas escolhas. Os livros que escolhi como melhores leituras desse projeto, foram verdadeiros presentes que transformaram a minha vida e me ajudaram a ver o mundo de outra forma e por isso sou muito grata ao Clube e às pessoas que fazem parte dele.

Sempre acreditei que a curiosidade é uma mola propulsora que sempre me jogou para frente em relação aos estudos, ao conhecimento e consequentemente ao crescimento pessoal e ao meu desenvolvimento como pessoa e como profissional. Sempre gostei de buscar o conhecimento e de estudar assuntos que me interessam e que geralmente se tornam uma obsessão para mim. E no Clube Leia Latinos, encontramos tudo isso: leituras instigantes, curadoria além dos livros que nos ajuda a compreender melhor a contextualização histórica do livro e a cultura daquele país. Estar junto a tantas mentes inquietas e subversivas como a minha é uma experiência incrível e que recomendo a todos que desejam explorar mais os caminhos da América Latina e principalmente do pensamento crítico. Se você quiser fazer parte desse projeto, acesse o link e seja bem-vindo! (https://www.catarse.me/clubeleialatinos). Vamos às minhas indicações latino-americanas!

  • O jogo da amarelinha – Julio Cortázar (Companhia das Letras, 2019): Esse é um clássico diferentão, que pode ser lido de duas formas, ou de quantas formas o leitor quiser. O próprio autor o classificou como um anti-romance e subverteu todas as regras, criando um livro magistral e único. Há um enredo muito simples de um casal que não funciona, mas em meio a toda essa história de amor, Cortázar apresenta ao leitor a vida de escritor, através da metalinguagem. Além disso, ele também aponta várias questões filosóficas sobre a vida e a existência humana, as consequências das nossas ações e a marca que deixamos no mundo. É uma obra inesgotável e só de escrever um trechinho sobre ela, tenho vontade de reler. Recomendo muito esse livro para vocês, de um grande escritor argentino.
  • Banzeiro Òkòtó – Eliane Brum (Companhia das Letras, 2021): Tudo bem, vocês já cansaram de me ler falando sobre esse livro. Porém, ele foi muito marcante e transformador para mim como pessoa. Trata-se de um texto de jornalismo literário, escrito por uma brasileira que se mudou de São Paulo para a cidade de Altamira no Pará, em uma tentativa de ajudar a salvar a Floresta Amazônica de todas as perversões e violações do homem contra a natureza. Neste texto, além de nos alertar para os perigos climáticos, ela também nos mostra a vida e a não-vida dos povos originários, que ela chama de povos-floresta, e que foram removidos de suas terras para conjuntos habitacionais e obrigados a trabalhar para se sustentar. O que faz desse livro incrível é a forma como ela narra toda essa dor das pessoas. Eliane consegue fazer com que o leitor compreenda verdadeiramente o sofrimento alheio. Este se tornou um dos meus livros favoritos da vida e com certeza eu não sou a mesma pessoa depois de lê-lo. Recomendo demais esse livro para vocês e o considero uma leitura urgente e mais que necessária a todos os brasileiros.
  • A festa do bode – Mario Vargas Llosa (Alfaguara, 2011): Romance histórico do escritor peruano, baseado em pesquisas feitas pelo autor, após uma viagem dele à República Dominicana. Neste livro Llosa conta ao leitor através de três eixos principais, o período de ditadura de extrema direita comandada por Rafael Trujillo, que durou 31 anos. Além dos fatos históricos, conhecidos pelo público, o autor mostra também o lado das pessoas comuns, que viviam no país e que enfrentaram esses anos, alguns apoiando por ignorância e outros lutando contra o regime. O livro é incrível, muito bem escrito e necessário para a compreensão dos horrores das ditaduras latino-americanas.
  •  Rinha de Galos – María Fernanda Ampuero (Moinhos, 2021): Livro de contos que mostram a realidade da vida equatoriana, com suas desigualdades sociais, o contexto de violência e a sensação constante de medo e insegurança familiar de uma população esquecida pelo Estado. É um livro que choca e que, como pretendia a autora, um livro que grita e se faz ouvir. Em meio a textos escatológicos e descrições de situações insólitas, o leitor consegue perceber as pequenas e as grandes violências a que somos submetidos ao longo de nossa existência em países onde falta tudo: desde o pão de cada dia até o amor familiar, primordial para as bases dos indivíduos. Não é um livro bonito, porém, é extremamente impactante e necessário para a reflexão e a conscientização do outro.
  • Olhos de cão azul – Gabriel García Marques (Record, 1974): Livro de contos do escritor, onde o leitor encontra textos de terror, mistério e morte. Característica forte da literatura latino-americana, o fantástico, o realismo mágico e o insólito estão nestes contos de Gabo, mostrando ao leitor um pouco do cansaço e do descontentamento do povo colombiano, que sofre assim como nós brasileiros, a ausência de oportunidades e de mobilidade social e as agruras da vida cotidiana. A falta de perspectivas dos personagens nesses contos, os levam a uma existência onírica ou à desistência, diante de tantos conflitos e problemas, que podem ser interpretados de muitas formas. O livro abre diversas possibilidades de leitura para a alegria e o deleite do leitor, o que nos leva de volta ao começo: cada um lê o mesmo livro de forma diferente e o que vai determinar essas interpretações são as nossas bagagens anteriores e o nosso conhecimento prévio de mundo.

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