crítica

Contos completos de Tolstói – Volume 2

Dando sequência à leitura dos contos completos de Tolstói, chegamos ao segundo volume da obra, onde estão contidos “Contos da Nova Cartilha”, “Livro russo de leitura”, volumes 1, 2, 3 e 4 e “Últimos contos”. Os “Contos da Nova Cartilha” são textos que o autor escreveu para as suas aulas, quando foi professor em Iásnaia Poliana, verificando a inexistência de outros que suprissem a sua necessidade. Da mesma forma, os “Livros russos de leitura” são adaptações das Fábulas de Esopo e de outros textos infantis para a realidade russa, com o intuito de incentivar a leitura das crianças e utilizar esses textos, que em sua maioria contém uma lição de moral, para educar esses indivíduos.

Lendo a sua biografia, é possível compreender melhor esses primeiros livros e essa fase do escritor, pois, a sua inquietude o levou a produzir escritos que parecem tolos em uma leitura superficial, mas que na verdade, possuem uma função específica e já trazem indícios de sua última fase como escritor, quando Tolstói entra em uma crise espiritual e seus dilemas morais passam a acompanha-lo em toda a sua produção final. Mesmo contendo um caráter moralista, esses contos nos levam à reflexão, principalmente no sentido de discordar do escritor: é preciso pensar, refletir e preparar uma contra argumentação, para os leitores que fazem uma leitura ativa. São textos que ecoam em nós e nos acompanham ao longo da vida. Se não for concordando, é refutando os argumentos de Tolstói ou pelo menos tentando achar respostas para tantas questões que ele aborda nesses contos.

Não vou falar muito sobre os contos escritos para as crianças, porque não é o objetivo dessa resenha. As Fábulas de Esopo são bastante conhecidas e difundidas pelo mundo e não precisam de explicações. Entretanto, há um conto específico dessa antologia escolar que merece destaque: Vida de mulher de soldado. Esse conto foi escrito por um grupo de alunos de Tolstói e é de uma sensibilidade ímpar. Ao final do volume de contos, há um ensaio do autor intitulado Quem deve aprender com quem a escrever: as crianças camponesas conosco ou nós com as crianças camponesas? E nesse ensaio ele explica a feitura desse conto e argumenta sobre o ponto de vista de uma criança e sobre a nossa interferência nos escritos delas. Para quem é professor, esse texto é muito reflexivo e nos faz rever os nossos conceitos sobre escrita e criatividade. Dá bem para pensar sobre como muitas vezes somos tiranos com os nossos alunos, privando-os da criatividade e da sua própria sensibilidade ao enxergar o mundo e as coisas da vida. Certamente, tanto o conto do mujique quanto o ensaio pedagógico de Tolstói serão releituras constantes para que eu sempre me lembre de não podar as pessoas ao meu redor, corrigindo-as e engessando o seu pensamento livre.

Falando sobre os últimos contos do autor, há alguns bastante conhecidos e outros tantos pouco falados e difundidos. Os temas em geral abordados nesses textos são o adultério, a vida após o casamento, a pena de morte e a religião. Tolstói realmente, no final de sua vida, tornou-se um homem obcecado por respostas convincentes sobre a existência humana, sobre as nossas ações como indivíduos e sobre as regras sociais que não faziam sentido para ele, tais como a pena de morte, as condenações a trabalhos forçados, a falta de perdão, o mistério dos casamentos que não dão certo e consequentemente, a posição da Igreja Ortodoxa diante de todo esse caos que o mundo vivia.

Abrindo essa última antologia, temos um dos contos mais famosos do escritor que é Kholstomier. Essa história é contada por um cavalo velho, que um dia já foi campeão e teve seus dias de glória. Após envelhecer e ficar manco, frágil, doente, passou a ser desprezado por seu antigo dono e foi parar em uma estrebaria, onde era sempre deixado de lado, explorado de todas as formas, estava sempre cansado, com fome e com frio. Ele conta sua trajetória para os outros cavalos que estão no pasto e é um conto maravilhoso. Não somos cavalos e nem precisamos ser para entender o sentimento dele. E não só isso: também podemos refletir sobre os sentimentos dos animais em relação a nós humanos que muitas vezes, não os tratamos com o devido respeito, vendo-os apenas como força de trabalho ou os colocamos em uma situação de subserviência. Pode-se também interpretar o conto como uma metáfora, uma alegoria sobre o envelhecimento humano e a nossa constante obsolescência. De qualquer forma, é um conto belíssimo, inspirador e que ecoa em mim desde que o li pela primeira vez.

Outro conto muito famoso de Tolstói e que se tornou um favorito para mim, é O diabo. Aqui temos a história de um homem que herda as terras do pai e se muda para essa propriedade. Assim como aqui no Brasil, que lemos nas histórias de Machado de Assis, situações onde algumas pessoas ricas possuem uma propriedade grande, e lá vivem famílias de agregados, existia a mesma coisa na Rússia de Tolstói. Dessa forma, quando esse protagonista assume os negócios da família e tudo começa a ir bem, ele se lembra de seus desejos sexuais, que ficaram em segundo plano durante a estabilização econômica da propriedade. Assim, ele pede a um taverneiro local que lhe apresente uma moça agregada para lhe satisfazer. O grande problema é que ele se apaixona por ela e essa moça é casada com um de seus empregados. Pouco tempo depois, ele se casa com uma “moça de família”, adequada para o seu padrão socioeconômico e tenta ser-lhe fiel e esquecer a amante. Porém, as coisas não acontecem de acordo com a sua vontade e isso causa um conflito em sua vida privada. Obviamente que esse conto termina em tragédia e o autor propõe dois finais alternativos que já dialogam muito com os seus dilemas morais da época. Conto fantástico e que merece ser lido e refletido sempre, pois, infelizmente, continua bastante atual.

No conto O patrão e o trabalhador, conhecemos Nikita, o empregado e Vassíli Andreitch, o patrão. Os dois saem em uma viagem, em um dia muito frio e, Nikita vai acompanhar o patrão nessa empreitada, mesmo contra a sua vontade. Mas, como precisava do dinheiro, ele parte. Nikita não tem agasalho suficiente para esse dia, seus sapatos estão furados e forrados com jornais; suas luvas estão gastas e seu casaco não esquenta o suficiente. Vassíli, ao contrário, está bem paramentado e durante o trajeto, faz gozações sobre as vestimentas de Nikita, demonstrando uma enorme falta de sensibilidade, respeito e empatia. Os dois param em uma casa durante a viagem e saem já depois de escurecer. Nikita não queria ir, pois imaginava o mau tempo que pegariam, mas “fazia muito tempo que estava habituado a não ter vontade própria e apenas servir aos outros”, eles foram. Vassíli não demora a se perder no caminho e uma nevasca os atinge.

Eles resolvem parar em um acostamento da estrada para esperar clarear o dia e seguirem em frente, mas o frio é intenso demais. Enquanto Nikita tenta se aquecer com o que tem, Vassíli, sai para caminhar, fica furioso por suas vontades não satisfeitas e dessa forma, acaba ficando com muito frio. Ao voltar para a carruagem, ele se deita sobre Nikita com o objetivo de se aquecer e também, preocupado com o empregado que parece congelado ali. E claro, tratando-se de Tolstói, esse conto não tem um final feliz. O ponto alto dessa história é a solidariedade, além de retratar com muita veemência a realidade das pessoas pobres, que precisam se sujeitar aos caprichos dos outros para garantirem seu sustento. As diferenças de classe são bem marcadas nessa história comovente e triste.

Talvez o conto que mais me fez surtar foi O cupom falsificado. Aqui temos uma cadeia de eventos trágicos promovidos por dois adolescentes que falsificam um cupom – espécie de cheque utilizado na época. Uma comerciante recebe o cupom falsificado e seu marido o passa para um lenhador. A partir daí um encadeamento de desgraças começa a acontecer, envolvendo mais de vinte pessoas. O objetivo desse conto é nos fazer pensar sobre as consequências funestas das nossas ações irresponsáveis sobre os outros. Muitas vezes agimos sem pensar, achamos que as nossas falas e atos não têm consequências graves, porém, uma simples frase pode acabar com o dia de uma pessoa ou até mesmo com a vida dela. Na era do cancelamento, é imprescindível pensar nessas coisas e lembrar todos os dias que somos responsáveis por tudo o que sai de nossa boca e por tudo o que passamos adiante, tanto de bom quanto de ruim. Conto sensacional e muito, muito reflexivo.

O conto Memórias Póstumas do stáretz Fiódor Kuzmitch fala sobre um homem que condenava pessoas à morte, mas nunca tinha presenciado uma execução. Tudo muda quando ele é obrigado a assistir uma pessoa sendo açoitada até a morte. Indignado com o que viu, ele pensa nas leis, na justiça e tudo isso não o convence, são apenas letras em papel e não são capazes de modificar a vida de um indivíduo. Desejando fazer algo real para mudar essa situação, ele chama o médico responsável pela prisão e pede para trocar de lugar com o condenado e, passando um tempo na prisão, conta as suas memórias de infância e como chegou a ser um executor penal.

Para as pessoas que não têm a infelicidade de nascer na família imperial, eu creio, é difícil imaginar toda a distorção da imagem que se tem das pessoas, e da relação com elas, que experimentamos, que eu experimentei. Em lugar do sentimento, natural a uma criança, de dependência dos adultos e dos mais velhos, em lugar da gratidão por todo o bem que se desfruta, incitam em nós a convicção de que somos seres especiais, que não apenas devem ser satisfeitos com todos os bens possíveis como também, só por meio de uma palavra ou sorriso, pagam todo e qualquer bem que recebam, premiam as pessoas a e as deixam felizes. Na verdade, exigiam de nós uma relação cortês com as pessoas, porém, com minha sensibilidade infantil, eu entendia que se tratava apenas de uma fachada e que fazíamos aquilo não para elas, não para as pessoas com quem devíamos ser corteses, mas para nós mesmos, para que a nossa grandeza ganhasse ainda mais relevo” (TOLSTÓI, 2018, pág. 536)

E voltamos a mais um dos principais questionamentos da vida: afinal, fazemos as coisas pelos outros, por altruísmo, ou por nós mesmos, para a salvação da nossa alma, para nos sentirmos bem conosco em um movimento de egoísmo eterno? Além disso, ainda temos os nossos anseios infindáveis, que dominam a nossa existência:

Quer isso se realize, quer não, surgirão desejos novos. A vida reside nisso. Veio à minha cabeça que, se toda a vida consiste na geração de desejos e se a alegria da vida é a sua realização, será que não existe um desejo que seja próprio do homem, de todo homem, sempre, e que sempre se realiza, ou melhor, sempre se caminha para a sua realização? Então ficou claro para mim que assim seria para o homem que desejasse a morte. Sua vida toda seria uma aproximação do cumprimento desse desejo; e esse desejo certamente se realizaria” (TOLSTÓI, 2018, pág. 538)

Aqui temos um diálogo com a modernidade: nunca tivemos tanto medo da morte. Ultimamente, estamos sempre buscando poções para a longevidade, descartando as pessoas por sua idade, buscado outras cada vez mais jovens, criamos uma obsessão por saúde, como se tudo isso garantisse uma vida longa e plena. O paradoxo é que a única certeza que temos na vida, é a morte. Os contos de Tolstói têm essa característica forte: nos fazem pensar e analisar o nosso comportamento; colocam luz nas nossas trevas e nos obrigam a olhar para as coisas que tentamos esconder.

Outro conto muito famoso do escritor e que está neste volume é Depois do baile, onde um nobre participa de uma festa na casa de seu futuro sogro e sai de lá encantado com as pessoas da família, apaixonado por sua garota e de tão feliz que está, resolve dar uma volta e apreciar a noite. A ansiedade não o deixa dormir e assim, ele amanhece o dia na rua. Para o seu desprazer, ele encontra um cortejo de uma execução penal e o comandante dessa ação é o seu futuro sogro. Horrorizado com a cena, ele começa a questionar todas as suas escolhas e principalmente, qual o motivo daquilo. O amor e a felicidade que sentia há algumas horas desaparece, dando lugar à indignação e à revolta de um homem que não acredita na pena de morte. Belo conto, cheio de camadas e de reflexões para o leitor.

Há também duas adaptações que Tolstói faz de contos do francês Guy de Maupassant, Françoise e Custa Caro. Os dois contos são muito fortes e seguem essa linha de reflexão sobre a moral, a ética e as consequências da miséria.

Não restam dúvidas de que esses livros de contos do Tolstói se tornaram grandes favoritos da vida para mim. Esse é o tipo de livro que nos modifica de alguma forma, que nos transforma e que ecoam em nós mesmo depois de nos afastarmos deles. Essas histórias, com as quais me identifiquei em alguns pontos, me indignei em outros, critiquei algumas lições de moral, foram uma das coisas que mais me fizeram refletir nos últimos tempos e consagraram o Tolstói como um dos meus escritores favoritos da vida. Pode ser que a leitura da biografia do autor tenha ajudado na compreensão de seu pensamento e de suas ideias. Mas, mesmo desconhecendo a sua história de vida, é possível ler esses contos e tirar deles grande proveito. Recomendo muito essa leitura para todos os leitores. Os textos são simples, fáceis de ler e reverberam em nós de alguma forma.

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